Eloísa Machado de Almeida
Professora de Direito Constitucional da FGV Direito SP
O debate sobre patentes, essencial para saúde pública nos países em desenvolvimento, é marcado por uma divisão tão rasa quanto enganosa. Aqueles que o questionam são invariavelmente chamados de retrógrados; os que defendem, por sua vez, são vistos como os arautos da inovação e da modernidade. No entanto, é preciso reconhecer que os argumentos que fundamentam a crítica ao funcionamento do sistema de patentes são baseados em fortes evidências empíricas que ilustram o desequilíbrio entre interesse público e privado.
Por exemplo, dados e documentos internacionais robustos como o relatório “Pesquisa e Desenvolvimento para atender as necessidades de saúde dos países em desenvolvimento” (2012), publicado por um grupo de especialistas reunidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o artigo “O caso contra as patentes”(2013), de dois economistas do Federal Reserve Bank dos Estados Unidos e a resolução 2071 (2015), da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, apontam, sem margem para dúvidas, que o sistema de patentes está em profunda crise: não entrega a inovação desejada, não promove desenvolvimento industrial e acirra as desigualdades. O resultado? Milhares de pessoas vivendo sem o tratamento adequado ou morrendo, por falta de acesso a medicamentos.
Mesmo sendo um sistema em crise e ineficiente, alguns setores tecnológicos são profundamente beneficiados, como é o caso do setor farmacêutico. Não por outra razão, diversas empresas e associações de empresas procuram caminhos para impedir sua morte, perpetuar sua existência e aprofundar suas regras. O lobby sofisticado procura avançar a agenda das empresas, especialmente das gigantes transnacionais. Além disso, é comum a absorção, pelo setor privado, de profissionais do setor público e vice-versa, prática conhecida como portas giratórias, o que acentua o caráter patrimonialista nas relações público-privado. Isso acontece no Brasil com regularidade. Juízes aposentados e dirigentes de autarquias reguladoras não raro saem de seus gabinetes públicos diretamente para representar empresas e associações empresariais do setor.
Trata-se de uma crise global, mas que possui peculiaridades no âmbito doméstico, uma vez que o princípio da territorialidade das patentes permite que os países tenham algum nível de manobra na decisão sobre o que entendem ser uma patente merecida. É nesse contexto que lemos a entrevista de Otto Licks, publicada aqui em 13/06/2016 (https://www.jota.info/um-lobby-sofisticado-mantem-caos-no-inpi-afirma-otto-licks), que discorre sobre uma estratégia que há anos é apresentada por alguns como uma solução mágica para aumentar a eficiência da análise de patentes no Brasil: o PPH (Patent Prosecution Highway).
Pouca gente se atreve a dizer, mas o Backlog (tempo de demora para examinar pedidos de patente) do INPI não interessa ao consumidor final de produtos que estão em análise; tanto o contrário, beneficia sobretudo as empresas farmacêuticas estrangeiras. Isso porque, durante a dita demora, não há um prejuízo para a empresa que depositou o pedido de patente, pois concorrentes brasileiros não se arriscam a entrar no mercado enquanto não houver uma decisão final. Assim, atrasa-se ou impede-se a concorrência e os preços de produtos essenciais, como medicamentos, seguem em situação de monopólio. Como se não bastasse, a lei brasileira, por meio do artigo 40 da LPI, compensa essa espera não prejudicial com anos a mais de exclusividade. Assim, decisões pendentes são desejadas e estimuladas. Acompanhamos as práticas usadas pelas empresas para afastar decisões finais do horizonte. Para ilustrar, podemos falar do medicamento lopinavir/ritonavir, usado no tratamento de HIV/Aids. Sua patente foi anulada em 2012, mas até hoje concorrentes ainda não entraram no mercado, receosos diante da guerrilha jurídica e administrativa capitaneada pelas empresas transnacionais. Perdem os usuários. Perde o SUS. Perdem os concorrentes. Só não perde a empresa.
Intrigante é o fato de representantes de empresas farmacêuticas estrangeiras agora serem aqueles que denunciam e reclamam desse esquema que só lhes traz vantagem. A única explicação plausível é: vislumbraram outro ainda melhor e se chama PPH. Com o PPH talvez seja possível eliminar a única variável incômoda do esquema anterior: a autonomia do examinador brasileiro de fazer seu trabalho e eventualmente rejeitar uma patente, caso entenda ser a mesma imerecida. Nada que não pudesse ser contornado ou protelado no judiciário, mas para que gastar tanto dinheiro se é possível transformar o examinador brasileiro num robô que copia a decisão tomada em países mais “modernos”?
O PPH é um caminho para aprofundar o que o sistema de patentes tem de pior – a iniquidade. Como descrito pelo próprio Sr. Otto Licks, significa pressão sobre examinadores e harmonização de decisões entre países, mas países profundamente desiguais em volume de pedidos, de quantidade de analistas habilitados a proceder o exame e em capacidade de geração de inovação. Assim, o sistema transformará o escritório de patentes brasileiro num cartório de concessão de patentes estrangeiras, facilitando a vida das empresas desses países e fragilizando muito o trabalho do examinador nacional.
Harmonizar decisões com os EUA ou com o Japão na área farmacêutica significará tão somente mais medicamentos patenteados no Brasil, com o incremento nos preços e diminuição do acesso. Ou seja, mais pessoas sem tratamento.
O oferecimento de um privilégio legal àquele que nada oferece à sociedade é em si um desvirtuamento do sistema e deve ser combatido. Essa é uma prerrogativa dos países e, portanto, zelar pela qualidade do exame é uma questão de soberania nacional. Cada país tem o dever de criar abordagens condizentes para cumprir com suas obrigações constitucionais, sobretudo aquelas relativas aos direitos humanos e ao direito à saúde.
Em análise de patentes, como em qualquer política pública séria, soluções mágicas não existem. A construção de um sistema rápido e eficiente de análise passa necessariamente por melhorias estruturais: mais examinadores valorizados, guias claros e condizentes com nosso estágio de inovação, capacidade administrativa e fluxos eficientes de informação. Programas de aceleração artificiais como o PPH servem apenas para garantir mais lucros para os que historicamente ganham com esse sistema. E não somos nós.