Michelle Holperin
Economista, mestre e doutora em Administração Pública pela EBAPE/FGV. Coordenadora do Projeto de Boas Práticas Regulatórias do UERJ Reg. Fundadora e coordenadora do Projeto Mulheres na Regulação
Muito tem se falado sobre a emenda parlamentar 54 (“EP 54”), incluída no projeto de conversão da Medida Provisória 1.154 em lei, que reorganiza o Poder Executivo para o novo governo. A emenda propõe transferir as funções de regulação e edição de atos normativos infralegais do colegiado das agências reguladoras para conselhos ligados a Ministérios e secretarias.
E se essa proposta parlamentar passasse pelo crivo de uma Avaliação de Impacto Legislativo (“AIL”)? E se o Poder Legislativo brasileiro fizesse como as agências reguladoras do país e avaliasse previamente os efeitos de sua tomada de decisão? Essa é considerada uma das melhores práticas internacionais de órgãos parlamentares e de agências reguladoras dos países da OCDE[1].
Uma análise preliminar sugere que a EP 54 não superaria as primeiras etapas de uma AIL, sendo (mais) uma proposta legislativa com elevado potencial negativo sobre o arcabouço regulatório e institucional do país[2]. A emenda não traz evidências sobre o problema que busca mitigar, não estuda as possíveis soluções para tratá-lo e tem impacto potencial significativo no risco regulatório do país, com efeitos deletérios sobre o nível de investimentos privados no setor de infraestrutura. Explicamos.
A AIL, assim como a análise de impacto regulatório conduzida pelas agências reguladoras, começa com a identificação de um problema, que é uma situação indesejada que demanda uma ação por parte do Estado. Qual seria o problema que a EP 54 busca mitigar?
Ao que parece, o problema seriam os supostos excessivos poderes e deficientes controles sociais[3] das agências reguladoras federais. Este parece ser o pressuposto “oficial”, sem base em evidências, do qual partem diferentes iniciativas legislativas com objetivos similares[4]. Tais propostas se beneficiariam (e muito) ao buscar evidências de que isso efetivamente ocorre. Esse processo começaria com a investigação de uma possível falha regulatória, no caso legislativa, associada às atuais formas de prestação de contas e controle social previstas na Lei das Agências e adotadas na prática por estas organizações.
Uma vez diagnosticado e fundamentado o problema, são estudadas as possíveis alternativas de ação para mitigá-lo. Aqui, encontramos mais um desafio, posto que evidências empíricas indicam não haver “efetiva e plena deliberação em conselhos tripartites com competências regulatórias”. Temos, portanto, uma solução (potencialmente) inadequada para um problema (aparentemente) inexistente.
Central em uma AIL é a avaliação dos impactos potenciais das alternativas de ação. Há um desafio ainda maior nesta etapa. Uma análise preliminar, a partir da literatura teórica e empírica sobre o tema, sugere haver impacto negativo no crescimento econômico e social do país, em especial por meio da redução nos já escassos investimentos em infraestrutura[5].
Estimativas preliminares sobre risco regulatório de magnitude similar indicam uma queda potencial de 30% nos níveis atuais de investimentos privados em infraestrutura[6]. Essa estimativa pode ser utilizada para avaliar, preliminarmente, o impacto potencial da EP 54.
Esses impactos importam. A infraestrutura insuficiente, seja em termos de estoque ou qualidade, é reconhecida como uma das principais barreiras ao crescimento e ao desenvolvimento econômico do país. A necessidade de se garantir investimentos em um ambiente de ajuste fiscal é objetivo de grande relevância. E, dada a limitação fiscal do Estado brasileiro, o setor privado é forte aliado e importante fonte de recursos de longo prazo.
Um arcabouço regulatório adequado, com segurança jurídica e incentivos bem desenhados é um dos quatro os “pilares”[7] para atrair investimentos em um país. A regulação, por meio de agências reguladoras dotadas de autonomia e seguindo as melhores práticas internacionais, sinaliza ao investidor privado maturidade regulatória e segurança jurídica. Em setores de infraestrutura, marcados por contratos de longo prazo, custos afundados e ativos específicos, a decisão do investidor privado depende da sua crença que o Estado irá cumprir no futuro os compromissos assumidos no presente.
