Vinicius Marques de Carvalho
Advogado e professor de direito comercial da USP. Ex-presidente do Cade.
A partir do próximo dia 15, entrará em operação a segunda fase do Open Banking (ou sistema financeiro aberto) no Brasil. Será em julho de 2021 que efetivamente dados começarão a circular no ambiente, criado pelo Banco Central do Brasil (BCB) e pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), ou seja, que os clientes poderão, se assim quiserem, solicitar que uma determinada instituição transmita seus dados para outra, e assim facilitar a oferta de produtos e serviços financeiros.
Toda a premissa desse modelo regulatório está lastreada na ideia de que uma das principais barreiras para que exista maior concorrência nesse mercado, por meio da oferta de melhores preços e de produtos mais adequados ao perfil de cada pessoa, decorre de falta de acesso dos agentes econômicos a informações. Sem saber quanto uma pessoa ganha, se ela é boa pagadora, se já tomou crédito, para quais finalidades etc., é difícil oferecer produtos adequados ao seu perfil e precificar adequadamente o risco daquela operação. Esse tipo de informação, no entanto, costuma ser detido por um número limitado de instituições. Isso ocorre por uma série de razões, mas especialmente porque o sistema financeiro, sendo um ambiente fortemente regulado e com elevados custos operacionais, tem uma tendência natural à concentração. Foi apenas mais recentemente com o desenvolvimento tecnológico, combinado com uma atuação do BCB que pode ser chamada de escalonada ou proporcional – ou seja, que buscou permitir que certos atores adentrassem no ambiente financeiro comportando ônus regulatório menos intensos, mas também tendo restrições muito maiores às suas operações – que essa realidade começou a ser modificada e, ao menos em certos elos da cadeia, oferecer condições mais favoráveis e atrativas para entradas de novas instituições.
Na medida em que um agente econômico, mesmo sem nunca ter oferecido serviços àquela pessoa em particular, consegue ter acesso a esses dados, ele pode utilizar essas informações para desenhar suas ofertas. Em tese, portanto, essa é uma forma de “abrir” o mercado e permitir que os assim chamados entrantes – que, nesse segmento, muitas vezes se confundem com fintechs, pois costumam ser empresas que se lastreiam em inovações tecnológicas para operar – superem essa dificuldade de acesso a dados relevantes, injetando concorrência no mercado.
O Open Banking é um empreendimento ousado e de grande porte que pretende não só permitir que esse tipo de compartilhamento exista – ou seja, ofertar a um determinado usuário a possibilidade de solicitar para uma empresa que repasse suas informações a uma outra empresa – mas que efetivamente cria obrigações de que as empresas façam essas transferências a partir de uma infraestrutura comum e padronizada. O movimento no Brasil foi feito, sem dúvida, olhando para o percurso trilhado em outras jurisdições. Por exemplo, é notório que, apesar da existência da Diretiva conhecida como PSD2 na União Europeia, o sistema financeiro aberto por lá não “decolou” como no Reino Unido, em que o Open Banking se desenvolveu pelas mãos da autoridade concorrencial, a Competition and Markets Authority (CMA), e teve caráter mais impositivo, na medida em que colocado como remédio antitruste. Por aqui, optou-se por concentrar a condução no BCB e fazê-la pela via normativa, ou seja, criar regras que teriam que ser seguidas por todas as empresas que se enquadrassem nas determinações regulatórias. A sobreposição entre o perímetro regulatório de atuação do BCB e o escopo de abrangência do Open Banking tende inclusive a ser um ativo para a normatização de seu funcionamento, evitando obstáculos encontrados pelo modelo britânico.
Vale também mencionar que foi criada uma Estrutura de Governança, da qual participam representantes das diversas instituições sujeitas ao Open Banking. Essa estrutura tem um conselho deliberativo, que discute e apresenta soluções para as diversas questões que, em concreto, se apresentam para que o modelo seja implementado – por exemplo, como operacionalizar o consentimento de uma pessoa que solicita a transferência de suas informações de X para Y, ou quais são as especificações técnicas para garantir a compatibilidade dessas transferências e assim assegurar seu efetivo envio/recebimento.
