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Agronegócio

Lei do agro e a aquisição de propriedades rurais por estrangeiros

O problema ainda não se resolveu

Ana Vogado
16/06/2020|07:56
Crédito: Pixabay

A partir do século passado, o direito de propriedade perdeu seu caráter absoluto e passou a ser pautado na promoção da funcionalização do imóvel para o atendimento dos interesses da sociedade, principalmente por a terra ser um bem limitado e escasso, intrinsecamente ligada à segurança alimentar, e, por isso, não poder ser reproduzido.

Com isso, recorda-se que, nos anos de 2007 e 2008, o mundo assistiu a uma explosiva alta dos preços das commodities, que ensejou uma grande preocupação sobre a inflação dos produtos agrícolas na comunidade internacional. O descolamento entre oferta e demanda impulsionou a crise de commodities no cenário global, porquanto a crescente demanda dos produtos primários, gerada pelo desenvolvimento dos países emergentes e pelo crescimento populacional, chocou-se com o estreitamento da oferta de produtos e resultou em instabilidade no mercado agrícola.

Essa “agroinflação” e a insegurança causada pela volatilidade no preço das commodities levaram os Estados industrializados e dependentes de importação desses produtos a entrarem em uma corrida por terras, em especial em regiões africanas e latino-americanas. Isso fez com que a presença de capital estrangeiro na aquisição de terras, principalmente no Brasil, elevasse drasticamente.

Para melhor elucidar a questão, toma-se como base o estudo realizado pelo Banco Mundial[1], em 2010, o qual demonstra que a demanda internacional por terras disparou a partir de 2008, tornando a "disputa territorial" um fenômeno global. A transferência de terras agricultáveis era da ordem de 04 milhões de hectares por ano antes de 2008, sendo que, entre outubro de 2008 e agosto de 2009, teriam sido comercializados mais de 45 milhões, 75% destes na África e outros 3,6 milhões no Brasil e Argentina.[2]

Contudo, a legislação brasileira, por muito tempo, apresentou controvérsias no que tange às restrições para aquisição de terras por estrangeiros no país, em especial pela empresa brasileira cujo capital social é majoritariamente externo, tendo sido manifestados diferentes posicionamentos da Advocacia Geral da União quanto ao tema, alterando, inopinada e reiteradamente, a sistemática legal que rege a matéria.

Tem-se que, entre 1971 e 1995, por força da Lei nº 5.709/71, o sistema normativo brasileiro equiparava às pessoas jurídicas estrangeiras a pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria de seu capital social ou residam ou tenham sede no exterior — tornando, portanto, ambas submetidas às restrições impostas no texto legal. Entretanto, entre 1995 e 2008, as restrições à aquisição de propriedade imobiliária pelas empresas brasileiras equiparadas a estrangeiras deixaram de existir, visto que a AGU, em Pareceres datados de 1994 e 1998, entendeu não ter havido a recepção do §1º do art. 1º daquela Lei, dada a redação do inc. I do art. 171 da CF, o que perdurou por mais de uma década. [3]

Como, a partir de 2008, o fluxo de aquisição de terras por estrangeiros no Brasil teve um forte crescimento, a AGU mudou o entendimento antes exarado e emitiu, em 2010, o parecer LA-01, com uma nova interpretação da legislação vigente, no sentido de limitar o acesso de pessoas jurídicas brasileiras equiparadas a estrangeiras à propriedade fundiária nacional. O novo contexto econômico mundial, impulsionado também pela crise das commodities, levou a um reposicionamento do Governo Federal sobre o tema, para possibilitar a retomada de mecanismos de controle nacionais.

O novo parecer adotou entendimento inteiramente oposto ao dos anteriores, argumentando que o § 1º do art. 1º da Lei nº 5.709 foi recepcionado pela Constituição de 1988 e, portanto, jamais teria perdido vigência o regramento de que a pessoa jurídica brasileira com controle ou capital social majoritariamente externo submete-se aos ditames da referida lei, equiparando-se, desse modo, ao estrangeiro residente no Brasil e à pessoa jurídica estrangeira autorizada a aqui funcionar.

A posição da AGU foi alterada em 2010 sem aprovação de norma restringindo a compra e o arrendamento de propriedades rurais por sociedades brasileiras controladas por estrangeiros. Essa instabilidade normativa, frente às mudanças econômicas e sociais, causou grandes repercussões no cenário econômico e jurídico nacional e gerou uma extrema insegurança a todas as partes envolvidas nessa relação. Muitas negociações em andamento à época foram sobrestadas ou recorreram a instrumentos à margem da legislação para a consecução do negócio — o que gerou prejuízos ainda maiores para a efetividade do controle estatal sobre as transações.

Desde 2010, o crescimento dos setores agrícola e agropecuário tem sido comprometido pelas mudanças repentinas de posicionamento emitidos pela AGU.[4] Essa insegurança alcançou os muitos negócios que haviam sido iniciados antes da publicação do último parecer, afetando, também, uma série de projetos já em fase de implantação.

