É corriqueira a afirmação de que a Lei nº 8.137/90, notadamente seu artigo 1º, tipifica como crime contra a ordem tributária apenas a fraude cometida em momento anterior à constituição do crédito tributário.[1]
Costumeiramente, acompanha essa assertiva o apontamento de que o mero inadimplemento do tributo não pode resultar em incriminação, do que muitos extraem que não se vislumbra a possibilidade de constatar a ocorrência de crime tributário na fase do pagamento do tributo.[2] Será essa uma premissa incólume?
De pronto, pode-se destacar que a realidade fática escancara uma insuficiência da proteção penal do artigo 1º da Lei nº 8.137/90 ao bem jurídico erário, à lealdade do contribuinte e à confiança entre cidadãos ao deixar de criminalizar a conduta de fraude após a constituição do crédito tributário.
Isso porque os devedores contumazes aprenderam a dançar conforme a música e, há muito, vêm apresentando declarações fidedignas ao Fisco. Porém, recorrem a inúmeros mecanismos de blindagem patrimonial para se furtarem ao cumprimento de suas obrigações tributárias.
Exemplo típico é a sucessão empresarial fraudulenta. Nesse caso, a empresa endividada é irregularmente “fechada”, e outra é “aberta”, normalmente “em nome” de uma interposta pessoa (um “laranja”) para permitir a continuidade da atividade empresarial, relegando o passivo tributário.
O dolo de promover o engodo da administração tributária e burlar o dever solidário de pagar tributos sem qualquer justificativa está claramente presente, embora a conduta, na visão de alguns, pareça não estar tipificada como crime tributário. Essa lacuna talvez devesse ser preenchida com uma reforma legislativa e a criação de um tipo de fraude fiscal estruturada.[3]
No entanto, uma nova perspectiva pode nos levar à conclusão de que já existem instrumentos na legislação posta, ainda que a pena possa parecer desproporcional à lesão causada. Nesse sentido, é preciso olhar atentamente o inciso I do art. 2º da Lei nº 8.137/90. Diz seu texto:
Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo; (...)
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Com efeito, se é certo que o mero inadimplemento tributário é irrelevante em termos penais, nas situações em que houver conduta de conteúdo de desvalor ético-social grave que perpasse a pura e simples inadimplência, o reforço punitivo pode ser vislumbrado.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já sinalizou a possibilidade de tratamento diferenciado a contribuintes que atuam com deslealdade em, ao menos, duas ocasiões.
A primeira manifestação relevante (embora não diretamente relacionada ao aspecto penal) ocorreu em 2013, quando o STF concluiu o julgamento do RE nº 550.769, relatado pelo min. Joaquim Barbosa, e placitou a constitucionalidade do art. 2º, II, do DL nº 1.593/77, admitindo o cancelamento do registro especial das empresas fabricantes de cigarro no caso de não cumprimento de obrigações tributárias principais ou acessórias.
No referido julgado, inclusive, o min. Ricardo Lewandowski bem delimitou a sensibilidade da questão, classificando a conduta dos contribuintes como uma macrodelinquência tributária reiterada operacionalizada por meio de “firmas que se dedicam a essa atividade de forma ilícita, na clandestinidade”, já que “quando o Fisco fecha uma dessas empresas, imediatamente outra é reaberta, e assim sucessivamente, sem pagar o IPI, numa concorrência absolutamente predatória”.
Como segunda manifestação relevante, mais recentemente (em dezembro de 2019), e desta vez com uma analise direcionada à ótica penal, o STF julgou o RHC nº 163.334, relatado pelo min. Roberto Barroso, que tratava de denúncia oferecida em face de contribuinte do ICMS que efetuara a repercussão nos preços das mercadorias vendidas aos consumidores (ou seja, “cobrara” destes os valores relacionados ao imposto) mas não realizou o recolhimento de tais montantes aos cofres públicos.