Ainda é cedo para dizer qual exatamente será o efeito desse movimento no mercado, mas algumas reações já se ensaiam. A primeira delas é um possível embate pelo direcionamento dos próximos desenvolvimento regulatórios. Como o BCB não apresenta quaisquer sinais de que pretende arrefecer sua agenda BC#, tem surgido uma disputa pela narrativa do que já ocorreu até o momento e de quais seriam os passos seguintes. Nessa linha, os bancos em especial têm demonstrado preocupação com o que denominam como assimetria regulatória entre as obrigações que lhes são impostas e aquelas suportadas por outros agentes econômicos, argumentando que questões de risco sistêmico precisam ser ponderadas e levadas em consideração antes de maiores flexibilizações. Outras empresas, em especial aquelas que tem proporcionado a entrada de novos agentes nos variados segmentos do mercado financeiro, defendem que se trata de um tratamento regulatório adequado, que, na realidade, nada mais que uma reflexão proporcional da complexidade, tamanho e risco representado por cada tipo de operação e agente, sendo que esse movimento, iniciado com a Lei nº 12.865/2013, é essencial para garantir a inovação e a promoção da concorrência.
Independentemente de qual narrativa prevalecerá, o fato é que já temos fases seguintes do Open Banking planejadas e, para além delas, desafios concretos que vem sendo enfrentados dentro da Estrutura de Governança e que podem levar à (re)discussão de certos assuntos.
A partir de 30 de agosto, inicia-se a fase 3, na qual será possível compartilhar serviços de iniciação de pagamento e operações de crédito, e, em 15 de dezembro, dá-se início à fase 4, em que os demais serviços financeiros entram também no escopo das informações compartilháveis.
Uma das principais dúvidas que se coloca sobre a fase 3 – a que aborda os serviços de iniciação de pagamentos e a oferta de crédito – diz respeito a como essa alternativa poderá impactar o mercado e mais propriamente como pode se mostrar como uma opção efetiva ao serviço mais tradicional de credenciamento. A ideia aqui é que será factível, por meio da figura do iniciador, transferir recursos de uma conta para outra sem precisar de fato interagir com as instituições que detêm os fundos. Combinada com ferramentas como o Pix, essa alternativa pode vir a oferecer maior pressão competitiva para empresas que operam as “maquininhas” de cartão, por exemplo, já que, na prática, seria viável dispensar esse tipo de serviço em certas situações e substituí-lo por uma combinação de iniciação + Pix.
No que diz respeito a desafios que têm se apresentado na implementação do Open Banking, um dos muitos que vem sendo debatido com mais afinco é o formato escolhido pela regulação para que a pessoa que deseja ver seus dados transferidos de uma instituição para outra possa ter controle sobre o processo: o consentimento. O mecanismo do consentimento, para além de ser regrado pelos normativos do sistema financeiro aberto, é também uma base legal expressamente prevista na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Porém, na LGPD, ele não é o único, nem o mais importante dos caminhos para que os dados pessoais possam ser tratados por agentes econômicos; há outras nove bases legais que podem ser utilizadas. A discussão que vem se colocando é se faria sentido, com o amadurecimento do Open Banking, que essas outras bases (ou pelo menos algumas delas) fossem também incorporadas como alternativas e, em caso afirmativo, como isso poderia ocorrer.
Nesse ponto é relevante observar que, apesar de o regramento do Open Banking ter surgido quando a LGPD já estava aprovada, ele foi editado num momento em que ainda não existia Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) em funcionamento e, portanto, essa interação institucional, que poderia ter levado a alguma conformação distinta, acabou não ocorrendo. Agora, o cenário é distinto e é sim factível que alterativas adicionais sejam consideradas, especialmente num contexto de mais maturidade no ambiente financeiro aberto. Por exemplo, seria possível aventar o uso da execução do contrato em alguns contextos para viabilizar a transferência de dados.
Todos esses são passos que se avizinham, mas que ainda não foram dados. Para seguir avançando, é relevante continuar observando o cenário internacional e os caminhos seguidos por outras jurisdições, para que possamos observar aquilo que teve sucesso e também experiências que foram malsucedidas, e assim seja possível incorporar aquilo que for útil para o contexto e para a realidade brasileira, deixando de lado propostas que eventualmente não se apresentem como as melhores soluções. Igualmente relevante é olhar para o Open Banking como um possível balão de ensaio para iniciativas ainda mais ousadas e abrangentes de portabilidade – com eventual replicação do modelo desenvolvido no sistema financeiro para outros mercados – na direção no chamado Open Finance – e também para outros setores – como a área da saúde, em que o acesso a dados tem crescente importância. Essa é uma demanda que se impõe no contexto dos amplos e cada vez mais intensos debates sobre portabilidade, que tem se apresentado como uma alternativa importante seja para garantia de maior concorrência e eficiência econômica, seja para empoderamento das pessoas enquanto titulares de dados.