Felippe Angeli
Advogado, D.S.U. em Ciências Políticas pela Université Paris II - Panthéon Assas, é coordenador de advocacy do JUSTA, organização que atua no campo da economia política da justiça
Rivalizando com o já conhecido recorde em número de homicídios ostentado pelo Brasil, também apresentamos o maior número de vítimas fatais decorrentes de confronto policial em todo mundo, como informa o relatório sobre o uso da força publicado pela Anistia Internacional em setembro de 2015. Em 2014, foram mais de 3 mil vítimas fatais da polícia no país.
O noticiário local SPTV, da Rede Globo, exibiu reportagem em 25/04/2016, informando que a polícia foi a responsável por 26% da totalidade de homicídios ocorridos na cidade. Em alguns distritos da capital paulista, a cada duas vítimas de homicídio, uma foi morta por policiais. Ainda, um recorte racial perverso é identificado: 72% das vítimas policiais na cidade de São Paulo eram pretas ou pardas.
A morte do garoto Ítalo, de apenas 10 anos de idade, em situação de confronto com a Polícia Militar na cidade de São Paulo é mais um fator que indica a maneira excessiva pela qual a polícia tem usado a força letal. Certamente, há situações em que a lei autoriza o uso da força letal, o que não é privilégio de policiais e são atribuídas a todos os cidadãos que tem afastada a ilegalidade de suas condutas nos casos previstos pelo art. 23 do Código Penal: o estado de necessidade, a legítima defesa e o estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito.
Com o objetivo de aprimorar a investigação de casos em que a ação policial resultar em morte ou lesão corporal, há dois projetos de lei tramitando na Câmara dos Deputados. O PL nº 4.471/2012, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT/SP), que desde 2013 aguarda para ser pautado no plenário da Câmara, e o PL nº 5.124/2016, apresentado pelo Poder Executivo em regime de urgência com o objetivo de acelerar a tramitação do projeto e aprimorar alguns pontos do projeto anterior. Infelizmente, foi noticiado que o governo interino em exercício retirou o pedido de urgência do projeto, o que possivelmente o levará à mesma situação do projeto anterior, ou seja, o ocaso parlamentar.
Ambos os projetos buscam alterar artigos do Código de Processo Penal para aprimorar os procedimentos de perícia, exame de corpo delito, necropsia e da instauração de inquérito nos casos atualmente conhecidos por “autos de resistência”, corruptela jurídica do art. 292 do Código de Processo Penal criada em 1969, na vigência do Ato Institucional nº 5, no extinto estado da Guanabara.
O termo já foi alvo de condenação internacional pelo Relatório 141/2011 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, recomendando a eliminação imediata dos registros de mortes pela polícia por meio de autos de resistência. Já o relatório do relator Especial da ONU para Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias diz ser inaceitável o registro de “autos de resistência”. Segundo o relator, Philip Alston, trata-se de “um cheque em branco às mortes por policiais e deve ser abolido”.
De modo geral, as propostas legislativas mencionadas buscam garantir a investigação do uso da força policial, garante informações sobre o caso às famílias das vítimas, determina prazos para que os laudos periciais sejam produzidos e encaminhados, determinando também a imediata instauração de inquérito policial em caso de lesão corporal ou morte causada pela ação policial, comunicando os fatos ao Ministério Público e à Defensoria Pública. O deputado Major Olímpio (SD/SP), designado relator do PL nº 5.124/2016 na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara, apresentou emendas que aumentam os prazos da investigação, excluem a família das vítimas do acompanhamento dos procedimentos, mais uma vez relegando os familiares que legitimamente querem ser informados sobre as condições da morte de seus entes queridos, além de afastar a Defensoria Pública do procedimento e manter possível o acompanhamento da perícia por pessoas estranhas aos trabalhos, aumentando o risco de influência ou desvio do trabalho pericial. Ainda, traz à discussão a Justiça Militar, que não tem competência sobre a morte de civis causadas pelas polícias.
Com a decisão do governo interino, a discussão vai novamente arrefecer, exceto quanto aos familiares daqueles que têm suas vidas interrompidas pela atuação estatal. Sabemos que há situações em que a polícia deve sim utilizar a força. Como a qualquer cidadão, é facultado ao policial defender sua vida pelos meios legítimos. O que queremos é que os casos de uso de força policial sejam melhores investigados, para oferecer justiça a aqueles que eventualmente sejam vítimas de ações injustas, assim como para inocentar de forma cabal o policial que agiu na forma da lei, protegendo a si e à sociedade. Não entendemos como alguém pode ser contrário à obtenção da verdade.