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Justiça reprodutiva

Quanto vale aquilo que não deveria ter valor?

Considerações sobre a busca por justiça reprodutiva

Luana Mathias Souto
10/07/2025|05:15
Roe v. Wade
Manifestantes protestam em frente à Suprema Corte dos EUA contra decisão que barrou direito ao aborto. Crédito: Cássio Casagrande

Nos últimos anos, o crescimento exponencial de empresas Femtech, indústria dedicada à saúde e ao bem-estar feminino, tem chamado a atenção. O termo Femtech é composto pelos prefixos das palavras feminine + technology. A expansão dessa indústria tem levado jornalistas e pesquisadores ao redor do mundo a alertar para os diversos riscos associados à coleta, armazenamento e compartilhamento de dados íntimos de mulheres por aplicativos de rastreio do ciclo menstrual.

Nesse sentido, o aplicativo Flo Health (Flo) foi recentemente acusado de vazar os dados de milhares de usuárias. Segundo informações da Comissão Federal de Comércio dos EUA, o aplicativo que oferece serviços de rastreio de menstruação, ovulação e fertilidade repassou informações sigilosas de suas usuárias para empresas de análises de dados e personalização de propagandas entre 2016 e 2019.

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Em razão desses vazamentos, ações judiciais foram movidas nos EUA, Canadá e Portugal visando reparações para milhares de mulheres que fazem uso do aplicativo. Até o momento, não houve decisões finais em nenhum desses casos. Entretanto, a judicialização desse tema levanta uma série de questões até então inimagináveis, como:

Quais são os potenciais danos causados pelo compartilhamento não consentido de dados menstruais, reprodutivos, sexuais e comportamentais? Como aferir o número de pessoas impactadas por esses vazamentos? Como dimensionar os valores referentes aos danos morais e materiais decorrentes do compartilhamento não consentido desses dados?

As reparações, os danos e os impactos

Geralmente, usuárias de aplicativos de rastreio de menstruação não atribuem valor a esses dados, pois não os veem como mercadorias, mas como fonte de informação sobre suas vidas íntimas. Informações que deveriam ser utilizadas por esses aplicativos para auxiliar o conhecimento corporal e facilitar a tomada de decisões reprodutivas.

No entanto, é imperativo que haja reparações às violações dos direitos dessas mulheres à privacidade em razão do compartilhamento não consentido dessas informações com empresas de análises de dados e personalização de propagandas, que as utilizam para melhorar o desempenho publicitário.

Trata-se de uma clara violação desses direitos, que acarreta inúmeros outros danos, para além da violação à privacidade, especialmente considerando-se o desequilíbrio de poder e autonomia reprodutiva de homens e mulheres em sociedades patriarcais.

À primeira vista, os possíveis danos decorrentes do uso desses aplicativos parecem muito abstratos e um tanto quanto distópicos. Os riscos do uso desses aplicativos também tendem a ser considerados baixos, quando comparados com inúmeros outros efeitos nefastos associados ao uso de ferramentas tecnológicas.

Na realidade, como observamos no caso do Flo, esses danos são reais e os riscos do uso desses aplicativos não deveriam ser minimizados, especialmente se levarmos em conta tanto os graves danos causados às usuárias quanto a repercussão para além das mulheres diretamente afetadas.

Quando se trata de dados reprodutivos femininos, há uma gama de implicações sociais, econômicas, políticas, psicológicas e de saúde pública convergentes, que são capazes de impactar negativamente a vida de milhares de mulheres, seus descendentes e gerações futuras.

A perspectiva das usuárias e o valor econômico da fertilidade

No recém-publicado livro Segunda vida: Ter um filho na era digital, a jornalista Amanda Hess expõe sua experiência como usuária do Flo. Em seu potente relato, Amanda narra que começou a receber propagandas sobre gravidez e maternidade em seu celular, apenas 48 horas após descobrir a gravidez, por meio de um teste de farmácia. Alguns dos anúncios já se referiam a ela como “mamãe”.

Até aquele momento, Amanda só havia contado sobre sua gravidez para seu parceiro. O algoritmo sabia de sua gravidez antes mesmo que seus amigos e familiares.

