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Mudanças no CPC: o atalho da Lei nº 14.195/21

Análise das alterações e da constitucionalidade da lei

PL das fake news
Crédito: Marcos Oliveira/Agência Senado

Entrou em vigor no último dia 26 de agosto a Lei nº 14.195/21 que promoveu inúmeras mudanças no Código de Processo Civil (CPC) – ao todo em 30 (trinta) dispositivos – e foi recebida com certa surpresa pelos especialistas. Afinal, como uma lei que promoveria tantas alterações no direito processual, de uma só vez, não estava no acompanhamento dos estudiosos e juristas interessados por essa matéria?

A Lei nº 14.195/21 é constitucional?

A Lei nº 14.195/21 tem origem no projeto de lei de conversão da Medida Provisória (MP) nº 1.040/21 e, por isso, tramitou de forma mais célere e sob um rito diferente das demais propostas de leis ordinárias. Ademais, é importante notar que a MP não tratava originalmente de processo civil – e nem poderia fazê-lo – tendo em vista expressa vedação constitucional contida no art. 62, § 1º, inciso I, alínea “b” da Constituição Federal (CF).

No texto enviado ao Congresso Nacional, a MP dispunha “apenas” sobre questões afetas à facilitação para abertura de empresas e do comércio exterior, à proteção de acionistas minoritários, ao Sistema Integrado de Recuperação de Ativos, às cobranças realizadas por conselhos profissionais, à profissão de tradutor e intérprete público, à obtenção de eletricidade e à prescrição intercorrente prevista no Código Civil (CC).

Surge, então, um primeiro aspecto a ser considerado. Se a CF proíbe a veiculação de norma processual (civil ou penal) no bojo das MP, a regra também se estenderia ao respectivo projeto de lei de conversão? Os que defendem que sim argumentam que essas matérias devem se submeter ao processo legislativo comum, em que se assegura o mais amplo debate no âmbito do Congresso Nacional. Nesse caso, com maior razão, porque se cuida de um Código.

Por outro lado, há quem entenda que, muito embora sejam matérias sensíveis e por isso tenham sido ressalvadas de forma pontual pelo constituinte, o impedimento se aplicaria exclusivamente ao chefe do Poder Executivo, podendo o Poder Legislativo – soberano na formulação das leis – inserir temas de direito processual no curso da atividade legiferante.

Há, ainda, outro ponto a ser analisado. É possível considerar que as normas de processo em questão são estranhas ao objeto da MP. Assim, mesmo que pudessem ser inseridas no projeto de lei de conversão, padeceriam de inconstitucionalidade, em face do que a doutrina e a jurisprudência chamam de “contrabando legislativo”: emenda parlamentar sem pertinência temática com o que disciplinado na MP.

Se prevalecer o entendimento de que efetivamente não guardam relação com os temas da MP, estaria caracterizada a afronta ao princípio democrático e ao devido processo legislativo. É o que decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5127[1]: "intencionalmente ou não, subtrai do debate público e do ambiente deliberativo próprios ao rito ordinário dos trabalhos legislativos a discussão sobre as normas que irão regular a vida em sociedade".

Citação por meio eletrônico

Dentre as diversas alterações realizadas na legislação processual civil, chama atenção as relacionadas ao ato citatório “pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual”, nos termos do art. 238 do CPC.

A finalidade seria incrementar a sua realização por meio eletrônico. Como se sabe, a citação é ato solene que, além de integrar sujeitos à relação processual, constitui requisito de validade do processo, induzindo a litispendência, tornando litigiosa a coisa, constituindo em mora o réu e interrompendo a prescrição.

Antes da reforma, a redação do CPC determinava que, regra geral, a citação dar-se-ia pelo correio, além das hipóteses subsequentes previstas no art. 246, quais sejam: oficial de justiça, comparecimento em cartório, edital e meio eletrônico.

Esta última forma, listada no então art. 246, V do CPC, indicava o intento do legislador de aprimorar a citação por meio eletrônico, determinando que empresas públicas e privadas, com exceção das microempresas e das empresas de pequeno porte, deveriam manter cadastro junto aos sistemas de processo em autos eletrônicos para recebimento de citações e intimações.

No Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o projeto para cadastramento dessas empresas começou em 2020, como o próprio site do tribunal noticia.[2] Assim, apesar da intenção manifestada pelo legislador de incrementar o uso da tecnologia no ato citatório, iniciativas organizadas para efetivação deste objetivo só começaram a tomar forma 5 anos depois, possivelmente em razão da necessidade de distanciamento social como decorrência da pandemia decorrente do Covid-19.

