Silvia Hachiya
Sócia responsável pela área de Direito Societário do Barros Pimentel, Alcantara Gil e Rodriguez Advogados
Atualmente, aproximadamente 94% das sociedades empresárias no Brasil adotam, para organização e exploração de suas atividades econômicas, o tipo societário de “sociedade limitada”, regida pela Lei nº 10.406/02 (“Código Civil”); e aproximadamente 4% das sociedades empresárias adotam o tipo societário de “sociedade anônima”, regida pela Lei nº 6.404/76 (“Lei das S/A”) [1].
Em princípio, uma vez que, em ambos os tipos societários, a responsabilidade dos sócios limita-se ao montante do investimento realizado (no caso de S/As, ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas e, no caso das limitadas, ao capital social integralizado), a escolha majoritária pela sociedade limitada pode ser explicada, de forma geral, por ser um tipo societário menos burocrático em comparação com as sociedades anônimas.
Adicionalmente, a decisão de se adotar uma sociedade limitada também pode decorrer de outros fatores, como a maior flexibilidade de retenção de lucros para desenvolvimento de seus negócios sociais, bem como a admissibilidade de distribuição de lucros aos sócios sem que seja observada a participação proporcional de cada sócio no capital social, se assim dispuser o contrato social[2].
Parte da menor flexibilidade nas sociedades anônimas decorre do artigo 109, §1º da Lei das S/A, que determina que as ações de mesma espécie conferirão a seus titulares os mesmos direitos ou vantagens, não sendo, portanto, admissível que ações de mesma espécie recebam dividendos desiguais.
Adicionalmente, vigora, no caso das companhias, o princípio da maximização do direito do acionista ao recebimento de lucros. De forma resumida, a Lei das S/A determina que haja o pagamento de dividendo mínimo obrigatório aos acionistas, além do pagamento de saldo remanescente do lucro que não houver sido destinado às reservas de lucros previstas em lei[3]. Tal princípio de maximização do retorno ao acionista foi reforçado após a promulgação da Lei nº 11.638/2007, que proibiu a existência de saldo em conta de lucros acumulados ao final do exercício em sociedades anônimas[4].
Por outro lado, nas sociedades limitadas, é permitido, de acordo com o Código Civil, distribuir dividendos aos sócios observando-se ou não a proporção detida por cada sócio no capital social, desde que assim estabelecido no contrato social. Os sócios podem, assim, convencionar as regras aplicáveis às destinações dos lucros ao final de cada exercício, tais como à retenção de lucros para reforço de capital de giro, reinvestimentos, contingências, ampliação de negócios ou distribuição de lucros sociais, definindo os critérios e parâmetros que devem ser observados, desde que não haja a exclusão de nenhum sócio ao direito de participar dos lucros.
Ressalte-se, no entanto, que, ao se estabelecer tais regras no contrato social, deve-se observar a lição da doutrina no sentido de que “o que não podem, nem o contrato social, nem a assembleia, é abolir, em definitivo, a distribuição dos lucros, mesmo a pretexto de capitalizações necessárias ao fortalecimento da empresa, presente que o direito à participação dos lucros sociais, regularmente distribuídos, é um dos princípios básicos da economia capitalista”. [5]
Por força do disposto no artigo 1.008 do Código Civil[6], fica claro que a lei veda a supressão do direito a auferir resultados por um sócio, seja abolindo tal direito ou através do pagamento de valores irrisórios.
Tal proibição legal, entretanto, não impede que os sócios tenham a faculdade de “fixar fórmulas desproporcionais de repartição dos resultados, conforme a conveniência concreta gerada pela importância de cada qual na gestão social e na efetiva viabilidade do quanto contratado”[7]. Há diversos julgados[8] que corroboram o entendimento quanto à admissibilidade de distribuição desproporcional à participação social em sociedades limitadas, desde que fixados os critérios e parâmetros para sua determinação.
A fixação de tais critérios no contrato social é essencial para que não fique ao arbítrio da maioria a determinação da parcela de lucros cabível a cada um dos sócios, sem qualquer justificativa.
Tais critérios[9] podem abranger, exemplificativamente, entre outros: o tempo de dedicação individual para orientação e envolvimento nos negócios sociais; os investimentos e esforços na capacitação pessoal para condução das atividades da sociedade; o comprometimento patrimonial e administrativo de cada sócio, considerando os riscos decorrentes da assunção e exercício de cargos na administração e gestão da sociedade e de seus ativos, de representação legal perante os órgãos públicos competentes (incluindo autoridades fiscais federais, estaduais e municipais, Comissão de Valores Mobiliários e outras entidades regulatórias), bem como riscos decorrentes de outorga de garantias pessoais em benefício da sociedade; além da contribuição direta para geração de receitas e resultados para sociedade, seja através da identificação, prospecção, apresentação e/ou desenvolvimento de oportunidades, parcerias, investimentos, projetos, operações, negócios da sociedade e de seus ativos.
Na ausência de critérios previamente pactuados entre os sócios, qualquer distribuição desproporcional de lucros, que não seja aprovada pela unanimidade dos sócios, poderá estar sujeita a questionamentos por qualquer dos sócios que venha a se sentir prejudicado sob alegação de que o voto da maioria teria sido proferido de forma abusiva, em conflito de interesse para benefício particular de um grupo de sócios.
Destacamos, contudo, um julgado que caracteriza como contraditória a postura de sócio, considerado, naquele caso, como empresário experiente, cujo pleito era o recebimento de lucros proporcionais à sua participação desde o ingresso na Sociedade, embora tenha aceitado, em diversas oportunidades anteriores, distribuições desproporcionais[10].
