Em julho de 2023, foi publicada a Lei n. 14.611, que dispõe “sobre a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens”. Em seu artigo segundo, o diploma traz a afirmativa de que “A igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens para a realização de trabalho de igual valor ou no exercício da mesma função é obrigatória e será garantida nos termos desta Lei”. Trata-se do mais básico dos conceitos de igualdade, mas nesse tema ainda não saímos do básico.
A nível global, o chamado gender gap, que traduz a diferença na remuneração média de homens e mulheres, está em 20%[1]. Se isolarmos o continente Europeu, a diferença é de 13%;[2] na América Latina, somente Barbados, Jamaica e Panamá ficam acima da média global; no Brasil, que ocupa uma das piores posições no ranking da região, o gender gap foi, em 2023, de estarrecedores 37%[3].
O número é significativamente maior do que o dado que mais circula no país atualmente: a pesquisa do IBGE que coloca o Brasil na média global e determinou que o gender gap está em 22% no país[4]. Mas a discrepância não surpreende quando se leva em consideração que, para além de demandar a análise de múltiplos critérios, a determinação do gender gap depende das faixas de trabalhadores analisadas. Pesquisas mostram, por exemplo, que ao separar os trabalhadores com nível superior do demais, incrivelmente, o gap cresce, atingindo os 33%[5].
Aparentemente, quanto mais as mulheres se qualificam, mas distantes ficam dos homens igualmente qualificados. É um bom ponto de partida para voltarmos à premissa básica da Lei de Igualdade Salarial. O art. 2o, reproduzido acima, traz conceitos importantes, como o trabalho de igual valor. Num estágio mais avançado da luta por igualdade salarial, procura-se investir no conceito de que trabalhos profundamente diferentes podem ser considerados de igual valor, levando em conta não apenas níveis de qualificação e esforço necessário para realizar as funções, mas uma visão global de como as diferentes funções contribuem para o empreendimento[6]. Com essa lógica, arguiu-se a equiparação das funções de cozinheiras e profissionais de limpeza (majoritariamente mulheres) com jardineiros e motoristas (majoritariamente homens) em hotéis de luxo; e de comissárias de bordo (majoritariamente mulheres) com pilotos e engenheiros aeronáuticos (majoritariamente homens)[7].
Mas chegar nesse ponto significa abandonar uma concepção de igualdade que busca por equiparação que presume semelhança, e não diferença. Remunerar da mesma forma funções distintas significa enfrentar o fato de que preconceitos e estereótipos de gênero regulam o mercado de funções tipicamente ocupadas por mulheres, e aceitar que a medida de justiça na igualdade de gênero no trabalho tem menos a ver com equiparação e mais com o desmonte de estruturas de dominação. Catherine MacKinnon já explicava: dominação, e não diferença[8].
Não parecemos, enquanto país, prontos para essa conversa. Enquanto a Lei de igualdade Salarial proclama que a igualdade salarial é obrigatória para a realização de trabalho de igual valor, seu decreto regulamentador (Decreto n. 11.795/2023) pretende verificar o cumprimento dessa ordem através da Classificação Brasileira de Ocupações – CBO. Trata-se de dado oficial a ser informado pela empresa de mais de cem funcionários que a lei pretende que participe da construção do Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios[9].
Sem entrar excessivamente no mérito das defasagens e distorções de utilizar o CBO como critério, em razão da dificuldade de a Classificação refletir as nuances de avanço de carreira em determinadas profissões; na qualidade de critério principal, a adoção do CBO significa o abandono de qualquer tentativa de efetivar um conceito verdadeiro de trabalho de igual valor, como algo distinto de mesmo cargo ou mesma função.
Para além desse aspecto, pouco se fala sobre critérios de promoção e avanço entre funções que, aparentemente neutros, promovem desigualdade entre homens e mulheres. Relembrando: conforme os trabalhadores se tornam mais qualificados o gender gap cresce. O fenômeno é chamado de glass ceilling: a barreira invisível que dificulta o acesso das mulheres a níveis mais altos da hierarquia organizacional das empresas[10].
O glass ceilling é multifatorial, mas para entender a causa principal do fenômeno, entramos numa zona de crítica a algumas verdades intocáveis. Promoções a cargos de maior hierarquia, de chefia ou de confiança, posições de maior remuneração, geralmente dependem da análise de critérios “neutros”: dedicação, produtividade, horas trabalhadas, entregas[11]. Manter-se vinculado a esses critérios é uma linha de salvação para as empresas que, por um lado, estimula a produtividade e, por outro, garante uma justificativa razoável para qualquer diferenciação entre os anteriormente iguais: subiu aquele que se destacou, que cumpriu as metas, que entregou mais.
E como argumentar que menos entrega, menos produtividade, menos dedicação, deve ser remunerado de maneira igual? Muitas mulheres efetivamente, objetivamente, experimentam uma queda de rendimento ao longo de suas vidas produtivas, coincidentes com os primeiros anos das vidas de seus filhos, dos quais são invariavelmente as cuidadoras principais[12]. A mudança se reflete nos critérios objetivos e, como estes são neutros, alega-se que não há discriminação de gênero.
Quebrar o teto de vidro significa abandonar a falácia meritocrática, e não apenas entre nós, mas globalmente, é difícil se desvencilhar do conceito de mérito[13]. O quão longe estamos de ver empresas adotarem metas diferentes para a promoção de homens e mulheres em idade reprodutiva, sob a compreensão que uma diminuição na produtividade feminina é o resultado de uma decisão familiar, privada, e que beneficia homens e mulheres igualmente?
