Nos primeiros textos desta coluna, destinados à apresentação de uma teoria geral da vulnerabilidade, busquei demonstrar que toda forma de vulnerabilidade carrega consigo dois elementos estruturantes.
De um lado, faz-se necessária a presença de uma situação de risco [1], representada por um estado de susceptibilidade que pesa sobre um indivíduo ou grupo. Nesta perspectiva, a situação de risco seria responsável por pressupor uma relação prejudicial entre pessoas, entre pessoas e coisas ou entre pessoas e o meio ambiente em que inseridas.

De outro, a manifestação da vulnerabilidade deve conduzir a uma violação de direitos humanos, ilustrada por relações de desrespeito, diminuição da cidadania, marginalização, assimetria de poder, exploração, dentre outras formas de subjugação que ofendam a existência digna.
Estes elementos consubstanciam pressupostos ao enquadramento de indivíduos ou grupos como juridicamente vulneráveis.
Com os pés firmes nessas premissas, é possível avançar para um conceito de vulnerabilidade digital, objeto do primeiro texto dessa série especial de artigos.
Também denominada virtual, cibernética ou tecnológica, essa espécie de vulnerabilidade congrega os impactos negativos suportados pelos cidadãos na sociedade em rede [2], cada vez mais marcada pelos avanços tecnológicos, pela economia de dados e pelo uso constante da internet como fonte primordial de informação e comunicação.
Trata-se de fenômeno ainda recente na sociedade contemporânea, que evidencia os riscos e os perigos [3] desta nova realidade exponencial, deitando suas bases na transformação digital das experiências humanas e na criação dos espaços informacionais.
Conceitualmente, a vulnerabilidade digital pode ser compreendida como o estado de predisposição a risco nos cyberespaços, que favorece a aparição de iniquidades, assimetrias de poder, diminuições da cidadania, além de violações à privacidade, à intimidade e à autodeterminação informativa.
É interessante observar que esta forma específica de vulnerabilidade não se enquadra propriamente nas tradicionais classificações trabalhadas pelo Direito do Consumidor [4] (ex: vulnerabilidade técnica, jurídica, legislativa etc. [5]; vulnerabilidade circunstancial ou estrutural [6]) ou pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos (vulnerabilidade socioeconômica ou sociocultural). Cuida, ao invés, de fenômeno que transcende às relações indivíduo-mercado e indivíduo-Estado.
Em realidade, a vulnerabilidade digital corresponde a uma espécie do gênero vulnerabilidade socioespacial [7], situando-se tipologicamente ao lado das vulnerabilidades ambiental e urbana.
Neste grupo de vulnerabilidades, as reivindicações por justiça ultrapassam a esfera meramente individual do sujeito ou grupo afetado, atrelando-se antes à dinâmica relação das pessoas com o meio ambiente em que inseridas, originando pleitos pelo acesso seguro, equitativo e sustentável dos espaços coletivos.
É exatamente o que ocorre com a vulnerabilidade digital, a qual encontra-se atrelada aos riscos sociais produzidos e reproduzidos nos cyberespaços, impulsionando reivindicações pelo acesso equitativo da tecnologia e da internet, pelo tratamento seguro de dados e pelo uso ético e sustentável dos ambientes digitais.
Os cyberespaços podem ser representados aqui pelas plataformas digitais, pelos designs, pelos espaços informacionais e, mais recentemente, pelos metaversos (universos virtuais que tentam replicar a realidade por meio da tecnologia).
Por não se tratar de uma vulnerabilidade inata ao homem ou a um grupo particular, as vulnerabilidades socioespaciais favorecem tanto situações de universalização de estados de susceptibilidade (ex: todos somos vulneráveis em relação ao aquecimento global, à poluição urbana, à insegurança de dados etc.), quanto situações de particularização, agravamento e entrecruzamento de vulnerabilidades, passíveis de tornar determinados segmentos mais vulneráveis que outros nos espaços coletivos (ex: refugiados climáticos; situação de rua nas grandes cidades, racismo algorítmico etc.).
Como afirmam Micklitz, Helberger, Strycharz et. al., a vulnerabilidade digital, “não deve ser vista como uma propriedade (semi)estática de uma pessoa que existe independentemente da relação de uma pessoa com seu ambiente”. Ao invés, “é precisamente a relação dinâmica de uma pessoa com seu ambiente, que faz com que ela se mova dentro e fora de estados de vulnerabilidade, dependendo das circunstâncias” [8].
