Ingrid Zanella
Sócia do Queiroz Cavalcanti Advocacia, doutora e professora de Direito Marítimo da Universidade Federal de Pernambuco e árbitra do Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima (CBAM).
O ano de 2022 começa com grandes mudanças nos setores marítimos e portuários, com a recente publicação da Lei 14.301/22, que institui o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem (BR do Mar).
O BR do Mar tem, entre seus objetivos, a ampliação da oferta e a melhoria da qualidade do transporte aquaviário, bem como aumento da competitividade das empresas brasileiras de navegação. Desta forma, haverá o incremento da cabotagem – navegação marítima realizada entre portos ou pontos localizados no território nacional.
Tema sensível, pois, mesmo considerando que o transporte realizado por cabotagem já vem crescendo nos últimos anos, ainda que o Brasil seja um país maritimamente privilegiado, com quase 8.000 quilômetros de costa, a movimentação de carga nacional por esse modo de transporte aquaviário representa apenas 11% de participação na matriz logística do país, segundo os dados estatísticos da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).
Desta forma, o BR do Mar vem como grande promessa. Além de ampliar a navegação de cabotagem no Brasil, visa a fornecer segurança jurídica, com padronização de normas e segurança regulatória.
Tal objetivo é perceptível tanto na diminuição na barreira de entrada de novos players no segmento, com a figura da empresa brasileira de investimento na navegação, até então inexistente, como com a ampliação da possiblidade de autorização de empresas brasileiras de navegação.
Como se percebe, entre as diversas inovações há a possibilidade de as embarcações estrangeiras participarem da navegação de cabotagem no Brasil, através de empresas brasileiras de navegação.
Essa participação, em regra, ocorrerá através de contratos de afretamento, em que o proprietário (fretador) disponibiliza seu navio, ou parte dele, para transportar mercadorias, através da navegação marítima, recebendo, pela outra parte, retribuição denominada frete.
Nesta senda, por exemplo, o BR do Mar possibilita às empresas brasileiras de navegação habilitadas no programa que afretem por determinado tempo embarcações de suas subsidiárias integrais no exterior ou de subsidiária integral estrangeira de outra empresa brasileira de navegação para operar a navegação de cabotagem, a fim de aumentar a disponibilidade de frota no Brasil e tornar os custos operacionais mais próximos à realidade internacional, entre outras hipóteses que ampliam as possibilidades de afretamento por tempo.
Da mesma forma, haverá a ampliação da possibilidade de afretamento a casco nu de embarcação estrangeira, por empresas brasileiras de navegação, sendo desnecessário possuir frota própria ou ter contratado a construção de embarcações.
Como forma de ratificar o estímulo ao ingresso de embarcações estrangeiras, ainda é possível destacar que as afretadas terão direito a facilitação fiscal para ingresso, com redução dos custos do mercado. Assim, as embarcações afretadas autorizadas a operar no transporte por cabotagem serão automaticamente submetidas ao regime de admissão temporária, sem registro de declaração de importação.
Outro ponto importante é a definição sobre a legislação trabalhista que incidirá sobre o trabalhador marítimo, considerando a existência de casos controversos judicialmente sobre qual legislação deveria incidir sobre brasileiros a bordo de embarcações estrangeiras.
Internacionalmente, predomina o princípio de aplicação da lei do pavilhão, da bandeira, sobre a tripulação de determinado navio. Assim, indica-se a Convenção de Direito Internacional Privado (Código de Bustamante) e a Convenção Internacional sobre o Trabalho marítimo, 2006 (Decreto Legislativo nº 65 de 17 de dezembro de 2019).
De acordo com o BR do Mar, pautados nas convenções citadas, a controvérsia buscou ser esclarecida. Aos contratos de trabalho dos tripulantes que operem em embarcação estrangeira afretada serão aplicáveis as regras estabelecidas por organismos internacionais devidamente reconhecidos, referentes à proteção das condições de trabalho, à segurança e ao meio ambiente a bordo de embarcações, e a Constituição Federal. O disposto em instrumento de acordo ou convenção coletiva de trabalho precederá outras normas de regência sobre as relações de trabalho a bordo.
Para que haja a segurança nas relações trabalhistas, sem dúvida, o caminho mais acertado para as empresas de navegação será firmar acordo entre empregados (de modo individual ou coletivo) e tal acordo ser devidamente traduzido em língua nacional. É sabido que, para que haja a prevalência do convencional sobre o estritamente legal, conforme princípio da autonomia da vontade, devem ser respeitadas às normas constitucionais mínimas, como já estabelece o BR do Mar.
De acordo com o novo programa, os tripulantes embarcados em navios habilitados serão considerados, para efeitos da Lei de Migração, em viagem de longo curso – realizada entre portos brasileiros e estrangeiros, não se exigindo dos marítimos o visto temporário, bastando a apresentação da carteira internacional de marítimo.
Um importante ponto que foi vetado, mas era muito esperado pela comunidade marítima, foi a ausência da renovação do prazo de adesão ao Regime Tributário para Incentivo à Modernização e à Ampliação da Estrutura Portuária.
Tal benefício fiscal é o que permite, na aquisição no mercado interno e na importação, a compra de máquinas, equipamentos, peças de reposição e outros bens com a desoneração tributária, consistente na suspensão do pagamento dos seguintes tributos, como imposto de importação, IPI, contribuições para o PIS/Pasep, Cofins, PIS/Pasep-Importação e Cofins-Importação.
No que tange à segurança jurídica, as embarcações afretadas ficam obrigadas a ter as operações de cabotagem amparadas em cobertura de seguro e resseguro de cascos, máquinas e responsabilidade civil por meio da qual o segurador ficará obrigado a indenizar as perdas e os danos previstos no contrato de seguro. Restou assegurada às empresas brasileiras de navegação a contratação, no mercado internacional, da cobertura de seguro e resseguro de cascos, máquinas e responsabilidade civil para suas embarcações próprias ou afretadas.
Sem dúvida, o BR do Mar abrirá o mercado da navegação de cabotagem, bem como trará facilidades tributárias, fomentando o desenvolvimento da navegação aquaviária, até mesmo considerando que o projeto se propõe a ampliar a segurança jurídica da navegação aquaviária. Acredita-se que a abertura da navegação de cabotagem para embarcações estrangeiras apresenta-se convergente com a Constituição e com a Lei 13.874/2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.
Não há como se esquivar de mencionar a preocupação com o aumento da ocorrência de acidente marítimos com consequências ambientais, que com a abertura do mercado a embarcações estrangeiras acendem um alerta.
É notória a necessidade de proteção de uma indústria em crescimento, pautado no desenvolvimento econômico e sustentável do país, que deve vir acompanhado da proteção ambiental, da segurança trabalhista e da navegação.
Espera-se que o BR do Mar seja acompanhado por uma visão global da segurança marítima em nosso país, retomando a discussão e fomentando a assinatura de tratados e convenções internacionais que possibilitem uma maior segurança aquaviária.