Destaque-se que, naquela oportunidade, o contribuinte tinha declarado a sua obrigação tributária ao Fisco. Ainda assim, o Ministério Público de Santa Catarina entendeu que haveria enquadramento no tipo penal do art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/90 e, ao final, o STF firmou a seguinte tese:
O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90.
Em Plenário, o relator (min. Barroso) fez justamente constar que muitos contribuintes passaram a engendrar fraudes no momento do pagamento do crédito tributário, embora declarem regularmente suas obrigações fiscais (condutas adotadas pelos devedores contumazes). Nas suas palavras:
Portanto houve uma migração do crime de sonegação para o crime de apropriação indébita, porque aí eu não pago e não tenho nenhuma consequência de natureza penal.
Com todas as vênias, não é esse tipo de conduta que o Direito deseja estimular: descriminalizar uma conduta para que os sonegadores possam então passar para uma conduta que não seja criminalizada.
Se é indubitável que o histórico jurisprudencial nos municia para afirmar a possibilidade de haver fraude após a constituição do crédito tributário, é preciso firmar o olhar para o texto da lei e avaliar se a dogmática ratifica esse entendimento de que é possível constatar a ocorrência de crime tributário na fase do pagamento do tributo.
Embora seja observada uma certa relação de proximidade no que tange à redação do art. 2º, I e do art. 1º, a análise das manifestações doutrinárias sobre o texto revela uma série de posições que, longe de aclarar, trazem muitas dúvidas ao intérprete.
Enquanto algumas interpretações enxergam o texto em análise como uma tentativa do crime do artigo 1º, outras entendem que ambos seriam idênticos e que, porque mais benéfico, o artigo 2º deveria prevalecer.
Das muitas opções que, se expostas detalhadamente ultrapassariam o escopo desse texto, parece correto adotar aquela segundo a qual o art. 1º refere-se a fraudes relacionadas às obrigações tributárias acessórias correspondentes à ocorrência do fato gerador (ou ainda na transferência da própria responsabilidade tributária, como pretendemos abordar em artigo futuro), ao passo que o art. 2º se refere a fraudes para evitar o cumprimento da obrigação tributária principal (pagamento).[4]
Trata-se do instrumento tendente a reprimir as condutas adotadas pelos devedores contumazes, que deliberadamente não adimplem os créditos tributários, e operam fraudes para ensejar a frustração das cobranças vindouras, concorrendo no mercado com ampla vantagem.
É importante apontar que a posição aqui adotada guarda paralelos internacionais[5] e decorre da própria literalidade dos tipos penais, uma vez que:
o art. 2º, I, menciona expressamente a realização de fraudes para “eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo”; e
o art. 2º, II, trata do ato de “deixar de recolher (...) valor de tributo ou de contribuição social”, acresça-se, com contumácia e dolo de apropriação .
A interpretação de que o art. 2º da Lei nº 8.137/90 opera em relação às fraudes relacionadas ao adimplemento do crédito tributário é reforçada diante da similaridade da sanção cominada à que foi atribuída pelo legislador ao crime de fraude à execução (CP, art. 179), já que há evidente interseção entre os referidos tipos penais.
Também em reforço ao entendimento ora citado, note-se que um dos trechos do art. 2º, I, expressamente menciona a incidir o crime sobre declaração falsa ou a omissão em relação “rendas, bens ou fatos” para eximir-se do pagamento de tributo.
Tais palavras consubstanciam os signos presuntivos de riqueza[6] sobre os quais se assentam a capacidade contributiva, e que devem ser levados ao conhecimento do Fisco por expressa previsão legal.
Portanto, na linha aqui adotada, o art. 2º, I reprime situações em que a constituição do crédito tributário (inclusive pela declaração do contribuinte) é hígida, mas o seu pagamento resta deliberadamente inadimplido mediante fraudes para garantir o locupletamento por meio da falta de cumprimento da obrigação fiscal.
Trata-se de posicionamento que, superando as interpretações redundantes, incoerentes, nebulosas ou despiciendas, traz efetiva utilidade prática ao dispositivo e integra uma lacuna aparente do ordenamento.