No entanto, no caso em questão, teria havido aceitação tácita do sócio com relação às distribuições realizadas anteriormente, enquanto tal situação lhe era conveniente, não sendo admissível a adoção de nova conduta, por violar a boa-fé objetiva que deve nortear as relações negociais.
Do exposto, a mera previsão contratual quanto ao pagamento de dividendos desproporcionais em sociedades limitadas não nos parece suficiente para viabilizar a sua realização, sem questionamentos, ainda que um sócio minoritário tenha previamente aceitado se sujeitar à decisão majoritária para sua determinação.
A fim de evitar conflitos societários, é essencial a prévia enunciação de critérios objetivos para justificar distribuições desproporcionais, sem que um ou mais dos sócios sejam excluídos da participação nos lucros, seja no próprio contrato social ou em política apropriada de distribuição de lucros aprovada em assembleia ou reunião de sócios, definindo percentuais de alocação dos resultados ao final do exercício e critérios bem definidos para sua distribuição desigual a título de lucros.
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[1] Fonte: Mapa de Empresas (Boletim do 1º quadrimestre/2021), divulgado pelo Ministério da Economia (https://www.gov.br/governodigital/pt-br/mapa-de-empresas/boletins/mapa-de-empresas-boletim-do-1o-quadrimestre-de-2021.pdf)
[2] Em decorrência das alterações no art. 294 da Lei das S/A, introduzidas pela Lei Complementar 182/2021 (“LC 182”), há doutrinadores que têm sustentado a possibilidade de distribuição de dividendos desproporcionais à participação acionária, diante de omissão no estatuto social das denominadas “sociedades anônimas simplificadas”. Entretanto, ao nosso ver, a LC 182 não pode ser interpretada de forma tão abrangente, considerando ser vedado o tratamento desigual nas companhias em relação aos direitos e vantagens conferidos a titulares da mesma espécie de ação, não sendo possível deixar à discricionaridade da maioria a determinação da parcela de lucros cabível a cada acionista. Adicionalmente, tal faculdade não está expressamente prevista na Lei das S/A, tal como permite, de forma clara, o artigo 1.007 do Código Civil diante de omissão no contrato social de uma sociedade limitada.
[3] Conforme art. 202 da Lei das S/A, na ausência de fixação no estatuto social, a importância a ser paga, a título de dividendo mínimo obrigatório, será metade do lucro líquido apurado, diminuído ou acrescido dos seguintes valores: a) importância destinada à constituição de reserva legal; e b) importância destinada à formação da reserva para contingências e reversão da mesma formada em exercícios anteriores. Os lucros não destinados nos termos dos arts. 193 a 197 deverão ser distribuídos como dividendos. No caso de companhias enquadradas como “sociedades anônimas simplificadas”, na omissão de seu estatuto social quanto à distribuição de dividendos, a Assembleia Geral poderá, por maioria, estabelecer livremente sobre o assunto, podendo determinar o pagamento de dividendos em valor superior ao mínimo obrigatório previsto no art. 202 ou, no limite, decidir por reter, na companhia, eventual saldo remanescente de lucros (após as deduções previstas em lei).
[4] A partir de 01/09/2021, tanto a obrigatoriedade de pagamento de dividendo mínimo obrigatório como a vedação à existência de saldo de lucros acumulados ao final do exercício podem ser afastados, por decisão majoritária em Assembleia Geral de sociedades anônimas simplificadas, em caso de omissão de seu estatuto social, conforme LC 182.
[5] José Waldecy Lucena, Das Sociedades Limitadas, Renovar, 2005, 6ª edição, p. 821).
[6] “Art. 1.008, CC. É nula a estipulação contratual que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas.”
[7] Marcelo Fortes Barbosa Filho, Código Civil Comentado, coord. Ministro Cezar Peluso, Manole, 2015, 9ª ed., p. 963
[8] Nesse sentido, “Não há critério definido, objetivo, para a hipótese de distribuição desproporcional dos lucros, deixando ao arbítrio dos sócios que representam mais da metade do capital social os corréus Otávio e Ronaldo a escolha pela distribuição desproporcional, sem qualquer justificativa. Dada a alta litigiosidade entre os litigantes, sem que haja sequer valor ou percentual mínimo de distribuição de lucros, a atual redação da Cláusula Sétima “possibilita” aos réus que não distribuam lucros à autora. As aspas acima se explicam: a redação dá ensejo a essa intenção, mas a lei não permite. A redação dada pela 21ª alteração contratual à Cláusula Sétima viola o art. 1.007 do Código Civil ao permitir a distribuição desproporcional de lucros aos sócios, sem qualquer justificativa ou critério definido, e também o art. 1.008, pois tende a excluir a autora da participação nos lucros.” (cf. Acórdão TJSP - Apelação Cível nº 1013364-28.2014.8.26.0100, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, 26/06/2020, Voto Relator nº 38.945 EMP – DIG – V).
[9] A sociedade deve considerar eventuais reflexos fiscais na determinação de um critério ou outro (sobretudo se houver caracterização de remuneração por serviços prestados pelo sócio à sociedade, como “pro-labore” ou salário).
[10] “Em síntese, diante da inexistência de clareza a respeito da repartição de lucros, e diante do fato de que Jairo aceitou essa situação nebulosa enquanto lhe era conveniente, não pode, agora, adotar postura contraditória e exigir a condenação dos réus ao pagamento de lucros proporcionais desde seu ingresso na sociedade, pois referida conduta viola a boa-fé objetiva das relações negociais (art. 422 e art. 113, do CC).” (Acórdão TJSP 2018.0000845831, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, 22/10/2018, Apelação nº 1047268-05.2015.8.26.0100).