2020 é um ano marcado pelo contexto de crises com predominância do direito à saúde e do direito à vida. A pandemia da Covid-19, apesar de recente, deixa sinais claros de ser um marco histórico para humanidade, não só pelas preocupações na seara da saúde, considerando a velocidade extraordinária de sua propagação, mas também pelos seus reflexos em outras áreas, sinalizando uma recessão econômica de proporções ainda desconhecidas. A busca por soluções imediatas precisa enfrentar o desafio de rompimento com planejamento orçamentário e nessa “disputa”, os direitos sociais ficam mais prejudicados do que antes da pandemia.
A produção normativa da pandemia adota por base o Decreto Legislativo nº 6/2020 que reconhece a ocorrência do estado de calamidade pública para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. E nesse esteio, surgiu a emenda constitucional n. 106/2020, a qual introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o assim chamado “regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia”, popularmente conhecido como orçamento de guerra:
Art. 1º Durante a vigência de estado de calamidade pública nacional reconhecido pelo Congresso Nacional em razão de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente de pandemia, a União adotará regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para atender às necessidades dele decorrentes, somente naquilo em que a urgência for incompatível com o regime regular, nos termos definidos nesta Emenda Constitucional.

A ideia trazida pela Emenda Constitucional 106/2020 parte da premissa de que há uma situação emergencial, decorrente da crise sanitária de natureza internacional, que autoriza a flexibilização de inúmeras regras tradicionais do Direito Público e Privado, inclusive no âmbito fiscal e das contratações públicas.
A nosso ver, a divulgação de que a Emenda Constitucional 106/2020 traz um orçamento de guerra parece consistir em um argumento retórico que permita a flexibilização de importantes e tradicionais controles impostos ao Poder Público.
Este orçamento paralelo está diretamente ligada à pandemia do “coronavirus” e a dificuldade de implementar ações coordenadas entre os poderes em busca do direito fundamental à saúde. Portanto, identificamos uma situação de grave crise humanitária de extensão ainda desconhecida que exige esforços extraordinários das finanças públicas para prover os recursos financeiros para os gastos públicos imprescindíveis para enfrentamento do coronavírus e à realização dos direitos humanos nesse período de exceção.
A “disputa” fica clara ao delimitar o caso da seguridade social nas contratações públicas durante a pandemia, particularmente à discussão da disposição contida no art. 3º, p. único, da Emenda Constitucional 106/2020:
Parágrafo único. Durante a vigência da calamidade pública nacional de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional, não se aplica o disposto no § 3º do art. 195 da Constituição Federal.
Esse dispositivo faz menção à seguinte norma constitucional:
3º A pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.
Em outros termos: encontra-se revogada temporariamente a exigência de regularidade fiscal-previdenciária para a contratação com o Poder Público, em todos os níveis (Federal, Estadual e Distrital e Municipal), durante o período em que perdurar o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo 6/2020.
A cláusula contida no art. 195, § 3º, da Constituição Federal de 1988 reside em uma das garantais mais relevantes e tradicionais em termos de sustentabilidade econômica da Seguridade Social, prevista desde a redação original da Carta.
Trata-se de um mecanismo de enforcement do financiamento e sustentabilidade da Seguridade Social, pois as empresas que tiverem dívidas tributárias para com a Previdência Social não poderão participar das contratações públicas e não poderão receber incentivos fiscais ou creditícios.
A Seguridade Social é pautada pelo princípio da solidariedade social, contido no art. 195, caput, da Constituição Federal, pelo qual toda a sociedade, direta ou indiretamente, deve colaborar para o financiamento desta importante política pública social. Nesse formato, o dever de recolher contribuições previdenciárias para inclusive configurar um dever fundamental.
Além disso, as medidas previstas na emenda constitucional 106/2020 devem ser adotadas com legalidade e moralidade para que sejam assegurados os direitos fundamentais no contexto de exceção; para que mais vidas sejam salvas. Ao revés, tudo indica que se reflete com a fragilidade do sistema de custeio da seguridade social, reduzindo a margem de segurança jurídica das contratações públicas.
Do ponto de vista prático, essa disposição criada pelo art. 3º, p. único, da Emenda Constitucional 106/2020, pode frustrar a própria contratação pública, visto que é muito possível que aquelas empresas que se encontram em situação de dívida para com a Seguridade Social não possuam condições estruturais e econômicas para honrar o contrato com a Administração Pública.
Embora seja relevante ao contexto atual o reaquecimento da economia, o que pode ser alcançado com renúncias de receitas com controle de resultados ou com linhas de crédito – mas não se consegue este intento ao enfraquecer a exigência de regularidade nas contratações públicas. Isso viola inclusive os próprios princípios constitucionais, bem como aqueles previstos na Lei 8666/93.Contribuir para a insegurança nas contratações públicas não viabiliza o equilíbrio, tampouco a estabilidade das contas públicas.
A norma trazida pelo art. 3º, p. único, da Emenda Constitucional 106/2020, parece suscitar o que o jurista alemão Otto Bachoff vislumbra a respeito da inconstitucionalidade de normas constitucionais (BACHOFF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Trad. José Manual M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 1994).
Esse conceito possui repercussão na jurisdição constitucional brasileira, que admite a possibilidade de controle de constitucionalidade das normas constitucionais derivadas. Nestes termos, pode-se cogitar de eventual incompatibilidade desse trecho da Emenda Constitucional 106/2020 com os princípios da Seguridade Social constantes do texto original da Constituição Federal.
Nenhuma legislação emergencial ou qualquer jurisprudência de crise pode ser adotada para, extrapolando as respostas emergenciais que devem ser adotadas para o momento excepcional vivido, anular princípios e regras constitucionais estruturantes do modelo jurídico inaugurado em 1988.