Tarciso Dal Maso Jardim
Consultor Legislativo do Senado Federal para Direito Internacional
O dia tinha começado cheio de expectativas e indefinições naquele 17 de julho de 1998, em Roma. Cinco dias antes o Brasil tinha perdido a final da Copa do Mundo, para surpresa dos italianos, que organizaram várias festas, como a do Hipódromo de Capannelle, para festejar a possível derrota da França. Na sede da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), contudo, onde se estava já há um mês negociando o Estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI), a derrota era inadmissível, em nome de todas as vítimas de guerras e barbáries do século que findava.
A primeira ideia de tribunal penal internacional permanente remontava ao ano de 1872, em projeto doutrinário de Gustave Moynier, um dos fundadores do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Desde então, passado o insucesso do entreguerras – com o não julgamento do ex-imperador da Alemanha pelos atos da Primeira Guerra Mundial e a anistia dos “jovens turcos” pelo genocídio dos armênios, apesar do disposto nos tratados de Versalhes e de Sèvres, bem como a não ratificação do tratado de 1937 de tribunal para julgamento do crime de terrorismo –, o pós-Segunda Guerra Mundial e o pós-Guerra Fria tinham gerado quatro exemplos concretos de tribunais ad hoc: os tribunais internacionais militares de Nuremberg e do Japão, instalados pelos Aliados, e os tribunais internacionais penais para a ex-Iugoslávia e Ruanda, criados pelo Conselho de Segurança da ONU.
A Guerra Fria tinha criado um vácuo entre os dois conjuntos de tribunais, embora o debate rumo a um tribunal permanente nunca tenha findado, como demonstra a citação expressa dessa possibilidade nas convenções para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948 e para a Supressão e Punição do Crime de Apartheid de 1973.
Com o fim da Guerra Fria, abriu-se a chamada década das conferências, verdadeiro oásis do direito internacional, avançando temas como direito das crianças, meio ambiente, direitos humanos, mulher, população e desenvolvimento, desenvolvimento social e assentamentos humanos. O Estatuto do TPI, aprovado já depois da meia-noite de 17 de julho de 1998, foi mais uma grande conquista da época, e entraria em vigor em 2022, após superar várias resistências.
Concebido como organização internacional, com jurisdição não retroativa e complementar a dos Estados, previsão de reparação às vítimas, procuradoria independente, composição com igualdade de gênero, baseado na cooperação, podendo julgar todo crime cometido no território de um Estado-Parte ou por seus nacionais, o TPI possui atualmente 123 Estados-Partes e 31 casos (alguns com mais de um suspeito), emitiu 40 mandados de prisão (21 pessoas foram detidas, 16 continuam foragidas e outras faleceram), 10 condenações e quatro absolvições.
Ademais, o Estatuto de Roma foi ampliado em conferências de 2010, 2017 e 2019, com as tipificações do crime de agressão e certos crimes de guerra, para além dos previstos e do crime de genocídio e dos crimes contra a humanidade, todos imprescritíveis.
Há ainda muitos desafios. Apesar da ampla jurisdição e de poderem Estados não Partes levaram casos individuais, como o fez a Ucrânia, ou o Conselho de Segurança também remeter casos, muitos países de grande poder ainda não ratificaram o Estatuto de Roma, como Rússia, Estados Unidos e China. Igualmente, há vários tipos penais que poderiam ser incluídos, como a proibição de todas as armas de destruição em massa; e, por não ter polícia, o TPI depende do aperfeiçoamento da cooperação internacional; bem como enfrenta dificuldades de avançar processos contra os poderosos países com direito a veto no Conselho de Segurança da ONU e que não ratificaram o Estatuto.
Nada disso diminui o grandioso projeto do TPI, que não pretende ser o protagonista solitário da justiça internacional; ao contrário, faz parte de um projeto coletivo, da sociedade internacional, sendo a primeira obrigação de julgar e reparar dos Estados. Nesse ponto, o Brasil está em dívida, pois até hoje não tipificou todos os crimes internacionais, apesar de há anos tramitarem projetos de lei no Congresso Nacional. Celebremos o dia 17 de julho, mas não parados.