Lara Gurgel
Diretora-executiva do Irelgov (Instituto de Relações Governamentais)
Há pouco mais de três anos, tem-se formado um longo arco de conflitos que conecta, de forma direta ou indireta, quase todas as regiões do mundo. Esse arco começa no leste da Europa, com a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022; atravessa os Bálcãs, onde o arranjo de paz pós-Guerra da Bósnia tem sido erodido pela volta do nacionalismo étnico; perpassa o Oriente Médio, em guerra desde o ataque terrorista do Hamas a Israel em 2023.
Entra neste ano no sul da Ásia, com um novo conflito entre Índia e Paquistão; e chega, por fim, à região do Indo-Pacífico, coalhada de tensão entre chineses, americanos e seus respectivos aliados. O arco de conflitos também conecta as três grandes potências – Estados Unidos, China e Rússia – e as nove nucleares.
O que difere a situação atual de outras do passado recente é que, dessa vez, a proliferação de conflitos é reflexo de uma mudança estrutural no sistema internacional. A era dos Estados Unidos como única grande potência parece ter chegado ao fim e, agora, vive-se uma transição de ordem para um novo sistema.
Como costuma acontecer em momentos de transição de ordem, a tensão entre a grande potência estabelecida, que quer preservar o “status quo”, e as grandes potências em ascensão, que querem reformar ou subverter as regras estabelecidas, gera uma espiral de conflitos militares, políticos e econômicos, inclusive no ambiente digital.
Nesse caso, os países em disputa geopolítica usam todo tipo de medida para influenciar ou até mesmo coagir os demais. Essas medidas operam em uma “zona cinzenta”, inclusive porque, em alguns casos, não são adotadas pelos governos em si, mas por intermediários.
Um exemplo tradicional de medida na zona cinzenta é o uso de empresas estatais controladas pelo governo de um país para vencer licitações e controlar ativos em setores estratégicos de outro país.
Essa situação é ainda mais grave quando se leva em conta que as democracias estão em declínio e há um número maior de governos autocráticos. De acordo com o relatório de 2025 do Instituto V-Dem, cuja rede inclui mais de 4.200 pesquisadores, o nível da democracia no mundo regrediu ao padrão de 1985.
Pela primeira vez em 20 anos, há mais autocracias do que democracias. A democracia liberal tornou-se o regime de governo menos comum (apenas 29 países) e, hoje, três de cada quatro pessoas vivem em um país autocrático – uma regressão ao patamar de 1978.
Em um mundo dominado por ditaduras, é natural que tais governos usem cada vez mais medidas na zona cinzenta para alcançar seus objetivos geopolíticos. Assim, é fundamental que as democracias adotem respostas internas para combater tentativas de manipulação e coerção por outros países.
No caso do Brasil, a regulamentação do lobby é um dos caminhos mais eficazes para promover integridade e transparência nas interações entre organizações — nacionais e estrangeiras — e os agentes públicos do governo brasileiro. Entretanto, o projeto de lei de regulamentação do lobby, em tramitação no Senado, não será suficiente para combater a influência ilegítima de outros países.
Ele precisará evoluir – ou ser complementado – para incorporar regras específicas capazes de identificar quem, no Brasil, faz lobby para governos estrangeiros, sobre quais temas, com qual valor de gasto, e em quais Poderes da República. Esse escopo deverá abranger tanto indivíduos quanto organizações que possuem contrato ou outro tipo de vinculação a governos estrangeiros.
O objetivo não é restringir a atividade de lobby, mas gerar a transparência necessária para que não haja influência indevida – e, sobretudo, para que governos autocráticos não tentem manipular as regras da democracia brasileira contra os interesses do próprio país.
Os Estados Unidos possuem uma legislação dessa natureza desde 1938: o Foreign Agents Registration Act (FARA). Já a Austrália adotou, em 2018, o Foreign Influence Transparency Scheme (FITS) e, em 2023, o Reino Unido aprovou legislação similar, que estabeleceu o Foreign Influence Registration Scheme (FIRS) e entrou em vigor no último dia 1º de julho.
Vale notar que a legislação sobre “agentes estrangeiros” adotada por muitos governos autocráticos não tem nenhuma relação com as regras aprovadas pelas democracias, apesar de alguma proximidade entre os nomes.
No caso das democracias, o objetivo da lei é gerar a devida transparência. Já no caso das autocracias, o foco é em ter um instrumento jurídico para perseguir – de forma ilegal – a oposição interna, em geral pró-democracia, sob o argumento de que seus membros são “agentes estrangeiros”.
Por fim, além da regulamentação do lobby e das regras específicas sobre a atividade para governos estrangeiros, é fundamental que o Brasil reforce seu aparato institucional anticorrupção. Ademais, as empresas e organizações da sociedade civil devem estruturar suas áreas internas para que seus profissionais de relações governamentais estejam aptos, também, a lidar com um mundo em crescente competição geopolítica.