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mundo digital

Governo digital e equidade

Com quantos gigabytes se faz uma sociedade que navegue?

Mariana de Siqueira
18/06/2022|05:15
digital
Crédito: Unsplash

Em dezembro de 1996, Gilberto Gil fazia história ao lançar a canção “Pela Internet” ao vivo no ciberespaço. Ali, em fase ainda muito inicial de uso e expansão da internet no Brasil, Gil apresentava composição que especulava desdobramentos possivelmente decorrentes da popularização da rede no país. “Criar meu website, fazer minha homepage. (...) Eu quero entrar na rede, promover o debate.” [1]

O que era suposição quanto a um porvir ainda incerto, anos depois tornou-se realidade. A internet e as inovações disruptivas que dependem de sua estrutura para operar estão presentes em atividades públicas e privadas diversas. Vivemos uma era de muitos websites, homepages e debates virtuais.

Se nos anos 90 não era tão simples perceber o paradoxo que a internet carregaria consigo no futuro, hoje, décadas depois, o “paradigma da tecnocracia” se mostra evidente e apresenta inúmeras das suas complexidades e dubiedades sem disfarces.

Por um lado, a internet é ferramenta poderosa de concretização de objetivos constitucionais (ela “regula” poder, “distribui” acesso à comunicação, permite a ciberarticulação cidadã democrática...); por outro, é também novo “poder” a ser definido, compreendido e regulamentado. Paradoxalmente, as suas oportunidades positivas podem ser convertidas, intencional ou involuntariamente, em violações de Direitos Humanos.[2]

Em tal perspectiva, é importantíssimo notar que o incremento tecnológico da Administração Pública possui nuances próprias, especialmente quando considerados e cuidadosamente analisados os interesses públicos que navegam nesse “info-mar”.

Vejam bem, Estado e inovação computacional não se opõem de modo absoluto e intransponível! Muito pelo contrário! Como ensina Mariana Mazzucato[3], ao longo da história, o Estado possuiu (e ainda possui) papel fundamental para o desenvolvimento da seara digital. O capítulo de sua obra responsável por tratar do caso do Iphone é bastante didático em prover a compreensão deste fenômeno.

Desse modo, no que tange à tecnologia computacional, o Poder Público possui comportamento multidirecional. Ele não apenas exerce o seu tradicional papel de regulador da inovação e das falhas de mercado que lhe são próprias, como também empreende. Além disso, atualmente, o Estado é igualmente consumidor de produtos computacionais e intenciona expandir essa ação.

A inserção da inovação computacional no dia a dia operacional da Administração Pública e em atividades essenciais para a dignidade da coletividade requer reflexão profunda e alguns cuidados básicos. Este processo de incremento tecnológico do Estado chama atenção para dois elementos que ora se opõem, ora se complementam:

1) A inovação no Poder Público precisa ser promovida em harmonia com o sistema jurídico vigente, pois adentra espaço de atuação amplamente regulado e tradicionalmente conformado pela legalidade e juridicidade. Nesta perspectiva da conciliação entre o novo e o tradicional, transparência ativa, acesso universal aos serviços públicos e dever de motivação dos atos administrativos, por exemplo, são alguns dos tradicionais elementos do regime jurídico administrativo já problematizados no âmbito do Direito Digital Público.

2) A chegada mais intensa da tecnologia computacional à Administração Pública inaugura espaço para novas construções teóricas e normativas, de modo que aos elementos tradicionais existentes serão acrescidos novos olhares. Aqui, no que tange a este novo, é oportuno destacar os princípios da precaução e da beneficência da inovação computacional. O princípio da precaução na seara do Direito Digital Público, inspirado em sua origem ambiental, trata do dever de adoção de medidas diversas que busquem evitar danos, mesmo diante de perigos abstratos, ainda não completamente conhecidos.

