O direito da concorrência, geralmente pautado pela sua objetividade, argumenta ser uma política neutra para questões de gênero. Em 2017, porém, HUBBARD defendeu que o sexismo priva as mulheres de competir em condições de igualdade com os homens, causando impactos tão nefastos equiparáveis aos gerados por monopólios em relação a startups e pequenas empresas[1].
Em 2018, PIKE argumentou que vieses discriminatórios contra a participação econômica das mulheres podem gerar efeitos similares aos decorrentes da aplicação de regulações anticompetitivas[2].
Assim, em novembro de 2018, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) começou a levantar esse debate de modo sistemático, discutindo a viabilidade de uma “lente de gênero” (gender lens) identificar ferramentas adicionais nos mercados tradicionais, bem como comportamentos específicos dos consumidores e das empresas[3].
Esse debate se aprofundou nos últimos anos, com o surgimento de redes de engajamento feminino – como a Women in Antitrust (WIA)[4] e a Women Inside Trade (WIT)[5] no Brasil –, com a publicação de artigos acadêmicos sobre a interface entre antitruste e gênero, com a publicação de livros escritos exclusivamente por autoras da seara concorrencial[6], com a realização de eventos sobre a disparidade de gênero na seara específica do direito da concorrência, dentre outras iniciativas.
Esse parece ser, assim, um caminho sem volta, no qual novos debates trarão nova luz ao direito da concorrência, no Brasil e no mundo. Tanto é assim que, em 25 de fevereiro de 2021, a OCDE realizará um dia inteiro de debates sobre as formas de se viabilizar uma política concorrencial mais inclusiva para questões de gênero[7].
A nosso ver, as interfaces sobre gênero e concorrência podem ser vistas como um “fenômeno poliédrico”[8], já que possui não apenas um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que o integram. Neste artigo, pretende-se apresentar breves linhas, com pretensão exploratória e não exaustiva, sobre seis desses perfis de gênero e concorrência: (a) poder de mercado e gênero (“gênero pelo perfil social”); (b) posição das mulheres nas empresas (“gênero pelo perfil da oferta”); (c) mulheres e controle de condutas (“gênero pelo perfil dos ilícitos concorrenciais”); (d) mulheres como grupo de consumidoras (“gênero pelo perfil da compra”); (e) mulheres e controle de estruturas (“gênero pelo perfil da definição de mercado relevante”); e (f) representatividade das mulheres no antitruste (“gênero pelo perfil da representatividade”).
A respeito da discussão de gênero pelo perfil social (a), debatem-se os entraves culturais, comportamentais e sociais enfrentados pelas mulheres no acesso à educação, capital e mercado de trabalho. Estimativas mostram que as mulheres ainda participam menos que os homens do mercado de trabalho e, quando o fazem, recebem salários significativamente menores[9]. Nesse sentido, de forma ampla, a desigualdade de gênero é capaz de reduzir o padrão de vida de uma população a um custo global de US$ 12 trilhões, ou 16% da renda mundial[10].
Nessa linha, WEICHSELBAUMER sugere – em uma teoria que remonta a BECKER[11] – que reformas estruturais que promovem o desenvolvimento econômico (dentre elas as políticas de incentivo à promoção da concorrência) reduzem o nível de segregação entre os sexos numa sociedade[12]. De maneira bastante resumida, essa teoria prega que existe certa tendência natural em algumas pessoas a se envolver em práticas discriminatórias na contratação de somente determinado “tipo” de pessoas.
No entanto, as sociedades cujos membros estão dispostos a não adotar essa tendência têm maior probabilidade de obter êxito econômico. Em tese, ao contratarem pessoas por seus méritos e atributos, e não por serem de um “tipo” ou de outro (como, por exemplo, serem de um sexo ou de outro), as empresas – e a economia como um todo – se tornam mais eficientes e a sociedade se torna menos discriminatória, inclusive em relação ao gênero.