Diante desse cenário de poucas movimentações para tornar o ato citatório mais moderno e alinhado às novas tecnologias que temos às mãos, a mencionada lei reforma o CPC para determinar que a citação será feita preferencialmente por meio eletrônico, a partir de um banco de dados do Poder Judiciário, regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Até a presente data, não há registro da existência deste banco de dados.

Quando for implementado o banco de dados e realizado o cadastro pelo citando, após a determinação da citação, o envio do e-mail deve ocorrer em 2 dias úteis. Após este envio, o citando tem o prazo de 3 dias úteis para confirmar o recebimento da mensagem.

Caso não o faça, a citação será feita pelos outros meios citatórios já tradicionais, quando então o réu, na primeira oportunidade de falar aos autos, deverá apresentar justa causa por não ter respondido o e-mail enviado, sob pena de ato atentatório à dignidade da justiça, passível de multa de até 5% do valor da causa. Caso confirme o recebimento, conta-se o prazo a partir do quinto dia útil subsequente, conforme alteração no artigo 231 do CPC.

Ademais, determina o legislador reformista que a citação será efetivada em até 45 dias da propositura da ação. Esse breve resumo das principais alterações promovidas no tema já deve ter acendido dúvidas no atento leitor. Algumas considerações e questionamentos são levantados a partir desse panorama. Há que se indagar se os cartórios estariam organizados suficientemente para o disparo de e-mails em dois dias, a partir da determinação judicial para a reforma do CPC sem vacatio legis.

Ainda, o CPC prevê que a citação seja efetivada em 45 dias. E se não o for? Não há previsão de qualquer consequência. Trata-se de prazo impróprio para o juízo. Além disso, sabe-se que as empresas são obrigadas a manter cadastro no sistema de processo em autos eletrônicos para recebimento de citação, mas e se não o fizerem? A regulamentação do tema está aquém do esperado também quanto a este ponto.

Por fim, a justa causa apta a justificar a falta de resposta a um e-mail, evitando a fixação de multa, poderia ser falha de conexão, direcionamento ao spam ou qualquer outro problema tecnológico? “Justa causa” constitui um conceito jurídico indeterminado, cercado apenas por uma aparência de objetividade. A falta de elementos que confiram concretude ao termo que serve como baliza para fixação de multa constitui fonte de incertezas.

São diversos questionamentos de ordem pragmática e fundamentais para a produção de bons resultados, visando à modernização da citação no processo civil. O intento reformista é louvável diante da praticidade dos meios eletrônicos. Entretanto, a falta de maturação legislativa acerca do tema surpreende a comunidade jurídica com diversos questionamentos que não podem ser imediatamente respondidos.

Prescrição intercorrente

A fase executiva é um dos grandes gargalos da jurisdição civil: constitui a maior parte dos processos em tramitação (55,8% daqueles pendentes de baixa em 2019) e a etapa de maior morosidade[3]. As alterações promovidas pela Lei nº 14.195/21 têm impacto direto no fluxo de tramitação desses processos e diminuem substancialmente o tempo para que o credor localize o devedor e/ou seus bens.

De forma pontual, no plano material, o legislador insere no CC previsão sobre o prazo da prescrição intercorrente – o mesmo da prescrição da pretensão – incorporando ao texto da lei o que já previa a Súmula 150 do STF. Contudo, o foco das alterações promovidas pela Lei nº 14.195/21 é realmente o plano processual, especificamente o art. 921 do CPC, pois:

(i) inova a redação do inciso III ao prever a suspensão da execução na hipótese de o próprio executado não ser localizado. Além disso, substitui o termo “não possuir bens penhoráveis” por não “localizar” bens penhoráveis;

(ii) altera drasticamente o termo inicial da prescrição intercorrente constante do parágrafo 4º do art. 921 do CPC que agora diz ser “(...) a ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis, e será suspensa, por uma única vez, pelo prazo máximo previsto no § 1º deste artigo”.

Pela redação anterior, só depois de um ano de suspensão começava a correr o prazo da prescrição intercorrente. Ou seja, o prazo era suspenso antes mesmo de iniciar sua fluência. Essa mudança exige mais diligência do credor que agora deverá pesquisar e localizar o devedor e seu patrimônio penhorável antes de iniciar a execução, sob pena de, já na primeira tentativa frustrada, ver correr contra si o prazo prescricional[4].

