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Participação de estrangeiros no sistema financeiro

A estratégia brasileira é justificável?

Marcio Valadares, Pedro Henrique Pessanha Rocha
16/01/2019|07:00
Atualizado em 16/01/2019 às 06:00
câmbio
Edifício do Banco Central do Brasil. Crédito: Beto Nociti/BCB

Na última semana, a imprensa noticiou que as autorizações para funcionamento de instituições financeiras controladas por estrangeiros e aumento de participação estrangeira em instituições em operação no País poderão passar a depender exclusivamente de aprovação pelo Banco Central do Brasil (BCB). Atualmente, tais autorizações decorrem do consentimento do supervisor bancário e do Presidente da República. A revisão das regras sobre participações estrangeiras no sistema financeiro e a forma como ela será instrumentalizada suscitam reflexões nos campos constitucional e regulatório.

A atividade transnacional de instituições financeiras gera benefícios tanto para os países em que elas estão originalmente sediadas (países de origem), quanto para os que recebam suas atividades (países anfitriões). Aumento da concorrência nos sistemas financeiros nacionais, maior oferta de crédito, inovações financeiras e ampliação da gama de produtos e serviços à disposição de investidores e tomadores de crédito são algumas das vantagens decorrentes da globalização financeira.

Por outro lado, a atuação de instituições financeiras fora de seus países de origem desperta determinadas preocupações. Na ausência de autoridades supranacionais de regulação e supervisão financeira, a indefinição sobre as regras e as autoridades nacionais a que instituições internacionalmente ativas estão subordinadas pode gerar dois cenários indesejáveis. No primeiro deles, falhas regulatórias no país de origem de uma instituição financeira a tornam suscetível a crise que, por sua vez, pode contagiar outras instituições e produzir efeitos negativos no sistema financeiro e, no limite, na economia real do país anfitrião. No segundo cenário, a falta de coordenação entre supervisores nacionais cria uma zona de penumbra, em que instituições financeiras operam sob o radar de autoridades nacionais. Também aí há um potencial foco de instabilidade para sistemas financeiros nacionais.

Assim, supervisores nacionais devem encontrar um ponto ótimo entre duas ordens de preocupações. Ao tempo em que precisam evitar a imposição de obstáculos regulatórios desnecessários à atividade financeira transnacional, cabe-lhes também adotar precauções para que eventuais falhas regulatórias no país de origem de instituições ou a falta de coordenação com supervisor estrangeiro não afetem o sistema financeiro por cuja estabilidade lhes compete zelar.

Como grande parte das questões enfrentadas por supervisores financeiros, as potenciais vantagens da integração financeira e os desafios dela decorrentes são similares em países diversos1. Por isso, muitas jurisdições têm adotado uma estratégia padrão para a supervisão de instituições financeiras controladas por estrangeiros, o chamado tratamento nacional2. Basicamente, ele consiste em dispensar a tais entidades regras idênticas às aplicáveis às instituições domésticas. Sob o modelo de tratamento nacional, os que desejem atuar fora de seu território de origem devem se submeter integralmente à regulação e supervisão do país anfitrião. Como a supervisão financeira tem início com a autorização para funcionamento por parte do supervisor, o tratamento nacional impõe a instituições financeiras autorizadas a funcionar em seu país de origem a obrigação de obter nova autorização no país anfitrião.

Como se pode supor, a conformidade a regras distintas daquelas sob as quais operam em seus países de origem e a apresentação e acompanhamento de pleito para obtenção de nova autorização junto ao supervisor financeiro do país anfitrião implicam custos. Essas despesas têm sido aceitas como um preço a ser pago pela preservação da estabilidade financeira.

A jurisdição brasileira, por sua vez, confere tratamento peculiar à atividade financeira transnacional. Como se sabe, o art. 52 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 veda qualquer aumento de participação estrangeira em instituições financeiras autorizadas a funcionar no País3. Aquele mesmo dispositivo, contudo, prevê exceções a tal proibição: são válidas as autorizações para aumento de participação resultantes de acordos internacionais, de reciprocidade ou de interesse do governo brasileiro.

Na prática, a expressão “interesse do governo brasileiro” contida no art. 52 do ADCT tem sido interpretada como um regime de tratamento nacional duplamente qualificado. Não apenas o controle de instituições financeiras, mas qualquer aumento de participação detida por estrangeiros, depende de aprovação do supervisor bancário brasileiro e do Presidente da República, que manifesta sua posição por meio de um decreto.

