Ana Paula Pereira
Graduanda em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e estagiária do Bragança&Feijó Sociedade de Advogados.
Há de se reconhecer que, mesmo com o surgimento do Estado Democrático de Direito e, com isso, a valorização de políticas sociais de igualdade, de acessibilidade e de urbanidade, ainda há, na prática, uma defasagem considerável na efetivação desses valores, sobretudo nos campos mais elitistas das demandas judiciais.
Destarte, a conhecida “constitucionalização dos direitos” está em atual progressão, tendo em vista que o tema apenas surgiu com o fim da Segunda Grande Guerra, na emersão do Estado Democrático de Direito.
Nessa linha, segundo o professor titular de Teoria Geral do Processo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, dr. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, “(...) tem também o processo escopo social de pacificar com justiça e de educar, de sorte a permitir que as pessoas possam, a um só tempo, independente das diferenças, buscar seus próprios direitos e respeitar os dos outros” (PINHEIRO CARNEIRO, Paulo Cezar. A Ética e os Personagens do Processo. Volume 358. Rio de Janeiro: SEPARATA, Revista Forense).
Entretanto, como bem elucidado pelo ilmo. professor, a busca pela efetivação e garantia dos direitos através da judicialização da lide, deve se nortear pela cooperação entre os participantes do processo – aqui incluindo o juiz, os advogados e as próprias partes -, de modo que, mesmo os adversários, cooperem a fim de um objetivo comum: a prestação da tutela jurisdicional.
Vale ressaltar que, ao se retirar das mãos dos particulares o poder de resolver seus conflitos, que, historicamente, eram resolvidos com violência, o Estado regulou a disciplina jurídica a fim de tutelar os direitos da sociedade, prestando, assim, a tutela jurisdicional por meios civilizatórios através do poder exercido pelo Estado-Juiz.
Sendo assim, se ao indivíduo é defesa a busca pela resolução de suas lides por suas próprias mãos, não deveria o Estado não apenas facilitar o acesso à Justiça, mas, também, garantir que a Justiça seja efetivamente acessível a todos e, principalmente, que seja justa?
Nesse sentido, Mauro Cappelletti e Bryant assim conceituaram o acesso à justiça:
“A expressão “acesso à Justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam de individuais e socialmente justos.”[1]
Cumpre destacar dois pontos de relevância apontados pelos autores, quais sejam, i) o sistema deve ser igualmente acessível a todos e; ii) deve produzir resultados que sejam individuais e socialmente justos.
Nessa toada, a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 5º (notadamente reconhecido por prever os direitos fundamentais da sociedade), traz, em seu inciso LXXIV[2], a previsão do direito à assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes.
Já, quanto à execução, é cediço que o legislador previu, através dos artigos 914 a 920 do Código de Processo Civil, o meio de defesa essencial do executado, qual seja: os embargos à execução. Valendo-nos, neste momento, transcrever o artigo 919 e seu primeiro parágrafo:
Art. 919. Os embargos à execução não terão efeito suspensivo.
Portanto, verifica-se da análise do artigo 919, §1º do CPC, que existem três requisitos, cumulativos, para que, querendo o juiz, se possa atribuir o efeito suspensivo aos embargos do devedor, quais sejam: i) requerimento da parte; ii) preenchimento dos requisitos para a concessão de tutela provisória e; iii) garantia à execução por penhora, depósito ou caução suficientes.
Quanto aos requisitos da tutela provisória, notadamente, é cediço que o artigo 300 do Código de Processo Civil elenca seus mais famosos elementos, quais sejam, a probabilidade de direito, ou fumus boni iuris, e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, também conhecido como periculum in mora.
Além disso, vale dizer que a garantia ao juízo não constitui requisito para a oposição dos embargos - na execução cível -, como bem ensina o artigo 914, caput, do Código de Processo Civil, mas sim elemento essencial ao requerimento, que pode formular o devedor, de atribuição de efeito suspensivo à execução.
Todavia, como poderia o executado, comprovadamente hipossuficiente, garantir uma execução com penhora, depósito ou caução sem que isto lhe causasse prejuízos financeiros?
Nesse sentido, ao mudarmos do cenário cível para o fiscal, cumpre-nos ressaltar o que leciona Hugo de Brito, ao traçar uma importante ponderação que nos salva de chegarmos à errônea conclusão de que, no processo de execução, não há espaço para questionamentos. Veja-se:
“Mas não se conclua, daí, que no processo de execução fiscal o crédito executado deva ser satisfeito a qualquer custo. Na verdade, a presunção estabelecida pelo título executivo é apenas relativa, e o crédito executado pode não ser devido, ou não ter a dimensão que lhe foi atribuída pelo exequente. Isso, aliás, não é raro em matéria tributária, dada a maneira como são constituídos os créditos da Fazenda Pública.”[3]
Já no campo da jurisprudência, o ministro Gurgel de Faria, proferiu o entendimento de que os embargos seriam o meio de defesa do devedor-executado contra a cobrança de dívida tributária ou não tributária da Fazenda Pública, e que, assim, não poderiam ser limitados ao oferecimento de garantia pecuniária ao devedor que não pudesse pagá-la.
O ministro ponderou que tal exigência feriria os ditames da Constituição da República Federativa, a qual assegura a todos os cidadãos o direito de acesso à justiça, ao contraditório e à ampla defesa, e pontuou alguns elementos importantes, dos quais salientamos dois: i. afastamento de exigência de garantia ao juízo para oposição de embargos à execução fiscal, caso o devedor comprove sua hipossuficiência econômica; ii. a resolução da controvérsia deve ocorrer pelo lado da hipossuficiência do devedor, pois, adotando-se tese contrária, implicaria em garantir o direito de defesa ao "rico", que dispõe de patrimônio suficiente para segurar o Juízo, e negar o direito de defesa ao "pobre".
Assim, no caso da execução fiscal, limitar a oposição de embargos à garantia ao juízo é mais “grave” do que limitar a atribuição do efeito suspensivo à execução cível, pois, no primeiro caso, o requisito está ligado à própria admissibilidade recursal, ou seja, ao próprio exercício do direito de defesa do devedor, já no segundo, a limitação está ligada a um efeito que pode ou não ser concedido a critério do juiz.
Todavia, as ponderações feitas pelo ministro nos faz pensar que: se afastado o requisito de garantia ao juízo para a admissibilidade dos embargos à execução fiscal e, aplicando-se subsidiariamente o disposto no Código de Processo Civil, acerca da atribuição de efeito suspensivo aos embargos, bastaria que o devedor hipossuficiente, citado em execução fiscal, fizesse o requerimento de atribuição de efeito suspensivo e comprovasse os requisitos para concessão de tutela provisória para que, assim, o curso da execução fosse suspenso? Tal disposição seria aplicável à execução cível?
Nosso entendimento é que sim. A partir de o momento em que o devedor hipossuficiente, citado em execução, oferecesse seus embargos e preenchesse os demais requisitos do art. 919, sobretudo os da concessão da tutela, quais sejam, o fumus boni iuris e periculum in mora, o efeito suspensivo deveria ser atribuído ao seu recurso.
[1] GARTH, Bryant. CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 7.
[2] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm (acesso em 04/03/2021)
[3] MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Processo Tributário. São Paulo: Editora Atlas. 10ª ed, p. 258.