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Rio Grande do Sul

Tragédia climática no RS continua a gerar reflexos contratuais e extracontratuais

Mesmo após alguns meses, ainda não é possível dimensionar com precisão a extensão dos danos no estado

tragédia climática rs
Crédito: Bruno Peres/Agência Brasil

O volume de chuvas sem precedentes, seguido de enchentes, entre o final de abril e o início de maio deste ano no Rio Grande do Sul provocou diversos danos à população gaúcha, com consequências que aparentam estar longe do fim. Mesmo após alguns meses, ainda não é possível dimensionar com precisão a extensão dos danos.

A Pesquisa de Impacto das Enchentes no RS[1], por exemplo, realizada pelo Sebrae-RS em parceria com a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico (Sedec), revelou que 35,7% dos negócios ainda estão fora de operação até o momento, e que outros 25,1% se encontram parcialmente paralisados.

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A catástrofe ecoa, ainda, nas mais diversas áreas do direito, como cível, trabalhista, tributário, seguros, imobiliário, infraestrutura e contratos com a administração pública, ambiental, entre outras. No contexto do direito civil, não foram implementadas regras específicas para esse período excepcional, como ocorreu na pandemia de Covid-19, por exemplo, com a edição do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (Lei 14.010/2020).

Diante dessa ausência de regramento específico para situação tão particular, o presente artigo busca tratar sobre os efeitos da tragédia no Rio Grande do Sul na responsabilidade civil.

A matéria aqui abordada, dessa forma, assume papel central frente à quantidade de contratos que estão impossibilitados de serem cumpridos (responsabilidade contratual), bem como aos proprietários de bens que sofreram danos decorrentes da tragédia (responsabilidade extracontratual)[2].

Nas relações contratuais, o comportamento juridicamente esperado do devedor é o cumprimento daquilo que se obrigou perante o credor. Há situações, porém, em que o devedor não cumpre a obrigação por ele assumida configurando-se o inadimplemento.

O inadimplemento, a seu turno, atrai consequências que variam de acordo com a natureza da obrigação, as circunstâncias do descumprimento e a espécie de inadimplemento (absoluto ou relativo), como o cumprimento forçado da obrigação, o pagamento de perdas e danos com juros, atualização monetária e honorários do advogado, resolução do contrato, entre outras medidas.

Há hipóteses, entretanto, em que o contexto obrigacional entre a data na qual o contrato foi celebrado e a data em que a obrigação se torna exigível diferenciam-se substancialmente, como parece ser o caso de muitos, mas não todos, contratos afetados pela tragédia no RS. Identificam-se, para esse cenário, três possíveis situações: (i) a tragédia no RS como evento de caso fortuito ou força maior, a impossibilitar o cumprimento da obrigação pactuada; (ii) a tragédia no RS como indutor de onerosidade excessiva a uma das partes do contrato; e (iii) a tragédia no RS como fato gerador para reclamar exceção do contrato não cumprido.

No tocante ao primeiro cenário, o caso fortuito ou força maior refere-se ao fato necessário cujos efeitos não era possível evitar ou impedir, isto é, trata-se de ocorrências imprevisíveis ou difícil de prever que gera um ou mais efeitos que não poderiam ser evitados. O caso fortuito tem origem natural, enquanto a força maior tem origem em ação humana, mas os efeitos jurídicos são os mesmos.

A tragédia climática no RS, nestes termos, pode configurar caso fortuito para suscitar a inexecução involuntária da prestação, extinguindo-se a obrigação pela impossibilidade de seu cumprimento.

Entretanto, o devedor não pode se valer do instituto para extinguir a obrigação nas seguintes hipóteses: (i) caso o risco de eventos dessa natureza tenha sido alocado ao devedor expressamente no contrato[3]; ou (ii) se a tragédia não tiver impossibilitado o cumprimento da obrigação assumida pelo devedor.

Já o reflexo desse evento de chuvas e enchentes no RS sob a perspectiva da imprevisibilidade contratual pode se configurar de duas maneiras.