Já a respeito da discussão de gênero pelo perfil da oferta (b), debate-se o papel das mulheres como empreendedoras, membros de conselhos de administração, diretoras de empresas ou profissionais liberais[13]. Em alguns mercados, empresárias podem encontrar obstáculos sociais e até mesmo legais para registrar uma empresa, possuir bens e propriedades ou acessar crédito para financiar a entrada ou a expansão de sua firma no mercado[14].
Mulheres podem ainda enfrentar dificuldades para exercer determinadas profissões (como, por exemplo, motorista de táxi) ou funções (tais como conselheiras consultivas ou de administração[15]).
Além de desperdiçarem a potencial contribuição feminina à produtividade e ao desenvolvimento dos mercados, tais barreiras à participação econômica da mulher são prejudiciais à concorrência e à eficiência dos setores, podendo inclusive gerar preços mais altos aos consumidores.
Ainda, a respeito da discussão de gênero pelo perfil dos ilícitos concorrenciais (c), debate-se, por exemplo, qual a razão de haver menos mulheres condenadas por infrações à ordem econômica. Seria decorrente de uma tendência maior destas em cumprir com as leis, ou tão somente refletiria a reduzida participação das mulheres em cargos de liderança?
Há, ainda, correlação entre a existência de mulheres em cargos chave de compliance nas empresas e o fato de estas procurarem as autoridades públicas para colaborar em acordos de leniência ou outras formas de acordo subsequentes em casos de cartel? Este será um dos temas debatidos no seminário da OCDE a ser realizado em 25 de fevereiro de 2021.
Ademais, a respeito da discussão sobre gênero pelo perfil da compra (d), debate-se o papel da discriminação de preços a clientes. Isso porque as empresas, ou seus algoritmos, tendem a enxergar os consumidores pela sua disposição em gastar dinheiro por um determinado produto ou serviço, e o fato de se tratar de uma mulher ou um grupo de mulheres pode levar a preços maiores ou menores.
Apesar de, em um primeiro momento, soar injusta, a discriminação de preços pode apresentar benefícios econômicos, segundo alguns teóricos, na medida em que possibilita que um maior número de consumidores tenha acesso ao produto: aqueles dispostos a pagar um preço maior subsidiam o consumo dos que estão dispostos a pagar um preço menor[16]. Por isso, atualmente, no Brasil – e em vários países-membros da OCDE –, a discriminação de preços somente é considerada ilegal se a autoridade antitruste concluir que a conduta decorre de abuso de poder de mercado, como já aconteceu na União Europeia[17].
Adicionalmente, a respeito da discussão de gênero pelo perfil da definição de mercado relevante (e), debate-se a possibilidade de existirem dois mercados inteiramente distintos quando a diferença de preços praticadas for sustentada, o que refletiria não uma discriminação de preços, mas sim uma necessidade de se mudar a própria definição do mercado relevante.
Evidências sugerem que diferenciar – e precificar – uma vasta gama de produtos (que vão desde lâminas de barbear descartáveis até produtos de lavanderia) de acordo com o gênero do consumidor-alvo pode fazer sentido do ponto de vista econômico, já que as escolhas dos indivíduos dependem de sua percepção de identidade e tentar desviá-las dessa tendência é extremamente custoso[18].
Assim, compreender como o gênero pode influenciar a substitutibilidade da demanda, e, portanto, permitir a segmentação de consumidores do sexo feminino, pode ser um fator importante para autoridades de concorrência na definição de mercados relevantes. Este será, também, um dos temas debatidos no seminário da OCDE a ser realizado em 25 de fevereiro de 2021.
Por fim, a respeito da discussão de gênero pelo perfil da representatividade (f), debate-se a inclusão das mulheres que trabalham na seara da defesa da concorrência. Sobre esse tema, cumpre mencionar extensa pesquisa realizada pela rede WIA no Brasil, que destrinchou o perfil de participação das mulheres em consultorias, em escritórios de advocacia e no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE)[19].
