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insegurança jurídica

Quem paga o ISS na importação de serviços?

Indeterminação inviabiliza exercício preciso e harmônico da competência municipal e fomenta insegurança jurídica

José Luiz Crivelli Filho, Marcelo de Azevedo Granato
23/01/2022|05:55
Atualizado em 24/01/2022 às 14:56
arbitragem tributária, juros
Crédito: Unsplash

O legislador complementar previu, no § 1º do art. 1º da Lei Complementar 116/03 (LC 116/03), a possibilidade de os municípios instituírem e cobrarem o ISS “sobre o serviço proveniente do exterior do país ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior do país”.

Dado que o contribuinte do ISS é o prestador do serviço, nos termos do artigo 5º da LC 116/03, e este, no caso de serviços importados, situa-se no exterior, imputou-se ao tomador ou ao intermediário dos referidos serviços a responsabilidade pelo recolhimento do tributo, conforme o artigo 6º, § 2º, I, da LC 116/03[1].

Conquanto a validade da LC 116/03 decorra do artigo 146, I e III, da Constituição Federal, tratando-se, portanto, de norma editada com o objetivo de dispor sobre conflitos de competência e introduzir normas gerais de Direito Tributário, verifica-se, na prática, situação oposta.

O artigo 6º, § 2º, I, estimula conflitos de competência

O primeiro contato com o texto legal já causa estranheza. Afinal, o emprego da conjunção alternativa “ou” pelo legislador complementar para eleger o responsável tributário introduz dualismo inaceitável, que contraria as aludidas funções da lei complementar tributária – i.e., dispor sobre conflitos de competência e introduzir normas gerais de Direito Tributário.

Ora, numa importação de serviços em que haja tanto um tomador quanto um intermediário, o artigo 6º, § 2º, I, da LC 116/03 não define qual deles, tomador ou intermediário, deve pagar o ISS. Assim, peca na definição do sujeito passivo do imposto e descumpre o artigo 146, III, “b”, da CF, porque a norma geral introduzida não trata, adequadamente, desse aspecto da obrigação tributária.

O problema se agrava quando tomador e intermediário têm estabelecimentos em municípios distintos. Nesse caso, à dúvida sobre quem deve pagar o imposto, soma-se a dúvida sobre qual dos municípios está juridicamente legitimado a cobrá-lo.

Esse estado de coisas contradiz o artigo 146, I, da CF, que prescreve à lei complementar a disciplina de conflitos de competência entre entes federados. A ela cabe transformar uma competência reivindicável por mais de um ente numa competência exclusiva de um deles, conforme o vínculo desse ente com a operação. Das regras que fixam tal competência, resulta não apenas a faculdade do sujeito competente de instituir e cobrar o tributo, mas também a proibição de tal instituição e cobrança pelo sujeito incompetente.

No entanto, o artigo 6º, § 2º, I, da LC 116/03 faz o contrário: ele incrementa os conflitos de competência ao dar margem à cobrança do ISS-importação de sujeitos distintos, por mais de um município, frente a um único fato gerador.

Em outras palavras, ao invés de limitar, o artigo 6º, §2º, I, da LC 116/03 expande a tributação.

O artigo 6º, § 2º, I, degrada a reserva legal

Essa expansão repercute sobre a própria legalidade, já que a indeterminação do comando legal acaba por conferir à administração tributária o poder de definir o devedor do ISS. E o que é pior: fazê-lo caso a caso, município a município.

Isso provoca o que o STF denominou “degradação da reserva legal”, consistente no “desapoderamento do legislador para tratar de elementos tributários essenciais”[2]. Esse é um dos riscos que a indefinição do legislador complementar comentada aqui pode ocasionar. Essa indefinição abre as portas para a atuação de cada município, que “resolve” tal indefinição por meio de ato individual e concreto seu, caso a caso. A certeza do direito, assim, é substituída pela vontade do Fisco.

O artigo 6º, § 2º, I, atenta contra a certeza do direito

Mas um direito que não seja certo não é direito. Num Estado de Direito, o jurisdicionado deve saber de antemão como seu comportamento é qualificado (de maneira geral e abstrata) pela norma jurídica, e as respectivas consequências. Ainda mais se a questão envolver tributação, vale dizer, restrição a direitos de propriedade. Como diz o professor Humberto Ávila, as regras tributárias “devem com mais intensidade ser determinadas pelo próprio legislador, jamais pelo aplicador, seja ele o administrador, seja ele o julgador”[3].

Num Estado de Direito, diz o professor, a atuação estatal é governada por regras gerais, claras e não contraditórias. A segurança jurídica demanda que o Direito seja “compreensível, confiável e calculável, o que só ocorre quando o indivíduo [...] pode razoavelmente calcular as consequências que serão aplicadas no futuro relativamente aos atos que praticar no presente”[4].

Isso não ocorre na importação de serviços, pois o artigo 6º, § 2º, I, da LC 116/03 não esclarece quem está obrigado nem a quem compete o ISS (caso tomador e intermediário do serviço situem-se em municípios distintos). Tampouco a escolha, por um município, do tomador ou do intermediário dos serviços importados para figurar como responsável pelo recolhimento do tributo teria o condão de solucionar o problema.

Basta imaginar o cenário em que os municípios A e B atribuam a responsabilidade pelo ISS de uma operação, respectivamente, ao tomador e ao intermediário domiciliados em seus territórios. O conflito de competência entre os municípios é certo e desfavorece tanto os possíveis sujeitos passivos quanto os próprios municípios, incertos de seu poder legislativo e arrecadatório.

A LC 116/03, em seu artigo 6º, § 2º, I, claramente não se desincumbiu do papel que lhe foi atribuído pela CF, de “instrumento essencial de limitação normativa da ação tributante do Estado” (Celso de Mello, ADI 1600). Da forma como redigido, o citado artigo fomenta incerteza e conflitos de competência, tornando inseguro tanto o Direito positivo quanto os direitos dos jurisdicionados.

Conclusão

Os breves apontamentos acima corroboram o que se disse no início deste texto: o artigo 6º, § 2º, I, da LC 116/03 não desempenha, adequadamente, as funções prescritas pelo artigo 146, I e III, da CF. O referido dispositivo, ao invés de coibir conflitos de competência, estimula-os, já que, ao permitir a cobrança do ISS-importação do tomador ou do intermediário, abre espaço para que diferentes sujeitos sejam cobrados do imposto e diferentes municípios o exijam numa mesma operação.

As consequências dessa indeterminação são várias: ela inviabiliza o exercício preciso e harmônico da competência municipal; fomenta a insegurança jurídica; desrespeita a certeza do direito.

Além disso, ela atenta contra a igualdade de tratamento entre contribuintes e não observa a capacidade contributiva do intermediário do serviço importado.

Certamente, um pronunciamento do STF a respeito da regra analisada resultaria na declaração de sua inconstitucionalidade. Afinal, à luz das considerações feitas ao longo deste artigo, permanece a dúvida: quem paga o ISS na importação de serviços?


[1] Art. 6o Os Municípios e o Distrito Federal, mediante lei, poderão atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação, inclusive no que se refere à multa e aos acréscimos legais.

[...]

  • 2oSem prejuízo do disposto no caput e no § 1odeste artigo, são responsáveis:

I – o tomador ou intermediário de serviço proveniente do exterior do País ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País;

[2] STF; Pleno; RE 704.292; Relator: Ministro Dias Toffoli; julgamento em: 19/10/2016; p. 1.

[3]Constituição, liberdade e interpretação. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2021;p. 17.

[4]Constituição...p. 82.logo-jota