Não à toa, estes autores qualificam a vulnerabilidade digital como arquitetural, incorporando à relação da pessoa com os ambientes e designs existentes, seja agravando vulnerabilidades humanas pré-existentes (ex: racismo, sexismo etc.), seja incentivando a formação de estados gerais de susceptibilidade (ex: modulação psicológica-comportamental de indivíduos) [9].
Como todos sabemos, a inevitabilidade do isolamento social causada pela SARS/Covid-19 produziu um cenário profícuo para a proliferação de vulnerabilidades, não apenas agravando antigos problemas sociais (pobreza, desigualdade etc.), mas descortinando novas situações de risco e iniquidade decorrentes da efetiva migração do mundo real para o virtual.
Estes problemas do nosso tempo fazem da vulnerabilidade digital um tema complexo e instigante, despertando na presente coluna a intenção de melhor delinear o seu conteúdo e investigar suas possíveis dimensões, evitando que o uso do termo caia no intuitivismo.
A proposta é promover um recorte metodológico, que permita a análise da vulnerabilidade a partir da interação infosfera [10] vs. indivíduo, focando sua análise nos impactos negativos que a sociedade da informação, os espaços virtuais e as novas tecnologias surtem em relação ao ser humano.
No próximo texto desta série, trabalharei a primeira dimensão da vulnerabilidade digital: a vulnerabilidade tecnológica.
Vejo vocês em breve!
[1] Sobre a situação de risco como elemento material da vulnerabilidade, conferir: BLONDEL, Marion. La personne vulnérable en droit international. Droit. Université de Bordeaux, 2015, p. 105.
[2] CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede: A era da informação, economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
[3] Há quem fale até mesmo em uma vulnerabilidade mundial (vulnerable world hypothesis – VWH), hipótese em que as tecnologias proporcionariam meios ou incentivos para a destruição em massa. Assim, “intuitively, the hypothesis is that there is some level of technology at which civilization almost certainly gets destroyed unless quite extraordinary and historically unprecedented degrees of preventive policing and/or global governance are implemented”. BOSTROM, Nick. The vulnerable world hypothesis. Future of Humanity Institute, University of Oxford. Global Policy, Durham, v. 10, n. 4, 2019. Disponível em: nickbostrom.com/papers/vulnerable.pdf. Acesso em: nov. 2021.
[4] Para uma nova teoria da vulnerabilidade dos consumidores frente à era digital, conferir: MICKLITZ, Hans-W.; HELBERGER, Natali; STRYCHARZ, Joanna et al. EU consumer protection 2.0: Structural asymmetries in digital consumer markets. Bruxelas: BEUC, mar. 2021, p. 09. No Brasil, conferir: MUCELIN, Guilherme. Metaverso e vulnerabilidade digital. Revista Consultor Jurídico, disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-24/garantias-consumo-consideracoes-metaverso-vulnerabilidade-digital Acesso em nov. 2021.
[5] Neste aspecto, conferir: MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de Defesa do Consumidor: o princípio da vulnerabilidade no contrato, na publicidade, nas demais práticas comerciais. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 141-203.
[6] MIRAGEM, Bruno. Direito à diferença e autonomia: proteção da diversidade no direito privado em relação ao exercício individual das liberdades sexual e religiosa. In: FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão (coord.). Direito à diversidade. São Paulo: Atlas, 2015, p. 67-68
[7] A classificação foi originalmente trabalhada na obra: AZEVEDO, Júlio Camargo de. Vulnerabilidade: critério para adequação procedimental – a adaptação do procedimento como garantia ao acesso à justiça de sujeitos vulneráveis. Belo Horizonte: Editora CEI, 2021, p. 76-81.
[8] “Vulnerability, in sum, should not be seen as a (semi-)static property of a person that exists independently of a person’s relation to their environment; quite to the contrary, it is precisely a person’s dynamic relationship to their environment that causes them to move in and out of states of vulnerability, depending on the circumstances”. MICKLITZ, Hans-W.; HELBERGER, Natali; STRYCHARZ, Joanna et al. EU consumer protection 2.0: Structural asymmetries in digital consumer markets. Bruxelas: BEUC, mar. 2021, p. 26.
[9] “In the digital society, vulnerability is architectural because the digital choice architectures we navigate daily are designed to infer or even create vulnerabilities. The vulnerabilities – be they dispositional or occurrent – that consumers can experience are not an unfortunate by-product of digital consumer markets; vulnerabilities are the product of digital consumer markets”. MICKLITZ; HELBERGER; STRYCHARZ et al., EU consumer protection 2.0…, op. cit., p. 23.
[10] FLORIDI, Luciano. The fourth revolution: how the infosphere is reshaping human reality. Oxford: Oxford University Press, 2014.