Como uma alternativa a essa instabilidade, foi publicada a Lei Federal nº 13.986, em 07 de abril de 2020, que, em seu art. 51, altera o § 2º do art. 1º da Lei nº 5.709, para trazer a possibilidade de concessão de imóvel rural em garantia real a credores estrangeiros, autorizando a constituição de alienação fiduciária sobre esses imóveis e a consolidação ou adjudicação da propriedade rural no patrimônio de credores não brasileiros.

Apesar de a norma procurar estabelecer segurança jurídica a essas transações e atrair investidores estrangeiros ao agronegócio nacional, as lacunas regulamentadoras sobre o tema ainda existem. A ausência de uma norma que contemple todas as controvérsias no que tange à aquisição de propriedade rural por pessoa jurídica estrangeira não só afasta o investimento externo como dá margem à criação de situações desordenadas para o próprio país. Inexiste regulamentação, por exemplo, para situações em que uma empresa brasileira proprietária ou arrendatária de uma propriedade rural tem a maioria de suas ações vendidas para investidores internacionais, fazendo com que não se tenha o registro da titularidade estrangeira da propriedade ou do contrato.

Em caso semelhante ocorrido nos Estados Unidos, a empresa americana Smithfield Company — maior produtora de suínos do mundo — passou a ser propriedade dos chineses, pois foi adquirida pela Shuanghui, posteriormente denominada WH Group Limited, em 2013, pelo valor de US$ 4,7 bilhões. Com essa transação, nos EUA, a China adquiriu 59.084,1 ha de terras agrícolas, que valem mais de US$ 500 milhões, e passou a controlar cerca de 400 fazendas, 33 fábricas de processamento de alimentos e cerca de um em cada quatro suínos do país.[5]

Muitas empresas encontram nas falhas do gerenciamento do território brasileiro ainda existentes uma alternativa para burlar as restrições de aquisição de propriedade por pessoas jurídicas estrangeiras. Compra de debêntures conversíveis em ações, contratos de parceria rural e até alterações nos limites das áreas urbanas das cidades foram algumas das possibilidades — podendo ser a hipótese trazida pela nova lei, na verdade, mais uma delas.

Por isso, tendo em vista que o Brasil centraliza no setor agrícola parcela importante de seu produto interno bruto, bem como que a mudança de posicionamento da AGU causou impactos expressivos na economia, ainda urge a de criação de uma alternativa pensada, de um lado, à luz da segurança jurídica e do desenvolvimento econômico e, de outro, à luz da segurança nacional e do domínio da infraestrutura, para sanar a insuficiência do tratamento dado à aquisição de terras por estrangeiros pelas leis civis brasileiras.

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[1] BANCO MUNDIAL. Rising global interest in farmland: Can it yield sustainable and equitable benefits? Washington D.C., 07 de setembro de 2010.

[2] https://landmatrix.org/en/get-the-idea/web-transnational-deals/.

[3] A Lei n.º 5.709/71, em seu artigo 1º, estabelece que devem se sujeitar às restrições do normativo, além das pessoas físicas e jurídicas estrangeiras, as pessoas jurídicas brasileiras da qual participem pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no Exterior. Com isso, surgiram dúvidas se o § 1º do art. 1º da Lei n.º 5.709 haveria sido  recepcionado pela Carta Magna. Concluiu a Advocacia Geral da União, pelo Parecer GQ-22/94, que o § 1º do art. 1º da Lei nº 5.709, de 1971, conflitava com o conceito exarado no inciso I do art. 171 da CF e não teria sido, então, recepcionado, aduzindo que não deveriam ser consideradas estrangeiras as empresas brasileiras controladas por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras. Em 1995, a Emenda Constitucional n.º 6 revogou o art. 171 da Constituição, o que levou a AGU a proceder, a partir de março de 1997, ao reexame do Parecer n.º GQ-22, de 1994, e a emitir o Parecer nº GQ-181, de 1998. Entretanto, o órgão manteve seu posicionamento originário, qual seja, o afastamento das restrições a pessoas jurídicas brasileiras de capital majoritariamente estrangeiro.

[4] Estima-se que o setor florestal (incluindo os segmentos de papel e celulose, siderurgia e painéis de madeira) perdido investimentos da ordem de R$ 37,32 bilhões. Em média R$ 3,5 bilhões em tributos deixaram de ser recolhidos no 7º ano (quando se dá o corte das floretas plantadas) e 40 mil empregos deixaram de ser gerados ­- PL n.º 590, de 2015, de autoria do Senador Waldemir Moka, que altera a Lei n.º 5.709/71 e dá outras providências, para estabelecer novos critérios e mecanismos de aquisição imóvel rural por estrangeiro no Brasil.

[5] THOMSON, A. Foreign investors are snapping up US farms. Mother Jones, 4 Aug. 2017.logo-jota