Talvez mais longe do que é aceitável, principalmente se caminharmos devagar. É comum na literatura sobre o gender gap encontrar um dado desolador: uma conta de quantos anos falta para fecharmos a disparidade salarial entre homens e mulheres. A resposta, se seguirmos no mesmo ritmo de mudança, é desesperadora: mais de um século[14].
Não há dúvidas de que é valioso ver a igualdade remuneratória de gênero estampada em lei. A chegada da Lei de Igualdade Salarial é causa para celebração, e é certo que o Brasil sequer atingiu o estágio mais básico de pagar o mesmo para homens e mulheres que realizam as mesmas funções. Mas o apego aos critérios de semelhança e equiparação entre gêneros nos mantém presos a uma realidade que MacKinnon descreveu com a perspicácia de sempre: “na medida em que as mulheres não são diferentes dos homens, merecemos o que eles têm”[15].
Podemos mais, e a hora é agora. Repensar a regulamentação da Lei de Igualdade Salarial é o primeiro passo para ir além e acelerar o processo de fechar o gap.
[1] UN Women, Everything you need to know about pushing for pay equity. Disponível em: https://www.unwomen.org/en/news/stories/2020/9/explainer-everything-you-need-to-know-about-equal-pay, acesso em 26/02/2024.
[2] European Comission, The gender pay gap situation in the EU. Disponível em: https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/policies/justice-and-fundamental-rights/gender-equality/equal-pay/gender-pay-gap-situation-eu_en, acesso em 26/02/2024.
[3] Statista, Gender pay gap index based on estimated earned income in selected countries of Latin America and the Caribbean in 2023. Disponível em: https://www.statista.com/statistics/806368/latin-america-gender-pay-gap-index/, acesso em 26/02/2024.
[4] Ministério das Mulheres, Conheça os principais pontos do PL da Igualdade Salarial aprovado na Câmara nesta quinta-feira (4). Disponível em: https://www.gov.br/mulheres/pt-br/central-de-conteudos/noticias/2023/maio/conheca-os-principais-pontos-do-pl-da-igualdade-salarial-aprovado-na-camara-nesta-quinta-feira-4, acesso em 26/02/2024.
[5] CNN Brasil: Mulheres ganham 19% menos que homens –no topo, a diferença é de mais de 30%. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/mulheres-ganham-19-menos-que-homens-no-topo-diferenca-e-de-mais-de-30/, acesso em 27/02/2024; No mesmo sentido a pesquisa publicada em FGV, Diferenças de gênero no mercado de trabalho. Disponível em: https://portal.fgv.br/artigos/diferencas-genero-mercado-trabalho, acesso em 27/02/2024.
[6] EPIC – Equal Pay International Coalition, EQUAL PAY FOR WORK OF EQUAL VALUE. Disponível em: https://www.equalpayinternationalcoalition.org/en/equal-pay#:~:text=EQUAL%20PAY%20FOR%20WORK%20OF%20EQUAL%20VALUE&text=This%20means%20ensuring%20that%20women,evaluated%20based%20on%20objective%20criteria., acesso em 27/02/2024.
[7] International Labour Organization, 2.4 Equal remuneration for work of equal value. Disponível em: https://www.ilo.org/global/topics/wages/minimum-wages/rates/WCMS_433906/lang--en/index.htm#:~:text=For%20example%2C%20some%20of%20the,attendants%20(mostly%20women)%20with%20pilots, acesso em 27/02/2024.
[8] MACKINNON, Catherine. Difference and Dominance: On Sex Discrimination. In: BARLETT, Katherine, KENNEDY, Rosanne. Feminist Legal Theory: Readings in Law and Gender. Nova York: Routhledge, 1984, pp. 381-392.
[9] Art. 2º O Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios de que trata o inciso I docaputdo art. 1º tem por finalidade a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos e deve contemplar, no mínimo, as seguintes informações:
I - o cargo ou a ocupação contida na Classificação Brasileira de Ocupações - CBO, com as respectivas atribuições;
[10] The Economist: The Economist’s glass-ceiling index, disponível em: https://www.economist.com/graphic-detail/glass-ceiling-index?utm_medium=cpc.adword.pd&utm_source=google&ppccampaignID=19495686130&ppcadID=&utm_campaign=a.22brand_pmax&utm_content=conversion.direct-response.anonymous&gad_source=1&gclid=Cj0KCQiA84CvBhCaARIsAMkAvkLOejVlli13j7HOi1iDFekZPEZUPIMV25OsoVp3rm5f-Jsj1iude7AaAu2DEALw_wcB&gclsrc=aw.ds, acesso em 28/02/2024.
[11] International Labour Organization, Beyond the glass ceiling: Why businesses need women at the top. Disponível em: https://www.ilo.org/infostories/en-GB/Stories/Employment/beyond-the-glass-ceiling#introduction, acesso em 28/02/2024.
[12] Idem.
[13] No tema: SANDEL, Michael J. A tirania do mérito: O que aconteceu com o bem comum? São Paulo: Civilização Brasileira, 2020; MARKOVITS, Daniel. The Meritocracy Trap: How America's Foundational Myth Feeds Inequality, Dismantles the Middle Class, and Devours the Elite. Nova York: Penguin Press, 2019.
[14] World Economic Forum: It will take another 136 years to close the global gender gap. Disponível em: https://www.weforum.org/agenda/2021/04/136-years-is-the-estimated-journey-time-to-gender-equality/, acesso em 28/02/2024.
[15] MACKINNON, Catherine. Difference and Dominance: On Sex Discrimination. In: BARLETT, Katherine, KENNEDY, Rosanne. Feminist Legal Theory: Readings in Law and Gender. Nova York: Routhledge, 1984, pp. 385.