Os poucos tratados contra a dupla tributação assinados pelo Brasil geram, ainda hoje, inúmeras controvérsias, seja em relação à sua abrangência sobre os tributos nacionais, seja sobre as próprias estipulações para evitar a dupla tributação.
Por muitos anos, discutiu-se se a CSLL — criada em momento posterior à assinatura de muitos dos tratados firmados pelo Brasil — estaria abrangida pelos tratados contra a bitributação (TDTs) que não a mencionassem expressamente, tendo em vista a existência de uma semelhança substancial entre ambos os tributos e a regra prevista nos art, 2, § 2, dos TDTs assinados pelo Brasil, que garante a aplicação dos tratados a tributos substancialmente semelhantes — caso do IRPJ e da CSLL.
No cenário nacional, a controvérsia quanto à abrangência dos TDTs à CSLL teria sido solucionada com a publicação da Lei 13.202/2015, que, em seu artigo 11[1], reconhece a aplicação dos acordos internacionais à CSLL.
No contexto internacional, o Conselho de Estado francês foi levado a analisar (i) a abrangência do TDT firmado entre a França e o Brasil[2] sobre contribuições previdenciárias de ambos os países, e (ii) a possibilidade de o Estado de residência do contribuinte apurar uma mais-valia já tributada no Estado de origem (Estado onde se situam os bens ou direitos).
No caso julgado em 14 de abril de 2022[3], a “Sra. F”, residente na França, realizou um ganho de capital no valor de 3.209.281 euros em 2008 em consequência da venda de ações detidas em uma sociedade de capital brasileira, cujos ativos consistiam principalmente em imóveis localizados no Brasil.
A “Sra. F” não mencionou esse ganho de capital em sua declaração de imposto de renda francesa, acreditando que a renda era exclusivamente tributável no Brasil. As autoridades fiscais francesas consideraram nesta situação que a França tinha competência tributária e, portanto, autuaram a contribuinte exigindo o recolhimento do imposto sobre a mais-valia e das contribuições sociais adicionais, também incidentes sobre a renda.
Através do Acórdão nº 455943, proferido em 14 de abril de 2022[4], o Conselho de Estado francês colocou a controvérsia novamente em prática ao reconhecer não somente que as contribuições sociais com base em rendimentos sujeitos ao tributo sobre a renda, ainda que criados após a entrada em vigor do TDT, constituem, para a aplicação deste, tributos de natureza semelhante ao imposto, mas também que, em se tratando de ganho de capital, e na ausência de tributação exclusiva no Estado de origem, o Estado de residência tem seu direito residual de tributação, nos termos do artigo 13 da Convenção modelo da OCDE.
Aplicação do tratado tributário às contribuições sociais francesas
O artigo 2º do tratado em questão dispõe na alínea a) do seu 1º, que os “impostos atuais aos quais se aplica a Convenção” são para a França “o imposto sobre sociedades, incluindo qualquer retenção na fonte, o prêcompte, ou qualquer pagamento antecipado referente aos impostos visados acima”. Este artigo inclui, em seu § 2º, cláusula de aplicação “aos impostos futuros de natureza idêntica ou análoga que venham a acrescer aos impostos atuais ou a substituí-los”.
Quanto a este ponto, a dificuldade do caso concreto consistia em determinar se as contribuições previdenciárias francesas, também instituídas após a celebração do acordo franco-brasileiro, poderiam atender à definição de “impostos futuros de natureza idêntica ou análoga” ao imposto de renda.
Assim, em que pese a definição da controvérsia relativa à aplicação do TDT à CSLL com o advento da Lei 13.202/2015, tal análise ainda não havia sido definida pela jurisprudência francesa no que diz respeito às contribuições previdenciárias locais.
A resposta finalmente fornecida pela Corte Superior francesa é clara e está de acordo com as discussões doutrinárias sobre o tema: as contribuições destinadas à segurança social baseadas em rendimento também sujeito, na França, ao imposto sobre a renda, ainda que criadas após a entrada em vigor do acordo, constituem impostos de natureza semelhante ao do imposto de renda.
Após uma longa batalha interna acerca da real natureza jurídica das contribuições previdenciárias baseadas em rendimento também sujeito, na França, ao imposto sobre a renda, a Corte Superior finalmente pacificou a questão ao declarar que essas contribuições possuem natureza jurídica equiparadas ao imposto de renda.
Com efeito, de acordo com jurisprudência constante do Conselho Constitucional Francês, a Contribuição Social Generalizada (CSG) é, para o direito interno[5], um imposto sobre o rendimento que se enquadra na categoria de tributação prevista pelo artigo 34º da Constituição Francesa de 4 de outubro de 1958[6].
