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Saúde

A emergência de "holdings filantrópicas" no 3º Setor

Sobre recursos destinados ao Sistema Único de Saúde (SUS)

João Vitor Cardoso
12/06/2017|18:25

A interação entre os entes federativos no tocante a transferências e gastos de receitas é amplamente regulado pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Porém, em seu art. 25, esta Lei Complementar deixa excetuada a aplicação desta normativa em relação a recursos destinados ao Sistema Único de Saúde (SUS)[1].

É comum que organizações sociais sejam contratadas por mais de um ente federativo para gerenciamento e execução de ações e serviços de saúde, ensejando dúvidas com relação a eventuais restrições à sua organização em rede. A fim de esclarecer tais dúvidas, realizou-se a leitura de diplomas normativos federais e municipais para esclarecimento da incidência normativa à hipótese, sobremodo para a defesa de princípios de índole constitucional.

Lembremos, antes, que o Contrato de Gestão implica em cessão de servidores, recursos e bens públicos. O problema aqui abordado se dá quando o conselho de administração da entidade gestora do contrato em tela se localiza em uma matriz da Organização Social, situada em ente federativo diferente daquele em que se localiza o objeto do certame. Diante disto, as matrizes das Organizações Sociais, visando a diminuição dos custos na prestação dos serviços, por vezes, “absorvem” serviços prestados pelas filiais, localizadas no Ente Federativo em que é executado o Contrato de Gestão. Isto é admitido, sob o ordenamento jurídico pátrio?

Cumpre-nos antes de responder tal questão, tecer considerações sobre a hipótese fática bem como o regime jurídico concernente. Limitam-se estas considerações a uma nova modalidade de Organização Social na área da Saúde (OSS[2]) não prevista quando da criação do modelo: as tais “Organizações Sociais de Saúde Interfederativas”. Estas são entidades privadas, sem fins lucrativos, que se adequam às diversas legislações de qualificação e atuam em diferentes Estados e municípios. Estas adequações, regionais ou locais, têm sido adotadas por meio de “filiais” ou “subsidiárias”, isto é, por organizações “interligadas”.

Assim, a atuação interfederativa representa um novo desafio ao Terceiro Setor, apresentando riscos do ponto de vista da organização e do planejamento do SUS, que poderiam levar à confusão de recursos “carimbados”, provenientes de diferentes entes federativos. Demandam-se, com efeito, instrumentos bem definidos de transparência e controle (“accountability”).

Neste ponto, frise-se que é da lógica do Contrato de Gestão – em cujo âmbito os valores repassados jamais perdem sua natureza de recurso público – que a finalidade e o modo de aplicação dos recursos devam ser minuciosamente definidos no instrumento contratual, não cabendo qualquer desvio daquilo que for contratualmente determinado. Não é por outra razão que o Poder Público tem exigido a abertura de contas segregadas para cada um dos contratos de gestão. Dessa forma, visa-se evitar resultados indesejáveis, tais como entender a OSS como empresa e não como entidade sem finalidade lucrativa, passando de forma indireta a distribuir lucro ou patrimônio, ou venham a ter “donos” – pessoas físicas ou jurídicas. Trocando em miúdos, estas entidades privadas, sem fins lucrativos (ou econômicos), qualificadas em mais de um ente federativo (União, Estados, Distrito Federal e municípios) como OSS, não se confundem com uma espécie de “holding”. Dado inexistir um acervo jurídico comum referente ao processo de qualificação em cada ente da federação, aconselha-se sempre a criação de entidade interligada.

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Além do controle efetuado na esfera própria da Administração Pública, isto é, pela Secretaria de Saúde local, as entidades que contratam com o Poder Público submetem-se àquele controle exercido pelo Tribunal de Contas, o qual dispõe, em relação a elas, dos mesmos poderes que lhe assistem no que concerne à administração indireta, como é o caso das autarquias municipais.

Demais disso, a OS se qualifica pela sua expertise no gerenciamento de ações, pessoas e de territórios. Não há contrato de gestão sem gestão. As ações desempenhadas por conselho ou departamento local, a bem da verdade, são a verdadeira pedra de toque do Contrato de Gestão. A boa prática paulistana tem orientado as OSS interfederativas a operarem por meio de Núcleo Técnico Local, que atua como titular de uma conta vinculada ao Contrato de Gestão, prevendo-se a contratação de profissionais a serem lotados, nomeadamente, em “Núcleo Técnico Local”. Ressalte-se: não se confunde este efetivo com aqueles “assistentes administrativos” lotados nas unidades.

Desde que não haja alteração qualitativa na prestação do serviço, caso a matriz da Organização Social – diminuindo custos, de maneira obsequiosa ao interesse público – desejar “absorver” serviços prestados pela filial localizada no território em que é executado o Contrato de Gestão, os repasses correlatos serão descontados na transferência mensal seguinte.

