Adriano Teixeira
Doutor e mestre (LL.M) pela Universidade Ludwig-Maximilian (Alemanha). Professor da FGV Direito SP e advogado
No último dia 7, o JOTA veiculou matéria de autoria de Guilherme Pimenta noticiando que a CVM analisaria os casos de corrupção da Lava Jato sob o viés da violação dos deveres de diligência, lealdade e responsabilidade dos dirigentes envolvidos vis-à-vis das companhias por eles geridas ou administradas.1 A importância do tema nos motiva a oferecer alguns pontos de reflexão sob o viés do direito penal.
A matéria relata uma série de alusões a violações do dever de diligência ou de lealdade dos administrados, julgados na esfera penal sob a rubrica da corrupção. Tecnicamente (ou dogmaticamente), contudo, isso causa estranheza, pois só é possível vislumbrar uma responsabilidade dos dirigentes por corrupção ativa, já que o autor do crime de corrupção passiva deve ser um funcionário público. O “dano” causado, ou o bem jurídico violado pela conduta de corrupção, é da Administração Pública, ou seja, do Estado, e não da empresa (o Brasil não conhece, ainda, o crime de corrupção privada) –exceção feita à Petrobrás, cujos dirigentes podem cometer o crime de corrupção passiva, pois se trata de uma sociedade de economia mista.
A CVM, embora não esteja alheia ao interesse público, não é uma instituição de proteção precípua do Estado, senão do mercado de valores mobiliários e de seus protagonistas. Em vários países do mundo (como Alemanha, Portugal, Espanha, Áustria etc.), porém, a quebra do dever de lealdade do dirigente em relação à empresa, caso leve a um prejuízo patrimonial (oriundo, por exemplo, da malversação do dinheiro da empresa para pagamento de propina ou de penalidades impostas em decorrência de condutas infracionais, como a corrupção ativa), é sancionada com base no crime de infidelidade patrimonial ou administração desleal.2 Casos célebres, de repercussão internacional, como Siemens, Mannesmann, FIFA etc., foram julgados também à luz desse delito.
Por isso, se a iniciativa da CVM é inovadora em terras brasileiras, em que não se protege criminalmente a empresa de agressões que partem de dentro, do seu próprio seio (exceção feita aos crimes de gestão fraudulenta e gestão temerária, aplicáveis, porém, apenas a instituições financeiras), não o é nos países em que se tipifica a infidelidade patrimonial ou administração desleal. De todo modo, pode-se interpretar a expressão a “CVM vai julgar atos de corrupção” em sentido lato ou não-técnico: o que a CVM julgará é a violação dos deveres de diligência, responsabilidade e lealdade dos dirigentes, em casos que envolvem crimes de corrupção e outros, como lavagem de dinheiro, formação de cartel, manipulação do mercado etc. Embora o objetivo da autarquia seja a apuração de responsabilidades societárias, o descumprimento dos deveres fiduciários pode ter repercussões penais, mesmo para aqueles administradores que não praticaram ou colaboraram nos atos de corrupção em si.
Isso porque todos aqueles que têm controle, ainda que parcial, sobre atividades da empresa que possam gerar riscos penais para terceiros – por exemplo, a Administração Pública no caso da corrupção; o meio ambiente, nos crimes ambientais; a arrecadação tributária, nos crimes tributários etc. –, têm também o dever de agir para evitar a prática de crimes em suas esferas de controle. Por isso, os standards de cuidado devido estabelecidos pela CVM podem vir a ter impacto na definição do conteúdo concreto do dever de vigilância dos órgãos societários quanto a essas atividades da companhia capazes de gerar riscos para terceiros. Na dogmática penal da omissão, designamos essas pessoas de garantes de vigilância sobre fontes de perigo.