Com acesso à informação e, sem o consentimento de Amanda, o Flo compartilhava os dados com empresas especializadas em personalização de propagandas. De repente, o celular de Amanda se tornou um grande outdoor a fornecer publicidade sobre venda de produtos de gravidez, maternidade e educação infantil.

O caso de Amanda e de tantas outras mulheres que tiveram seus dados compartilhados sem consentimento mostra que, ao contrário do senso comum, a reprodução feminina tem muito valor, inclusive econômico.

Segundo dados apresentados no relatório “Os altos riscos do rastreamento da menstruação”, de autoria da Dra. Stefanie Felsberger, embora as informações sobre o sexo, a idade ou a localização de uma pessoa valham US$ 0,0005 por pessoa, as informações sobre alguém estar no terceiro trimestre da gravidez aumentam o valor desse registro 220 vezes, para US$ 0,11.

Embora não seja usual pensar sobre esses valores, é comum que eles sejam considerados por governos e empresas de tecnologia.

O valor econômico da fertilidade feminina é debatido desde as décadas de setenta e oitenta, muito antes do surgimento de uma indústria voltada para a saúde e o bem-estar das mulheres. Na época, Michel Foucault chamava a atenção para a virada na mensuração do poder estatal que não mais era calculado por conquistas territoriais, mas sim pelo aumento populacional e por planos de melhoria das condições de vida.

A indústria Femtech reproduziu esse anseio biopolítico estatal e garantiu valor econômico aos dados reprodutivos das mulheres também para empresas privadas, que lucram cada vez mais com eles.

Em sua máxima potência, essa indústria transformou os corpos femininos em verdadeiras commodities em um contexto no qual expressões contrárias aos direitos das mulheres têm se tornado cada vez mais comuns.

As reações aos direitos reprodutivos das mulheres no século 21

Recentemente, o direito federal ao aborto foi revogado nos Estados Unidos, país considerado um dos berços da democracia moderna. A decisão da Suprema Corte norte-americana constitui um retrocesso da experiência ocorrida em 1973, por meio da decisão Roe v. Wade, quando o país inovou ao garantir esse direito, inspirando muitos outros países a fazer o mesmo.

Nesse contexto, muitas usuárias de aplicativos de menstruação nos Estados Unidos optaram por deletá-los, receando que as informações compartilhadas por elas pudessem ser utilizadas como provas em processos criminais nos estados em que o aborto se tornou ilegal.

Seguindo esta tendência, em maio deste ano, a polícia britânica estabeleceu diretrizes sobre como realizar a busca de informações em telefones e aplicativos de fertilidade após a ocorrência de perda gestacional, visando a obtenção de provas em caso de aborto ilegal. Na Grã-Bretanha, o aborto é classificado como crime pelo Offences Against the Person Act, uma lei de 1861.

As experiências anglo-saxônicas são apenas alguns exemplos de como, a cada dia que passa, os direitos de mulheres pelo mundo afora têm sido cerceados.

No contexto atual, a realidade distópica descrita por Margaret Atwood em 1985 no livro O conto da aia começa a parecer cada vez mais próxima.

A busca por justiça reprodutiva e a reversão do contexto atual

Em meio a esses distópicos desenvolvimentos tecnológicos, crescente commoditização da fertilidade e retrocessos sócio-políticos ao redor do mundo, devemos nos questionar sobre o futuro da busca por justiça reprodutiva em um contexto cada vez mais antagônico.

Um questionamento que se torna ainda mais necessário quando consideramos que na maioria dos países, o corpo de magistrados é majoritariamente composto por homens.

Com a crescente tendência de judicialização de questões sobre justiça reprodutiva, muitos desses casos serão decididos por magistrados que jamais precisaram se preocupar em como uma gravidez indesejada ou não planejada afetaria suas carreiras e vidas.

A esperança é que os amplos debates sobre esses temas, brevemente introduzidos neste artigo, sejam levados em consideração por esses juízes.

Essas discussões contribuiriam para que esses magistrados ofereçam respostas mais adequadas tanto às ações judiciais movidas recentemente contra Femtechs quanto a outros casos referentes ao tema, levando em conta a gravidade dos danos causados e a amplitude do impacto, e estabelecendo reparações compatíveis.

Assim, através de uma proteção efetiva dos direitos reprodutivos, essas decisões poderiam oferecer algum otimismo em relação a uma possível reversão do contexto atual.logo-jota