Não se quer, por óbvio, afastar a subsidiariedade do Direito Penal e utilizar instrumentos de coação para que os contribuintes honrem obrigações tributárias e, portanto, cívicas.
No entanto, há que se fazer o devido balanço dos interesses envolvidos e, utilizando os devidos sistemas de incentivo, aumentar o custo de condutas desleais de alguns agentes do mercado – a minoria deles, ressalte-se, mas com grande impacto no orçamento público[7] – que, embora declarem regularmente seus créditos, optam deliberadamente, com fraude e contumácia, por não efetuar seu pagamento, ensejando enriquecimento ilícito, desequilíbrio concorrencial e agravando a injustiça fiscal.
O episódio 50 do podcast Sem Precedentes faz uma análise da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal nesta semana e que pode acelerar a aplicação de vacinas contra a Covid-19. Ouça:
[1] Fernando Galvão esclarece que a evasão é necessária para a configuração desse tipo penal, definindo-a como “conceito que implica emprego de fraude (ato ilícito), para evitar o cumprimento de obrigação fiscal que foi instituída”. GALVÃO, Fernando. Direito Penal Tributário: imputação objetiva do crime contra a ordem tributária. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, p. 2015, p. 203.
[2] No mesmo sentido, MARCELO ALMEIDA RUIVO[2] afirma que “A conduta de não pagamento de tributo regularmente declarado não pode caracterizar os crimes do art. 2º, da Lei 8.137/90”
[3] A expressão não é nova, tendo sido utilizada no Protocolo ICMS nº 66/09, do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), fruto de consenso de fazendas estaduais e Receita Federal do Brasil:
“Entende-se por fraude fiscal estruturada a de natureza penal tributária, cujas principais características são as seguintes:
a) estruturadas através de mecanismos complexos;
b) perpetradas por grupos especialmente organizados para tais fins (organizações criminosas);
c) operacionalizada com o emprego de diversos artifícios como dissimulação de atos e negócios, utilização de interpostas pessoas, falsificação de documentos, simulação de operações, blindagem patrimonial, operações artificiosas sem fundamentação econômica, utilização de paraísos fiscais, utilização abusiva de benefícios fiscais, utilização de empresas sem atividade econômica de fato para absorver eventuais responsabilizações, etc.;”
[4] SCHOERPF, Patrícia. Crimes contra a ordem tributária: aspectos constitucionais, tributários e penais. 2ª ed. Curitiba : Juruá, 2010, p. 177.
[5] Na Itália, por exemplo, o artigo 11 da Lei sobre Infrações Fiscais (Legge sui Reati Tributari) prevê o crime de subtração fraudulenta do pagamento de impostos (Sottrazione fraudolenta al pagamento di imposte). Nos Estados Unidos, o § 7201 (“Attempt to evade or defeat tax”) do Código de Receitas Internas (Internal Revenue Code) penaliza como crime grave (“felony”), de acordo com o Tax Crimes Handbook do IRS a intencional tentativa de evadir ou derrotar a constituição (assessment) do tributo e a intencional tentativa de evadir ou derrotar o pagamento do tributo. Nesse último caso, de acordo com o que consta no Criminal Tax Manual desenvolvido pelo DOJ , a Suprema Corte dos Estados Unidos, ao apreciar o caso Spies v. United States, firmou o entendimento de que o delito em análise pressupõe a adoção de atos afirmativos de evasão, não sendo suficiente, portanto, a simples falta de pagamento. Esta baliza ficou conhecida como a Spies evasion doctrine constituem justamente as tipologias de fraudes praticadas pelos devedores contumazes
[6] OLIVEIRA, Ricardo Rachid de. A relevância penal da inadimplência tributária. Curitiba: Juruá, 2013, p. 78.
[7] Os Grandes Devedores representam 0,6% do total de devedores da Fazenda Nacional e são responsáveis por 60% da dívida. Dados extraídos de: <https://www.gov.br/pgfn/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/pgfn-em-numeros-2014/pgfn-em-numeros-2020/@@download/file/pgfn-2020_2.pdf>.