A primeira delas seria qualificar as chuvas e as enchentes em questão como evento extraordinário e imprevisível, que tenha tornado a obrigação excessivamente onerosa para uma das partes e extremamente vantajosa para a contraparte, hipótese na qual a parte prejudicada pode postular pela resolução ou revisão do contrato – revisão que também pode ser pretendida pela parte beneficiada, como alternativa à resolução[4]. O Código Civil apresenta, ainda, alternativa simplificada[5], na qual a prestação pode ser reequilibrada judicialmente se evento imprevisível tiver gerado manifesta desproporção.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já enfrentou situação análoga às chuvas e enchentes no RS em decorrência da pandemia de Covid-19, em que se decidiu:

“...Nos contratos empresariais deve ser conferido especial prestígio aos princípios da liberdade contratual e do pacta sunt servanda, diretrizes positivadas no art. 421, caput, e 421-A do Código Civil, incluídas pela Lei 13.874/2019.4. Nada obstante, o próprio diploma legal consolidou hipóteses de revisão e resolução dos contratos (317, 478, 479 e 480 do CC). Com amparo doutrinário, verifica-se que o art. 317 configura cláusula geral de revisão da prestação contratual e que a interpretação sistêmica e teleológica dos arts. 478, 479 e 480 autorizam também a revisão judicial do pactuado.5. A Teoria da Imprevisão (art. 317 do CC), de matriz francesa, exige a comprovação dos seguintes requisitos: (I) obrigação a ser adimplida em momento posterior ao de sua origem; (II) superveniência de evento imprevisível; (III) que acarrete desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução. A pedido da parte, o juiz poderá corrigir o valor da prestação, de modo a assegurar, quanto possível, o seu valor real...”

(STJ, REsp 2032878 / GO, Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, j. 18/04/2023).

Entretanto, mais uma vez, a catástrofe climática no RS não pode ser suscitada como fato gerador da excessiva onerosidade a todos devedores vítimas do evento, sendo imprescindível que se comprove que a tragédia tenha sido a fonte da desproporção contratual (nexo de causalidade) e que de fato era, no mínimo, imprevisível – e extraordinário, se o pleito for para resolução ou revisão contratual.

Em contratos comutativos, mesmo se não configurados força maior ou imprevisão, pode haver cenários, ainda, em que o devedor faz jus a suscitar a exceção de contrato não cumprido, caso a contraparte que lhe imputa inadimplemento (ou exige o cumprimento da obrigação) não tenha arcado com suas obrigações contratuais antecedentes, hipótese que daria ao devedor o direito de se recusar a cumprir sua obrigação porque a contraparte (pretensa credora) não cumpriu a dela. É preciso, contudo, provar que a contraparte falhou no cumprimento de suas obrigações em primeiro lugar.

Vale mencionar que nem sempre essas figuras jurídicas que permitem ao devedor o não cumprimento da obrigação sem atrair para si as consequências do inadimplemento serão aplicáveis, por exemplo, porque pode haver cenários em que as chuvas e enchentes não interferiram nas obrigações pactuadas, sendo preciso avaliar no caso concreto se de fato o evento impactou a contratação.

O evento climático no RS repercute, ainda, na responsabilidade civil extracontratual, na medida em que, se tratando de evento climático, surge a dúvida se há o dever de indenizar danos extracontratuais e, em caso positivo, quem figuraria como devedor.

A jurisprudência tem cada vez mais reconhecido que, em que pese os eventos climáticos decorram da natureza, configuram responsabilidade objetiva do ente estatal, na medida em que o Estado poderia agir para atenuar os danos através de medidas preventivas.

Esse, inclusive, foi o entendimento do próprio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) em julgamento de incidente de uniformização jurisprudencial:

INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. TURMAS RECURSAIS DA FAZENDA PÚBLICA REUNIDAS. RESPONSABILIDADE CIVIL, EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL, POR DANOS DECORRENTES DE ALAGAMENTOS E INUNDAÇÕES. DIVERGÊNCIA ENTRE AS TURMAS FAZENDÁRIAS SOBRE SER OBJETIVA OU SUBJETIVA A RESPONSABILIDADE ESTATAL NA HIPÓTESE. ACOLHIMENTO DO INCIDENTE E UNIFORMIZAÇÃO DO ENTENDIMENTO, COM A EDIÇÃO DE ENUNCIADO NOS SEGUINTES TERMOS: "A RESPONSABILIDADE CIVIL ESTATAL, NOS CASOS DE OMISSÃO, GENÉRICA OU ESPECÍFICA, EM HIPÓTESE DE ALAGAMENTOS E INUNDAÇÕES, É OBJETIVA, RESSALVADA A PROVA, PELO ENTE PÚBLICO, DE ROMPIMENTO DO NEXO CAUSAL ENTRE A OMISSÃO E O DANO EXPERIMENTADO PELO PARTICULAR". INCIDENTE CONHECIDO E UNIFORMIZADO O ENTENDIMENTO, POR MAIORIA, COM EDIÇÃO DE ENUNCIADO. (TJRS, processo nº 71008591331, nº CNJ 0028774-83.2019.8.21.9000, Turmas Recursais da Fazenda Pública Reunidas, Relatora Laura de Borba Maciel Fleck, j. 13/03/2020)

