Fachada do Congresso Nacional / Crédito: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Os Bancos Multilaterais de Desenvolvimento (em inglês, Multilateral Development Banks – MDBs) são organizações internacionais e se constituem como sujeitos do Direito Internacional Público, junto com os Estados e indivíduos.
Em síntese, uma organização internacional é criada por meio de um tratado internacional, formada por Estados ou por outras organizações internacionais (como o caso da Organização Mundial do Comércio que possui a União Europeia como um de seus membros), tendo como objetivo a realização de uma competência atribuída por seus membros.
Desde o parecer consultivo do Caso Bernadotte de 1949, emitida pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), as organizações internacionais possuem personalidade jurídica própria no Direito Internacional e diferenciada dos seus Estados membros.
Além disso, as organizações internacionais possuem órgãos internos específicos a realizar as competências legislativas (conselho), executivas (comissão), administrativas (secretariado) e, inclusive, judiciárias (cortes internacionais e demais órgãos de solução de controvérsias).
A exemplo da Organização das Nações Unidas (ONU), criada pela Carta de São Francisco de 1945, o seu órgão legislativo é a Assembleia Geral, a atuação executiva é realizada pelo Conselho de Segurança e demais comissões especificas, e as questões administrativas pelo Secretariado-Geral da ONU, atualmente comandado pelo português António Guterres.
Quanto aos Bancos Multilaterais de Desenvolvimento, enquanto organizações internacionais, estes possuem como objetivo institutional a promoção ao desenvolvimento dos países por meio de empréstimos ou doações a financiar aquisições de bens e serviços e realização de obras públicas.
Dentre os MDBs, citam-se os bancos tradicionais, criados no pós-guerra, como o Grupo Banco Mundial, em que desponta o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), criado em 1944 no Acordo de Bretton Woods, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco de Desenvolvimento da Ásia, estes últimos criados na década de 1960.
Com o forte crescimento econômico das economias emergentes desde o início do século XXI, principalmente pela China e Índia, foram estabelecidos o Banco de Investimento e Infraestrutra da Ásia, de maior capital chinês, criada em 2016, e o Novo Banco de Desenvolvimento (New Development Bank – NDB), fundado em 2014 na Cúpula dos BRICS em Fortaleza, Ceará.
Quando se trata de recursos decorrentes de empréstimos ou doações dos MDBs destinados à Administração Pública, em seus diferentes entes federados, deve-se observar as regras previstas na legislação de compras governamentais.
A Lei Geral de Licitações de 1993 (Lei Federal nº 8666) disciplina as compras realizadas com orçamento público brasileiro e dispõe de forma marginal sobre as aquisições, obras e serviços financiados com recursos dos MDBs.
Sua disposição encontra-se prevista no § 5º do art. 42 e dispõe que, para a realização de obras, prestação de serviços ou aquisição de bens com recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de MDB de que o Brasil seja parte, são admitidas na licitação as condições próprias dessas organizações internacionais, afastando a aplicação da Lei Federal nº 8666/93. Para tanto, as normas internacionais de licitação dos MDBs devem atender aos seguintes requisitos:
I. Estar previstas em tratado internacional aprovado pelo Congresso Nacional;
II. Garantir o critério de seleção da proposta mais vantajosa para a Administração (critério de menor preço ou outros fatores de avaliação);
III. Constar expressamente a exigência de atendimento às normas internacionais para receber o financiamento externo;
IV. Não conflitar com o princípio do julgamento objetivo; e
V. Ter despacho motivado do órgão executor do contrato, com a devida ratificação pela autoridade superior, para a utilização das regras internacionais de licitação.[1]
Observa-se que o § 5º do art. 42 consiste em uma exceção à regras nacionais de compras públicas. Além disso, a sua utilização é marcada por conflitos de interpretações pelos tribunais de contas no Brasil.
Grande parte dos conflitos reside na existência de regras de licitação dos MDBs que divergem do texto nacional. Em muitos casos, decisões dos tribunais de contas ocasionaram interrupção no fornecimento de bens ou na realização de obras.[2]
Sendo o Brasil um país emergente e um dos principais tomadores de recursos de MDBs, além de parte atuante na criação de novos bancos multilaterais de desenvolvimento, como o Banco dos BRICS (NDB), é necessário que o Poder Público envolvido em compras governamentais observe a existência de diferentes instrumentos no Direito Internacional Público.