A este respeito, observou-se que, embora as mulheres sejam relativamente bem representadas nos dados percentuais agregados de todos os espaços de atuação antitruste pesquisados, esse percentual é consistentemente menor em níveis hierárquicos superiores, o que indica que o caminho para a liderança tem encontrado barreiras não desprezíveis [20].
De tudo o que foi dito, e constatada a noção da interface sobre gênero e concorrência como um “fenômeno poliédrico”, cumpre finalmente retomar a lição de FOX, de que a noção de igualdade está presente nas leis antitruste desde seus primórdios. Assim, cientes de que a defesa da concorrência se concentra particularmente na igualdade de oportunidades, para que todos possam contestar os mercados com base em seus méritos[21], propugna-se pelo retorno do antitruste a tais “primórdios”, sendo, então, mais consciente de seu papel na busca pela igualdade – inclusive aquela que se refere ao gênero.
O episódio 49 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre o que o Supremo Tribunal Federal precisa dizer sobre a prisão de deputados. Ouça:
[1] HUBBARD, Sally. How monopolies make gender inequality worse. Disponível em: <https://www.forbes.com/sites/washingtonbytes/2017/12/20/how-monopolies-make-gender-inequality-worse-and-concentrated-economic-power-harms-women/?sh=5f119b3e1b11>. Acesso em: 3 fev. 2021.
[2] PIKE, Chris. What’s gender got to do with competition policy? OECD On the Level. 2018, March 2nd. Disponível em: <https://oecdonthelevel.com/2018/03/02/whats-gender-got-to-do-with-competition-policy/>. Acesso em: 3 fev. 2021.
[3] Para maiores detalhes sobre os debates conduzidos em novembro de 2018, sugere-se: Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Global forum on competition. Competition policy and gender. 2018, November 29th. Disponível em: <https://www.oecd.org/daf/competition/gender-and-competition.htm>. Acesso em: 15 fev. 2021.
[4] Women in Antitrust (WIA) Brasil. Disponível em: <https://www.womeninantitrust.org/>. Acesso em: 15 fev. 2021.
[5] Women Inside Trade (WIT) Brasil. Disponível em: <https://womeninsidetrade.com/>. Acesso em: 15 fev. 2021.
[6] No Brasil, já foram publicados três livros exclusivamente escritos por autoras do direito da concorrência nacional. Disponíveis em: <https://www.womeninantitrust.org/publicacoes>. Acesso em: 15 fev. 2021. No exterior, a Concurrences já está em sua segunda edição de livro também escrito apenas por mulheres do antitruste internacional. Disponível em: <https://www.concurrences.com/en/all-books/women-antitrust#:~:text=It%20celebrates%20women%20and%20their,private%20practitioners%2C%20economists%20or%20academics.&text=Congratulations%20on%20the%20important%20initiative,Antitrust%3A%20Voices%20From%20the%20Field.>. Acesso em: 15 fev. 2021.
[7] Nesse sentido, ver: Organização para a Cooperação e do Desenvolvimento Econômico. Workshop on gender inclusive competition policy, 25 fev 2021. Disponível em: <http://www.oecd.org/daf/competition/workshop-on-gender-inclusive-competition-policy-agenda-february-2021.pdf>. Acesso em 17 fev. 2021.
[8] A expressão “fenômeno poliédrico” advém da expressão “fenômeno econômico poliédrico”, utilizada por Alberto Asquini, ao explicar o conceito de empresa. Nesse sentido, ver: ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. São Paulo: Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro, n. 104, out/dez 1996, p. 109-126. Tradução de Fabio Konder Comparato. Profili dell’impresa. Rivista del Diritto Commerciale, n. 41, I, 1943.
[9] Nesse sentido, ver: Organização para a Cooperação e do Desenvolvimento Econômico. Employment outlook 2018. Disponível em: <https://read.oecd-ilibrary.org/employment/oecd-employment-outlook-2018_empl_outlook-2018-en#page1>. Acesso em: 16 fev. 2021.