O referido julgamento resultou na edição da Súmula 23 das Turmas Recursais da Fazenda Pública do TJRS, pela qual sedimentou-se que: “a responsabilidade civil estatal, nos casos de omissão, genérica ou específica, em hipótese de alagamentos e inundações, é objetiva, ressalvada a prova, pelo ente público, de rompimento do nexo causal entre a omissão e o dano experimentado pelo particular”.

O entendimento, nesse sentido, é que o ente estatal não só repare os danos provocados para com as vítimas, mas também implemente políticas públicas eficazes para prevenção de eventos futuros, cada vez mais frequentes.

Para que as vítimas sejam ressarcidas, desse modo, é muito importante que documentem os prejuízos causados, por exemplo por meio de registros fotográficos que demonstrem os bens perdidos, assim como comprovantes dos gastos para restruturação do local afetado.

É preciso pontuar, contudo, que a responsabilidade objetiva do ente estatal sobre os efeitos da tragédia no RS não deve ser aplicada indistintamente aos danos suportados pelas vítimas. Isso porque, a vítima precisa comprovar a regularidade pretérita ao evento do seu bem jurídico prejudicado. No caso, exemplificando, que a construção civil caiu depois da chuva, mas a obra não tinha alvará de construção pelo fato do terreno ser impróprio ao empreendimento, a vítima não poderá se valer da tragédia para reclamar o ressarcimento do dano.

Poderá haver hipóteses, entretanto, em que a irregularidade é insuficiente para afastar a responsabilidade do ente estatal. Por exemplo, a ausência de alvará de funcionamento de um estabelecimento comercial não necessariamente afastará todo e qualquer dano decorrente das chuvas e enchentes, na medida em que a edificação pode ter sido afetada independentemente da atividade ali exercida.

A tragédia no RS, como se vê, atribui muitos efeitos à responsabilidade civil, mas deve-se ter cautela, e analisar individualmente cada caso, para que o devedor não sofra as consequências legais do seu inadimplemento, na responsabilidade contratual, ou possa ser ressarcido, na responsabilidade extracontratual.

A cautela em questão é especialmente importante quando se trata de evento que pode estar ligado às mudanças climáticas, como tem sido apontado para as chuvas e enchentes no RS, na medida em que tais mudanças climáticas decorrem de uma multiplicidade de comportamentos e atividades humanas globais, atraindo desafios para configuração do nexo causal.

Soma-se a isso o consenso científico de que eventos climáticos extremos – como as chuvas e enchentes no Rio Grande do Sul – tendem a se tornar mais frequentes e intensos na medida em que a temperatura global média aumenta, o que pode levar futuramente à inadequação das teorias jurídicas ligadas ao descumprimento de obrigações contratuais e responsabilidade extracontratual, com consequente necessidade de revisitar a adequação delas.

Até que isso ocorra, no entanto, fato é que, como exposto, há uma multiplicidade de situações jurídicas que um evento dessa magnitude pode atrair no cenário contratual e extracontratual, de modo que, simultaneamente, nem todos os danos sofridos são indenizáveis, e nem todos os causadores de danos podem se valer desse evento para se eximir de responsabilidades, sendo preciso a análise detida de cada caso.


[1] Mais de 30% dos negócios ainda estão fora de operação revela pesquisa do Sebrae/RS. SEBRAE/RS, Porto Alegre, 17 de julho de 2024. Disponível em: https://sebraers.com.br/mais-de-30-dos-meis-e-mpes-ainda-estao-fora-de-operacao-revela-pesquisa-do-sebrae-rs/#:~:text=A%20%E2%80%9CPesquisa%20de%20Impacto%20das,de%20opera%C3%A7%C3%A3o%20at%C3%A9%20o%20momento. Acesso em: 19 de agosto de 2024.

[2] Originadas, respectivamente, do incumprimento de uma obrigação e do cometimento de um ato ilício.

[3] Art. 393 do Código Civil

[4] Artigos 478 a 480 do Código Civil.

[5] Artigo 317 do Código Civil.logo-jota