Frente a essa realidade de maior participação dos MDBs na promoção do desenvolvimento em países via fornecimento de recursos à Administração Pública, a Nova Lei de Licitações (Lei Federal nº 14.133/2021) é enfática suas disposições preliminares ao dispor sobre essa possibilidade de compras governamentais com normas externas.
As licitações com regras dos MDBs encontram-se previstas no § 3º do art. 1º da Lei Federal nº 14.133/2021, em que é permitida a sua utilização, desde que sejam condições previstas nos acordos internacionais aprovados pelo Congresso Nacional e ratificados pelo Presidente da República (nova redação com a correção salutar, uma vez que a ratificação de tratados é competência privativa do presidente da República, desde que aprovado previamente pelo congresso, conforme os arts. 49, I, e 84, VIII, ambos da Constituição Federal da República de 1988).
Além disso, dispõe a Nova Lei de Licitações a admissão de condições peculiares à seleção e à contratação constantes de normas e procedimentos dos MDBs, desde que:
I. Sejam exigidas para a obtenção do recurso externo;
II. Não conflitem com os princípios constitucionais;
III. Sejam indicadas no respectivo contrato de empréstimo ou de doação; e
IV. Sejam objeto de parecer favorável do órgão jurídico do contratante do financiamento previamente à celebração do referido contrato.[3]
As condições na Nova Lei de Licitações são mais claras ao identificar que a exigência de regras licitatórias externas deve constar no acordo internacional celebrado entre o Brasil e e o respectivo MDB e no contrato de empréstimo ou de doação assinado com o mutuário (ente federado).
Ressalta-se que o dispositivo determina que as regras licitatórias internacionais devem obedecer aos princípios constitucionais e não à lei brasileira de licitações.
Dessa forma, eventual dispositivo internacional que se diferencie da norma legal brasileira é legalmente válido, desde que obedeça aos princípios constitucionais (art. 37 e seguintes da Constituição Federal da República de 1988). Por fim, o novo regramento nacional assegura que parecer jurídico prévio e favorável do órgão contratante (mutuário) seja exigido antes da realização do certame.
Dessa forma, observa-se que a Nova Lei de Licitações, apesar de sua vigência ocorrer somente após o período de transição de dois anos, define de forma expressa o âmbito de aplicação das regras nacionais, trazendo para as disposições preliminares os limites de sua aplicação legislativa.
O reposicionamento dos dispositivos sobre a utilização das regras externas dos MDBs não se restringe a uma questão de forma ou de redação legislativa. Pelo contrário, revela uma preocupação do legislador em reconhecer e delimitar o alcance da norma nacional frente aos diferentes ordenamentos jurídicos internacionais que o Brasil é parte.
Esse movimento de aproximação brasileira às normas internacionais também é observada na adesão do Brasil ao Acordo de Compras Governamentais (Government Procurement Agreement – GPA) da Organização Mundial do Comércio[4] e às recomendações de compras públicas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), como parte do processo de adesão a esta organização internacional.[5]
[1] BRASIL. Lei Federal nº. 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm>. Acesso em: 6 de abril de 2021.
[2] ALMEIDA, Thiago Ferreira. A natureza jurídica dos empréstimos por organizações internacionais de cooperação financeira: as licitações brasileiras realizadas com normas internacionais. Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG. Orientador: Roberto Luiz Silva. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 19 de maio de 2014. Disponível em: <https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUBD-9XQKCM/1/almeida__thiago_ferreira._a_natureza_jur_dica_dos_empr_stimos_por__organiza__es_internacionais_de_coopera__o_financeira___disserta__o_ufmg.pdf>. Acesso em: 6 de abril de 2021.
[3] BRASIL. Lei Federal nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm>. Acesso em: 6 de abril de 2021.
[4] WORLD TRADE ORGANIZATION - WTO. Brazil submits application to join government procurement pact. 19 de maio de 2020. Disponível em: <www.wto.org/english/news_e/news20_e/gpro_19may20_e.htm>. Acesso em: 6 de abril de 2021.
[5] ALMEIDA, Thiago Ferreira; FERRAZ, Luciano. Compras governamentais na perspectiva das organizações internacionais: adesão do Brasil aos acordos da OMC e da OCDE. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 159-173, out./dez. 2020.