Nas companhias abertas, o controle, em sentido amplo, envolve, prima facie, não só a diretoria, mas também os membros do conselho de administração, já que a administração nas companhias é dual, exercida por esses dois órgãos nos limites de suas competências e poderes. Assim, muito embora as decisões da CVM não fundamentem um dever penal de agir, podem delimitar o conteúdo concreto dos deveres de vigilância dos indivíduos que atuam tanto no conselho, como na diretoria, 3 o que pode ser determinante para a imputação de crimes de corrupção também a diretores e conselheiros por omissão.
Por tais razões, embora a CVM não vá apreciar diretamente a prática do crime de corrupção e nem se vincule aos estritos pressupostos penais da responsabilidade omissiva imprópria, o eventual estabelecimento, nesses precedentes, do que o órgão entende por diligência necessária na supervisão e vigilância por parte dos administradores das empresas, especialmente os integrantes do conselho de administração, poderá ter repercussões penais quanto aos standards do risco permitido, elemento importante para a imputação objetiva do ato de corrupção de outros administradores ou de outros integrantes da empresa a seus dirigentes por omissão a seus dirigentes.
Não se deve perder de vista, ademais, uma relevante distinção existente quanto à responsabilidade dos dirigentes nas esferas administrativa e penal. Ao passo que, para a aplicação de sanções administrativas, basta à CVM verificar se os executivos foram negligentes – isto é, agiram sem o cuidado devido – na tentativa de descobrir atos criminosos cometidos por outros administradores, uma condenação criminal exige a comprovação de que a sua omissão foi dolosa, ou seja, que os executivos tinham ciência dos atos ilícitos e, ainda assim, deixaram de agir para evitar a sua prática. Corrupção, lavagem de capitais, formação de cartel, crimes tributários, contra o mercado de capitais, dentre outros, exigem do agente conhecimento e vontade da prática criminosa, ou seja, dolo, sendo raríssimas as figuras que admitem a punição da modalidade culposa – como, por exemplo, alguns crimes ambientais.
Ainda sobre esse ponto, ressalte-se que não são equivalentes, sob o aspecto penal, as condutas do administrador que se omite em impedir a prática do ato criminoso e daquele que, após a sua prática, deixa de tomar providências para remediar as suas consequências. O cometimento do crime exige a omissão de uma conduta que seria apta a impedir o resultado criminoso – situação que, evidentemente, não pode ocorrer se o titular do dever de vigilância só toma conhecimento do fato já consumado. É claro, contudo, que, na vida real, a ausência de tomada de providências pelos executivos, após a consumação do delito, poderá constituir um indício que, somado a outros, venha a demonstrar que os executivos já tinham anteriormente conhecimento da potencial prática dos atos de corrupção e, apesar disso, permaneceram inertes.
Por fim, a matéria invoca um outro problema, ainda pouco discutido no Brasil: o da aplicação do princípio do ne bis in idem na acumulação de sanções administrativas e penais. Recentemente, o Tribunal de Justiça da União Europeia deu claro sinal no sentido da ilegitimidade do acúmulo de sanções, embora de natureza distintas, impostas com base numa mesma infração. Na hipótese aqui analisada, haveria de se observar se as sanções aplicadas pela CVM não se acumulam de maneira desproporcional com outras penalidades já determinadas na esfera penal (ou mesmo por outros órgãos administrativos). Trata-se, é verdade, de tema complexo, que deve ser desenvolvido com mais vagar em trabalhos futuros, para o qual, todavia, já merece ser chamada a atenção.
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1 https://www.jota.info/tributos-e-empresas/mercado/cvm-resposta-casos-corrupcao-07062018 (acesso em 10/06/2018).
2 Cf. a respeito LEITE, Alaor/TEIXEIRA, Adriano. O principal delito econômico da moderna sociedade industrial: Observações introdutórias sobre o crime de infidelidade patrimonial, em: Revista do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico 1 (2017), Empório do Direito: Florianópolis, p. 15 e ss.
3 ESTELLITA. Responsabilidade de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades por ações, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. Madri; Barcelona; Buenos Aires; São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 139 e ss.; sobre o âmbito de vigilância e limites dos deveres de atuação dos membros do CA, cf. p. 180 ss.