(iii) insere o parágrafo 4º-A, que dispõe sobre a interrupção da prescrição, incidente uma única vez, nas hipóteses de (1) efetiva citação/intimação do devedor; e (2) constrição de bens penhoráveis, sendo excluídos do seu cômputo o tempo necessário para a prática desses atos, desde que cumpridos os prazos fixados em lei ou pelo juiz. No regime anterior, essas causas de interrupção poderiam ocorrer somente após o prazo de suspensão, o que alargava muito o tempo à disposição do exequente.

(iv) acrescenta na redação do parágrafo 5º que o juiz poderá reconhecer a prescrição intercorrente e extinguir o feito “sem ônus para as partes”, revertendo a jurisprudência que aplicava o princípio da causalidade. No parágrafo 6º, estabelece, também, que eventual alegação de nulidade quanto ao procedimento só será conhecida se demonstrado o prejuízo, sendo este presumido apenas na hipótese de inexistência da intimação tratada no § 4º;

(v) em sua última inserção (parágrafo 7º), o Legislador possibilita a aplicação desses regramentos ao cumprimento de sentença, a evidenciar que esses procedimentos se sujeitam ao mesmo regime jurídico.

Resta saber como o Judiciário irá interpretar essas mudanças, especialmente nos casos de abuso por parte do devedor que pode se esquivar propositalmente da citação, por exemplo, apenas para que se inicie a fluência do prazo de prescrição intercorrente.

Exibição de documento ou coisa

A Lei nº 14.195/21 também modificou o art. 397 do CPC, ampliando o procedimento para exibição de documento ou coisa. Antes, exigia-se a "individuação" daquilo a que se pretendia ter acesso. Com a alteração, basta a mera "descrição" e passou a ser admitida "categorias de documentos ou de coisas buscados". Houve, portanto, uma mudança substancial nesse tipo de requerimento.

Vale destacar que a exibição de documento ou coisa não sofreu grande alteração quando da aprovação do CPC em 2015.[5] Ao admitir pedidos mais genéricos, a mudança parece reforçar uma das novidades do CPC de 2015, o alargamento do escopo da ação de produção antecipada de prova (art. 381 e seguintes do Código).

Afinal, sendo possível se referir, por exemplo, a um grupo de contratos (e não mais a um específico), a ação probatória autônoma se mostra ainda mais útil, considerando principalmente o art. 381, III do CPC. Isso porque, a depender do(s) documento(s) ou da(s) coisa(s) previamente coletados(as), a produção antecipada da prova poderá de fato justificar ou até mesmo evitar o ajuizamento da ação pretendida.

A exibição de objetos de prova, a partir de um delineamento mais genérico parece fazer mais sentido no momento prévio à postulação pelo procedimento comum, vez que pode funcionar como elemento balizador da definição da causa de pedir e do pedido, como autoriza o artigo 381, III do CPC.

Conclusão

Percebe-se que as mudanças trazidas pela Lei nº 14.195/21 são substanciais, mas não necessariamente boas ou ruins. São, em suma, opções legislativas. A questão é saber se deveriam ter sido promovidas da forma como ocorreram, isto é, no contexto da MP nº 1.040/21.

Ficam, portanto, algumas reflexões que poderão repercutir no sentido de jogar mais luzes ao assunto e contribuir para os debates que infelizmente se seguirão após a vigência das referidas alterações legislativas, diante da surpresa quanto à tramitação e à aprovação da lei.

 


[1] STF, Tribunal Pleno, ADI 5127, relatora ministra ROSA WEBER, redator do acórdão Ministro EDSON FACHIN, DJe 11/05/2016.

[2] TJSP. Conheça o projeto de citação e intimação eletrônica do TJSP. Disponível em: <https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=63173>. Acesso em 16 de setembro de 2021.

[3] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2020: ano-base 2019. Brasília: CNJ, 2020, p.150.

[4] ASSIS JUNIOR, Luiz Carlos de. Prescrição intercorrente – saiba tudo sobre as alterações no CPC. Youtube. Vídeo transmitido ao vivo em 31 de agosto de 2021. Disponível em:

< Acesso em 14 de setembro de 2021.

[5] MANGONE, Kátia Aparecida. Comentários ao artigo 396. ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno; DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo (coord.). Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

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