Camila Avi Tormin
Sócia da área de Contencioso de Gusmão e Labrunie Advogados
Durante a última temporada de “Game of Thrones”, uma das séries de televisão mais assistidas da história, o copo de café esquecido no set de filmagens do episódio "The Last of the Starks", exibido no penúltimo domingo (5), foi um dos trending topics da semana.
A audiência imediatamente associou o copo à rede de cafés Starbucks e não mediu esforços para divulgar a gafe da HBO no Twitter (o assunto foi mencionado 193.000 vezes nas primeiras 48h após o episódio).1 A emissora, buscando administrar a situação, afirmou: “the latte that appeared in the episode was a mistake. Daenerys had ordered an herbal tea” (“o café com leite que apareceu no episódio foi um erro. Daenerys pediu um chá de ervas”).
A Starbucks também entrou na brincadeira e – aproveitando a publicidade espontânea – respondeu ao tuite fazendo referência à mais nova bebida da franquia: “TBH [to be honest], we’re surprise she didn’t order a Dragon Drink” (“sinceramente, ficamos surpresos por ela não ter pedido a Bebida do Dragão”).
Curiosamente, a Dragon Drink, lançada em 30 de abril 2019, foi anunciada oficialmente na terça-feira passada (7), apenas dois dias após da exibição do episódio de Game of Thrones.
Para a Starbucks, o deslize de produção da HBO foi uma colisão de oportunidades única, que gerou números extraordinários em marketing gratuito (estimados em aproximadamente US$ 2.3bi) e que, dificilmente, acontecerá novamente, segundo Stancy Jones, CEO da empresa de marketing Hollywood Branded.2
Mais do que uma divulgação de ouro para a Starbucks, o episódio é um ensejo para refletir sobre os novos formatos de publicidade, atreladas às produções de entretenimento, que são uma alternativa para as grandes marcas driblarem os tradicionais anúncios comerciais e de cativarem o público consumidor.
Os contratos de licenciamento são uma das formas mais utilizadas de se relacionar publicidade com entretenimento, sendo um importante modelo de negócio para grandes produtoras de filmes e séries, que movimentam importantes somas de valores3.
Por meio do licenciamento, o licenciante, que é o detentor da propriedade intelectual protegida, concede ao licenciado parte de seus direitos (nome, imagem, logotipo, personagem ou composição formada por mais de um destes elementos) para ser usada na promoção e comercialização de produtos ou serviços, em troca de uma remuneração (normalmente financeira, na forma de royalties).
Enfatiza-se que esse modelo de negócio é possível porque há uma preocupação estratégica das empresas de entretenimento em proteger suas criações – por meio de registro de marcas, registro de personagens, por exemplo, amparados tanto na Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96), quanto na Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) – para, posteriormente, licenciar os direitos de uso a empresas interessadas na exploração comercial dessas criações.
No caso concreto, a HBO aproveitou o sucesso mundial de Game of Thrones e, ao longo de suas oito temporadas, investiu significativamente em contratos de licenciamento – atualmente, o programa é o mais licenciado da empresa.
Dentre as empresas licenciadas, está a Johnnie Walker, que laçou um rótulo de whisky “White Walker”, em referência aos vilões da série; a empresa de cosméticos Urban Decay, que desenvolveu uma linha de maquiagens inspirada nas personagens femininas do show; e a rede de fast food Shake Shack, que criou um menu especial #ForTheThrone, cujos pedidos somente poderiam ser feitos em valiriano, um dos idiomas antigos presentes na série.
Crédito: Twitter.com/shakeshack
A Starbucks, até o momento, não havia firmado contratos de licenciamento com a HBO para promover o lançamento de produtos relacionados a Game of Thrones.
No dia seguinte ao incidente do copo, a internet foi tomada por discussões se o suposto “erro de produção” não seria uma jogada de marketing indireto (product placement) da franquia de cafés – técnica publicitária de anunciar produtos os introduzindo de forma sutil em uma cena de filme, série ou qualquer outra produção audiovisual – para o lançamento de sua nova bebida.
Ambas HBO e Starbucks afirmaram que não foi o caso (até porque, não se tratava, de fato, de um copo da Starbucks – o que, por si só, já demonstra a força e referência da marca perante o consumidor).
No entanto, a gigante do ramo de cafeterias não perdeu a oportunidade e, em um ótimo exemplo de aplicação do real time marketing – modalidade publicitária que visa à interação em tempo real com o público diante de uma situação oportuna, planejada ou inesperada – aproveitou a ocasião para promover sua nova bebida, preparada à base de pitaya (dragonfruit) e leite de coco, convenientemente lançada, no dia 7, com a hashtag “Dragon Drink”.
Crédito: twitter.com/Starbucks
Sob o ponto de vista da legislação brasileira, a abordagem publicitária feita pela Starbucks pode gerar divergências sobre sua legalidade, ante à vantagem econômica e publicitária obtida pela rede de cafeterias sem o desembolso de um centavo sequer.
Por um lado, a Starbucks, enquanto empresa que não detém direitos para exploração comercial das marcas e personagens de Game of Thrones, se utilizou apenas do termo “dragon” (“dragão”) que, apesar de no contexto fazer inegável referência à série, coincidentemente ou não, tem relação com a pitaya, um dos principais ingredientes da bebida, que, em inglês, é conhecida como “dragonfruit”.
Por outro lado, apesar de no post de lançamento da bebida não haver elementos protegidos de Game of Thrones – diferentemente dos produtos lançados pela Urban Decay e Shake Shack, que possuem nítidas referências à série, em decorrência dos direitos licenciados (em contraprestação aos vultuosos investimentos realizados) – a Starbucks aproveitou-se da situação para se associar à série e à sua fama para promover o seu novo produto.
Esse tipo de “carona” no sucesso e popularidade de Game of Thrones poderia caracterizar marketing de emboscada (ambush marketing). Afinal, posts e tuites não deixam de ser uma atividade publicitária com fins lucrativos e, da forma [e momento] como foi feito, o consumidor poderia ser levado a acreditar na existência de uma relação comercial entre as empresas Starbucks e HBO, a título de licenciamento, por exemplo.
Seja como for, além de a gafe do copo de café ter sido um motivo de diversão para os internautas, o incidente é um ótimo exemplo do impacto do entretenimento em ações publicitárias.
Em contrapartida, é indubitável que a ação publicitária promovida pela Starbucks revela o potencial das formas não convencionais de publicidade as quais, cada vez mais instantâneas e engajadoras, têm grande interação com o público consumidor e geram resultados relevantes. Todavia, há limites a serem respeitados para evitar que tais oportunidades excedam os contornos da legalidade.
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1 Disponível em https://www.cnbc.com/2019/05/07/starbucks-got-2point3-billion-in-free-advertising-from-game-of-thrones-gaffe.html. Acesso em 17.05.2019.
2 Disponível em https://www.cnbc.com/2019/05/07/starbucks-got-2point3-billion-in-free-advertising-from-game-of-thrones-gaffe.html. Acesso em 17.05.2019.
3 A Disney, por exemplo, uma das maiores licenciadoras do mundo, atualmente fatura mais com o licenciamento de seus personagens do que com a bilheteria de suas animações.