Enquanto imposto, a CSG, apesar de ter finalidade específica e se destinar ao “financiamento de direitos a prestações e vantagens proporcionadas pelos regimes de Segurança Social”, se difere das demais contribuições sociais ante a inexistência de contrapartida específica ao contribuinte.
Ou seja, diferentemente das demais contribuições sociais cujo recolhimento abre direitos ao contribuinte, que passa a se beneficiar de cobertura total ou parcial em matéria de saúde, aposentadoria, desemprego, etc., o recolhimento da CSG não implica em nenhum direito particular.
Assim, através do acórdão em análise, a Corte Superior fez a interpretação sistemática do direito doméstico e do tratado franco-brasileiro para reconhecer a aplicação das disposições normativas à CSG, de modo que, no caso concreto, a contribuição social exigida pelo fisco francês, no valor inicial de 577.670 euros, foi reduzida para 157.837 euros para levar em conta o tributo que já havia sido pago pela contribuinte no Brasil (419.833 euros).
Tributação da mais-valia no Estado onde se situa o imóvel não obsta tributação pelo Estado de residência do contribuinte
A solução proferida pelo Conselho de Estado em 14 de abril de 2022, além de pacificar a questão acerca da aplicação das previsões do TDT às contribuições sociais com base em rendimentos sujeitos ao tributo sobre a renda, sejam brasileiras ou francesas, vai mais além ao interpretar também o artigo 13 do TDT e decidir que um ganho de capital imobiliário realizado no Brasil por um residente francês seria passível de ser tributado em ambos os Estados.
Assim, ainda que diante da alienação de ações de uma sociedade cujo patrimônio seja constituído essencialmente por bens imóveis, restou reconhecido que o artigo 13 do TDT não prevê a tributação exclusiva no Estado de origem. Em tradução livre:
“É pacífico que o ganho de capital realizado pela Sra. F é oriundo da venda de ações de uma empresa cujo patrimônio consiste principalmente em imóveis localizados no Brasil. Assim, esse ganho de capital estava entre os rendimentos a que se refere o nº 1 do artigo 13º do tratado fiscal franco-brasileiro, tributável no Brasil por força dessas estipulações, sem que estas constituam obstáculo à submissão, em França, do ganho de capital ao imposto de renda e contribuições previdenciárias, sujeito à atribuição de crédito tributário de que o recorrente se beneficiou.”
Consequentemente, no caso concreto, a contribuinte, residente francesa teve que declarar na França o ganho de capital realizado no Brasil e eliminar a dupla tributação mediante a aplicação de crédito tributário correspondente ao imposto brasileiro.
Ao reafirmar esta posição, o Conselho de Estado sacraliza o entendimento de que o TDT prevê o direito não exclusivo do Estado em que se situam os bens imobiliários de tributar os ganhos resultantes da sua venda, ou da venda de participações societárias assim constituída, sem, contudo, precisar que o Estado de residência do beneficiário dos ganhos está privado do poder de tributar os seus próprios residentes com base nos mesmos ganhos.
[1] Art. 11. Para efeito de interpretação, os acordos e convenções internacionais celebrados pelo Governo da República Federativa do Brasil para evitar dupla tributação da renda abrangem a CSLL.
[2] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/acordos-internacionais/acordos-para-evitar-a-dupla-tributacao/franca/decreto-no-70-506-de-12-de-maio-de-1972 - Acessado em 28/04/2022.
[3] https://www.conseil-etat.fr/fr/arianeweb/CE/decision/2022-04-14/455943 - Acessado em 28/04/2022.
[4] https://www.conseil-etat.fr/fr/arianeweb/CE/decision/2022-04-14/455943 - Acessado em 28/04/2022.
[5] Apesar das longas discussões pela jurisprudência nacional, o TJUE (TJCE – Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias à época) considerou, através da Sentença 169-98 de fevereiro de 2000, que a CSG deveria ser equiparada a uma contribuição para a seguridade social de acordo com a lei europeia, de modo a evitar que os trabalhadores transfronteiriços residentes em França e que trabalham noutro Estado tivessem de pagar a CSG francesa além das contribuições para a segurança social de outro Estado europeu.
Finalmente, o Conselho Constitucional confirmou a “dupla natureza” da CSG, imposto na França e contribuição social no direito europeu.
[6] Em tradução livre: “A lei estabelece as regras relativas: (…) - à base, à taxa e às modalidades de cobrança dos impostos de qualquer natureza; o sistema de emissão de moeda”