[10] Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Global forum on competition. Competition policy and gender. 2018, November 29th. Disponível em: <https://www.oecd.org/daf/competition/gender-and-competition.htm>. Acesso em: 21 fev. 2021.
[11] Becker, Gary Stanley. The economics of discrimination. Chicago: Chicago University Press, 1957.
[12] Nesse sentido, ver: WEICHSELBAUMER, Doris. What are the reasons for international gender wage gaps? Disponível em: <https://voxeu.org/article/why-international-difference-gender-wage-gap>. Acesso em: 4 fev. 2021.
[13] PIKE, Chris. What’s gender got to do with competition policy? OECD On the Level. 2018, March 2nd. Disponível em: <https://oecdonthelevel.com/2018/03/02/whats-gender-got-to-do-with-competition-policy/>. Acesso em: 3 fev. 2021.
[14] Nesse sentido, ver: World Bank Group. India development update: unlocking women’s potencial. 2017. Disponível em: <https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/27545>. Acesso em: 4 fev. 2021.
[15] Em relação ao tema, destaca-se a iniciativa Women on Board, a qual concede um selo de boas práticas em ambientes corporativos às empresas que tenham pelo menos 2 (duas) conselheiras efetivas em seus quadros, de forma a incentivar e reconhecer os benefícios desta diversidade ao mundo empresarial e à sociedade. Disponível em: <https://wobwomenonboard.com/>. Acesso em 16 fev. 2021.
[16] REIS JÚNIOR, Carlos Roberto da Rocha. Discriminação de preços por algoritmo: preocupações concorrenciais. 2019. Monografia (curso de Direito). Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília.
[17] Sobre o tema, destaca-se que, em 2011, o Tribunal de Justiça da União Europeia proferiu decisão, proibindo a análise de prêmios de seguro baseada em gênero, ocasionando um efeito econômico e concorrencial para o mercado. Nesse sentido, ver: VILLELA, Camilla Costa. Concorrência e gênero: o impacto negativo dos prêmios unissex no mercado de seguro sob a luz da experiência europeia. In: ATHAYDE, Amanda; MAIOLINO, Isabela; SILVEIRA, Paulo Burnier da (Orgs). Comércio internacional e concorrência: desafios e perspectivas atuais - Volume II. Brasília: Faculdade de Direito – UnB, 2019.
[18] Nesse sentido, ver: Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Global forum on competition. Competition policy and gender. 2018, November 29th. Disponível em: <https://www.oecd.org/daf/competition/gender-and-competition.htm>. Acesso em: 16 fev. 2021.
[19] Women in Antitrust (WIA) Brasil. Relatório de representatividade e inclusão feminina no antitruste. 2018. Disponível em: <https://86de1a45-3985-40e4-865a-169edc125eb5.filesusr.com/ugd/3f79e1_57f1e6ca64b74d2f9cd90bf6973cfac6.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2021.
[20] No ano de 2018, o total de mulheres na área antitruste das consultorias e dos escritórios de advocacia foi de 35% e 52%, respectivamente. Verificou-se, por sua vez, que, no CADE, a representatividade de mulheres no total de servidores da área-meio foi de 54% e da área-fim, de 43%. No entanto, constatou-se também que, apesar de 64% das promoções serem de mulheres nos escritórios antitruste, apenas 50% delas são referentes aos cargos de advogados sênior e sócios. Na mesma linha, as promoções de mulheres foram minoria no CADE (33%) e sequer afetaram os cargos de liderança mais altos (DAS 5 em diante).
[21] FOX, Eleanor. Antitrust: tracing inequality. Disponível em: <https://www.competitionpolicyinternational.com/antitrust-tracing-inequality-from-the-united-states-to-south-africa/>. Acesso em: 3 fev. 2021. Em tradução livre. No original: “A notion of equality has run through antitrust (or competition) law since the beginning of (antitrust) time. (...) It focuses particularly on equality of opportunity: keeping open pathways for outsiders to contest markets on the merits”.