Embora a participação do Chefe do Poder Executivo federal em processos do gênero seja avaliada por alguns, inclusive pelo Fundo Monetário Internacional4, como meramente formal, não há dúvidas de que ela gera custos adicionais para as entidades que a pleiteiam. Mais de trinta anos após a edição do ADCT, parece chegada a hora de se avaliar se esses custos adicionais são justificáveis, isto é, se os propósitos do modelo brasileiro de tratamento nacional duplamente qualificado são desejáveis nos dias de hoje, se essa estratégia é eficaz para alcançá-los e, em caso positivo, se ela é o caminho menos custoso para atingir tais resultados.

Esse movimento já foi iniciado: para simplificar o procedimento de autorização de participação estrangeira no capital social das sociedades de crédito direto e sociedades de empréstimos entre pessoas – como as fintechs estão organizadas no Brasil –, foi editado o Decreto nº 9544, de 29 de outubro de 2018, por meio do qual o Presidente da República afirmou que “é de interesse do Governo brasileiro a participação estrangeira de até cem por cento no capital social” de tais instituições.

Essa foi uma medida concreta sintonizada com a Agenda BC+, plano de trabalho adotado pelo Banco Central do Brasil (BCB) nos últimos dois com o objetivo de garantir mais cidadania financeira, uma legislação mais moderna, um sistema financeiro mais eficiente e crédito mais barato. A Agenda BC+ trouxe considerações relativas à eficiência no sistema financeiro para o centro de debates sobre regulação bancária e é um dos marcos da história da regulação bancária brasileira.

Como dito, há expectativa de que a equipe econômica do novo governo revise a estratégia de tratamento nacional duplamente qualificado também em outros segmentos do sistema financeiro brasileiro. Especificamente, cogita-se a edição de um decreto cujo efeito seria a atribuição exclusivamente ao BCB da missão de autorizar o funcionamento de instituições financeiras controladas por estrangeiros e o aumento de participação estrangeira em instituições em operação, assim como ocorreu com as fintechs.

Não há dúvidas quanto à importância de se encontrar o ponto ótimo para as exigências regulatórias impostas ao setor financeiro e, com isso, estimular a entrada de novos agentes no mercado, o aumento da concorrência e todos os benefícios dela decorrentes. Pela relevância do tema, as discussões sobre o tratamento jurídico das participações estrangeiras em instituições financeiras prometem aquecer debates no novo ano. Caso as mudanças divulgadas sejam de fato realizadas, será preciso atenção em relação aos instrumentos jurídicos adotados para o seu encaminhamento.

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1 Essa circunstância justifica a participação de autoridades nacionais em foros internacionais voltados à análise de temas financeiros, bem como o fato de grande parte da regulação financeira vigente no Brasil ser aderente aos padrões editados por essas redes de reguladores.

2 Duas outras estratégias são comumente mencionadas quando se trata da supervisão de instituições financeiras controladas por estrangeiros: a do reconhecimento (de que a regulação do país de origem é suficiente para assegurar a prática segura de determinadas operações no país anfitrião) e a do passaporte (que depende de alto grau de harmonia entre normas nacionais e permite a uma instituição operar livremente em diversos países apenas com a autorização do supervisor de seu país de origem).

3 Até a edição de lei complementar que disponha sobre a participação do capital estrangeiro nas entidades integrantes do sistema financeiro, como prevê o art. 192 da Constituição Federal.

4 Como destacado no último relatório do Programa de Avaliação do Setor Financeiro (FSAP, no acrônimo em inglês) dedicado à observância pelo Brasil das recomendações internacionais editadas pelo Comitê de Supervisão Bancária de Basileia: “Although a Presidential Decree/Decision is required before a foreign owned subsidiary or branch can enter the Brazilian market, the procedure, which is seen largely as a formality, is not initiated unless the BCB has first scrutinised the application and concluded it is willing to grant its supervisory approval for a new authorisation”. Disponível em https://www.imf.org/en/Publications/CR/Issues/2018/11/30/Brazil-Financial-Sector-Assessment-Program-Detailed-Assessment-of-Observance-Basel-Core-46412. Último acesso em 7 de janeiro de 2019.

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