Se pensamos neste princípio na perspectiva da inteligência artificial (IA) nos processos administrativos, por exemplo, a sua relevância se acentua. Alguns dos vieses da IA são conhecidos (prevenção) e outros de seus problemas só aparecerão com a expansão de seu uso (precaução). Seja num ou noutro caso, medidas devem ser tomadas para que prejuízos não sejam recorrentes e isso tende a afetar a compreensão do tema da responsabilidade por danos. Quanto ao princípio da beneficência da inovação computacional, este se refere ao fato de que a tecnologia deve beneficiar o humano, maximizando ganhos civilizatórios e minimizando danos, e não se converter em instrumento de acentuação de desigualdades, especialmente quando estruturantes (racismo, sexismo, capacitismo, etarismo etc.)

Transpondo as ideias aqui apresentadas para a perspectiva de um Governo Digital, algumas reflexões se revelam inadiáveis, sob pena de piorarmos desigualdades estruturantes marcantes no cenário brasileiro.

A Lei do Governo Digital possui como eixo essencial de sua narrativa a intenção de aumentar a eficiência da Administração por meio da inovação e da transformação digital. Seu texto é marcado pela vanguarda de atentar para a digitalização sem olvidar do dever estatal de prover equidade. É possível observar este aspecto a partir dos dispositivos legais que evidenciam o dever de entrega de serviços digitais acessíveis por dispositivos móveis e que façam uso de linguagem clara e compreensível a qualquer cidadão; bem como dos textos que expõem a importância de se atentar para a acessibilidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, para as especificidades do público idoso, da população rural e de baixa renda, dentre outros.

Da década de 90 até aqui, o número de usuários da internet no Brasil se expandiu enormemente. Este crescimento, porém, não foi uniforme ou isonômico. Muito pelo contrário, revelou-se desigual e incrementador das diferenças estruturantes, criando “usuários de segunda categoria”.

O acesso à internet fixa no Brasil ainda é coisa rara e restrita às camadas com posição socioeconômica mais confortável: o mundo virtual é acessado apenas via celular por 58% da população brasileira, somente 14% dos lares inseridos na classe D/E possuem computador em casa. Em tal classe, para 63% da população é o preço do acesso à internet a justificativa para não a ter em casa e para 54% a explicação para isso está na ausência de alfabetização digital.[4]

Refletir sobre a exclusão digital brasileira passa pela ideia de que não basta ter acesso à internet, é preciso saber como se dá esse aceso, qual a sua qualidade, por que meio e, mais ainda, é urgente ensinar a fazê-lo de modo mais consciente, a partir dos saberes vindos da educação digital cidadã.

Se o uso da internet é mecanismo de acesso a serviços públicos essenciais, se a tendência que se projeta para o futuro é a da primazia dessa forma de acesso quando comparada ao presencial, é chegada a hora de institucionalizar políticas públicas multidirecionais e em todos os níveis federados de acesso à banda larga fixa e de educação para a cidadania digital. É preciso navegar na web com equidade e sabedoria “Pra não ficar preso na rede, que nem peixe pescado...”. [5]


[1] GIL, Gilberto. Pela Internet. In. Quanta. Rio de Janeiro, 1997. 4’6”.

[2] SIMONCINI, Andrea, The Constitutional Dimension of the Internet: Some Research Paths (2016). EUI Department of Law Research Paper No. 2016/16, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=2781496 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2781496.

[3] MAZZUCATO, Mariana. O Estado empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2014.

[4] BRASIL, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Acesso fixo à Internet. Série desafios para a universalização da Internet no Brasil. Disponível em: https://idec.org.br/pesquisas-acesso-internet?utm_campaign=&utm_adgroup=&creative=&keyword=&gclid=CjwKCAjws8yUBhA1EiwAi_tpEWe0GOVnaqNnAUSr71lUYTodqVy4v4wT6MQuLwvVmwk3boUHjRPnWhoCbxgQAvD_BwE Acesso em 29 de maio de 2022.

[5] GIL, Gilberto. Pela Internet 2. In. Ok.Ok.Ok. Rio de Janeiro: 2018. 4’27”.logo-jota