A Lei Federal 12.873, de 24 de outubro de 2013, em seu art. 56, dispõe sobre instrumentos de governança interfederativa aplicáveis à espécie, verbis:

Art. 56. As entidades privadas filantrópicas e as entidades sem fins lucrativos podem repassar às suas mantenedoras recursos financeiros recebidos dos entes públicos, desde que expressamente autorizado no instrumento de transferência, observados a forma e os limites estabelecidos no instrumento de transferência e na legislação, quando houver.”

A taxonomia não altera a natureza das coisas. Contudo, para fulminar eventuais controvérsias relacionadas à nomenclatura utilizada na relação havida entre entidades sem fins lucrativos (nonprofit organizations) e suas “interligadas[3]”, “mantenedora” é a instituição que possui um ou mais estabelecimentos que dela dependem administrativa ou economicamente. Assim, os termos “mantenedora e mantida” estão relacionados a “matriz e filial”.

Ainda, os contratos administrativos em tela obedecem às disposições contidas nos artigos 77 a 80 da Lei Federal 8.666/1993 (Lei de Licitações). Importa, sobremaneira, destacar o artigo 78, XI, desta Lei:

“Art. 78.  Constituem motivo para rescisão do contrato: (...) XI - a alteração social ou a modificação da finalidade ou da estrutura da empresa, que prejudique a execução do contrato;” (Grifamos)

No ponto, cumpre frisar que as verbas e os rendimentos das aplicações financeiras oriundas do Contrato de Gestão devem ser aplicados, exclusivamente, na efetivação do próprio, em benefício dos contribuintes do ente federativo concedente. Eventuais transferências à matriz devem ser justificadas e previamente aprovadas mediante aditivo e revisão de metas.

Caso não sejam observadas as cautelas e os limites constitucionais impostos, este modelo geraria complexidades imensuráveis, como, a título de exemplo, a confusão de despesas corporativas entre todos os parceiros públicos com Contratos de Gestão celebrados junto à OSS Interfederativa, podendo vir a acarretar a inviabilidade de acompanhamento e controle pelo Poder Público sobre a aplicação e a finalidade empregada a seus recursos.

Sem meias palavras: qualquer saldo que não retornar ao erário do ente contratante ensejará a propositura de Ação Popular para a preservação do patrimônio público. Isto sem prejuízo da apuração de responsabilidade civil, nos casos tipificados na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) e de eventual responsabilização penal, p. ex., por evasão de divisas (Lei 7.492/186[4]) e declaração de inidoneidade de Organização Social (Lei 8.666/93).

Em conclusão, todos os recursos destinados ao SUS deverão ser movimentados por meio de Núcleo Técnico Local, titular de “conta vinculada”, prevista contratualmente. Caso contrário, qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular (art. 5º, LXXIII, da Constituição), instrumento apto a anular atos lesivos ao patrimônio público ou de entidade de que o estado participe, visando anular o ato lesivo ao erário local em que incorrerá a Organização Social interfederativa que repassar recursos à sua matriz sem a prévia autorização do poder público.

Assim, para que a transferência de recursos não se ressinta de inconstitucionalidade atacável por ação popular, caso o Contrato de Gestão silencie com relação a tais transferências, as entidades deverão provocar as Secretarias de Saúde locais, cuja resposta será vinculante em relação aos limites e valores estabelecidos por esta para fins de repasse à matriz.

 

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[1] Lei Complementar nº 101, de 2000, Art. 25: Para efeito desta Lei Complementar, entende-se por transferência voluntária a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde.
[2] A denominação Organizações Sociais (do saxão “quasi autonomous non governamental organizations”) de Saúde – OSS nasceu em São Paulo a partir de 1998, com a adoção do modelo no âmbito estadual, iniciando com a gestão de unidades de saúde (hospitais e equipamentos públicos), formalizado pela Lei Complementar n.º 846, de 4 de junho de 1998.
[3] Desta forma é referida a relação entre “mantenedora” e “interligadas” na Portaria n. 535, de 8 de abril de 2014, do Ministério da Saúde. V. também a Portaria n.º 1.329, de 24 de novembro de 2014, do Ministério da Saúde, a qual, em seu art. 4º, dispõe sobre a possibilidade de cadastro de CNES através da “mantenedora” em relação aos demais estabelecimentos de saúde.
[4] Lei n.º 7.492/186, Art. 6º: Induzir ou manter em erro, sócio, investidor ou repartição pública competente, relativamente a operação ou situação financeira, sonegando-lhe informação ou prestando-a falsamente.logo-jota