Além disso, a teoria econômica[8] sugere forte relação — de correlação e, por vezes, de causalidade - entre as características institucionais e o crescimento econômico de um país (Figura 1). Como implicação, o pilar regulatório é tido como “complementar” às políticas macroeconômicas e fiscais.
Figura 1: Regulação x Renda. Fonte: World Development Indicators (2019), Worldwide Governance Indicators (2019)
Diversos estudos empíricos são exitosos em demonstrar a influência da qualidade regulatória no volume financeiro e no número de projetos direcionados a infraestrutura em economias emergentes[9]. Os resultados, em sua grande maioria, corroboram a teoria institucional, na qual o papel das instituições é primordial para uma maior participação do setor privado.
No Brasil, temos visto empenho na consolidação de um arcabouço regulatório propício a investimentos em infraestrutura[10]. Os esforços de melhoria regulatória não são imediatos. Eles requerem tempo para maturidade e reputação. No entanto, eventuais retrocessos são rapidamente incorporados pelos agentes econômicos, que penalizam sobremaneira a percepção do risco regulatório do país.
Entre 2012 e 2016, por exemplo, o Brasil caiu nove posições no indicador de qualidade regulatória disponibilizado pelo Banco Mundial. Esse período foi demasiadamente afetado por outra medida provisória sem AIL, a MP 579/2012, que impactou negativamente o setor elétrico com efeitos de contágio para diversos setores regulados da economia[11].
Desenhar regras adequadas não deveria ser obrigação apenas de reguladores federais. Iniciativas legislativas, igualmente, podem impor elevados custos à sociedade e redistribuir recursos de forma não transparente. Seria a boa regulação o problema ou a solução?
______________________________________________________________________
1 OECD (2022), Better Regulation Practices across the European Union 2022, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/6e4b095d-en.
2 Em Abril de 2022, a iniciativa do PDL 94 tinha como finalidade impossibilitar a homologação pela ANEEL do reajuste tarifário anual da Enel Distribuição Ceará, com grandes impactos negativos para o setor elétrico.
3 A justificação da EP 54 se limita em afirmar que há a necessidade de maior “transparência, responsabilidade e participação democrática” na deliberação de atividades normativas.
4 No final de 2022, outro deputado federal externalizou preocupação com este mesmo “problema”, conforme matéria “A vanguarda do atraso no saneamento”, publicada pelo Estadão.
5 No Brasil, o volume de investimento em infraestrutura (público e privado) foi inferior a 2% do PIB a.a. em média na última década, bem abaixo da meta para um crescimento sustentável, estimada entre 4% – 5% do PIB a.a.
6 Rocha, K. (2022). Risco Regulatório e Estimativa do Impacto Financeiro Potencial do PDL 94/2022 nos Investimentos em Infraestrutura. Nota Técnica IPEA 99/2022.
7 Os outros três são equilíbrio macroeconômico, planejamento institucional e políticas de financiamento.
8 Acemoglu, D; Robinson, J (2010). The Role of Institutions in Growth and Development. Review of Economics and Institutions, v1 (2).
9 Rocha, K. (2020). Investimentos Privados em Infraestrutura nas Economias Emergentes: a importância do ambiente regulatório na atração de investimentos. Texto para Discussão 2584. IPEA.
10 Destacamos: a Lei Geral das Agências, a Lei das Estatais, o Programa de Parcerias de Investimento, o Novo Marco Legal de Saneamento Básico e a Nova Lei do Gás. Além do PL 3453/2008, que altera o Marco Regulatório das parcerias público-privadas e o PL 2646/2020 de debêntures de infraestrutura que amplia o mercado de títulos coorporativos.
11 Bragança, G.F.; Pessoa, M; Rocha, K (2014). Intervenção regulatória, volatilidade e contágio: um estudo dos casos da energia elétrica e das telecomunicações no Brasil. Revista Brasileira de Finanças, v. 12, nº3 p. 385-409.