Alessandra Machado
Sócia da área Tributária de Trench Rossi Watanabe.
A Receita Federal emitiu no final do ano passado e no início de 2021 duas soluções de consulta que renovam as esperanças de modernização do comércio exterior no Brasil.
A primeira delas (SC Cosit nº 152) abordou a dispensa de fatura comercial nos casos em que a importação dos bens não esteja atrelada a uma compra e venda internacional. Uma leitura rápida poderia levar ao entendimento de que a Receita não estaria indo além da simples confirmação de que, ausente a transferência de titularidade dos bens, não haveria que se falar em emissão de fatura comercial pelo exportador.
Contudo, a consulta aborda uma hipótese um tanto quanto peculiar, que é a importação de mercadorias, no Brasil, por pessoa jurídica domiciliada no exterior. No caso, a consulente indica que foi contratada por empresa estrangeira para realizar a importação e distribuição de gift cards no Brasil.
A importação será realizada entre a empresa brasileira e a empresa estrangeira emissora dos cartões. Localmente, a importadora realizará a distribuição dos gift cards às empresas integradoras, as quais são obrigadas, perante a emissora estrangeira, a repassá-los aos estabelecimentos varejistas.
Nesse contexto, a consulente buscava a confirmação de que não haveria necessidade de apresentação de fatura comercial, uma vez que os gift cards não seriam considerados mercadorias, mas mero meio físico de disponibilização dos créditos financeiros e que não haveria importação indireta (por conta e ordem ou encomenda), uma vez que a empresa importadora não possui vínculo contratual ou financeiro com as empresas integradoras.
A resposta da Receita Federal partiu da premissa de que não haveria transferência de propriedade dos bens, uma vez que a importadora não tem direito a uso, fruição ou disposição dos gift cards. Pelo contrário: a importadora foi contratada pela empresa estrangeira apenas para prestar serviços de despacho aduaneiro e os demais necessários à distribuição dos gift cards no Brasil.
Nesse sentido, a Receita entendeu que a importadora não estaria obrigada a apresentar a fatura comercial uma vez que não se trata de venda internacional.
Interessante notar que o entendimento da Receita Federal acerca da descaracterização de venda internacional não se pautou na natureza dos gift cards como mercadoria ou meio físico, mas sim nos direitos do importador sobre os bens importados.
Isso significa que, mesmo em casos em que não haja dúvidas sobre a caracterização do bem importado como mercadoria, a empresa estrangeira interessada na distribuição de produtos no mercado local poderia fazê-lo mesmo sem transferir a titularidade dos bens a um terceiro no Brasil.
Isto é, a empresa estrangeira poderia atuar como importadora, desde que devidamente representada por procurador brasileiro. Contudo, há de se ter em mente que os impactos dessa estrutura vão muito além do espectro aduaneiro, uma vez que o representante legal do importador teria mera posse dos bens importados.
Mas não foi apenas essa a novidade da SC Cosit nº 152. Ela também trouxe conforto àqueles que convivem com a insegurança jurídica atrelada à configuração das importações indiretas.
Isso porque, ao ser questionada quanto à modalidade da importação dos gift cards, a Receita Federal entendeu que, por não haver transferência de titularidade, não haveria que se falar em caracterização de quaisquer das partes como encomendante ou adquirente dos produtos importados.
Essa interpretação é bastante relevante uma vez que parece respaldar o importador que, embora não aja por encomenda ou por conta e ordem de terceiros, tampouco se qualifica como destinatário final dos bens importados.
Como se sabe, a legislação brasileira prevê três modalidades de importação: a direta, em que o importador é o mesmo que possui interesse na operação; a por encomenda, que ocorre quando o importador adquire mercadoria estrangeira para revenda a encomendante predeterminado; e a por conta e ordem, que consiste na prestação de serviços de despacho aduaneiro realizado pelo importador, por conta e ordem do adquirente local.
Não raro, as importações não necessariamente se enquadram em uma ou outra hipótese, como ocorre no caso da Consulta 152. Nesses casos, o receio é de que a importação feita de forma totalmente legítima seja considerada fraudulenta em razão da suposta ocultação do real adquirente das mercadorias, hipótese que se sujeita à pena de perdimento – ou multa equivalente ao valor aduaneiro das mercadorias, casos estas já tenham sido revendidas.
Assim, a confirmação da Receita Federal de que a importação dos gift cards não se enquadra como importação indireta suporta o posicionamento de que os terceiros envolvidos na cadeia logística de produtos importados não necessariamente se qualificam como adquirentes ou encomendantes. Isto é, mesmo que o importador não seja o destinatário final das mercadorias, não há que se falar em importação indireta quando não verificados os elementos intrínsecos a tal modalidade.
A segunda manifestação da Receita Federal que veio confortar os importadores ocorreu por meio da SC Cosit nº 165, que confirma a possibilidade da fatura comercial ser emitida e assinada eletronicamente por representante legal do exportador residente no Brasil, desde que observada a legislação relativa à certificação digital.
Que 2021 continue trazendo boas notícias!
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça: