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STJ

O significado do Direito ao Esquecimento

Termo não parece ser uma boa escolha de palavras

Mariana Cunha e Melo
22/11/2016|13:35
Atualizado em 22/11/2016 às 13:58

I. Introdução

Muito se tem falado sobre o direito ao esquecimento nos últimos tempos. A discussão tem merecido alguma atenção da comunidade jurídica brasileira desde o julgamento dos casos Aida Curi e da Chacina da Candelária, em 2013. Mais recentemente, o assunto assumiu ainda maior relevância com o julgamento do caso Agencia Española de Protección de Datos contra a Google Espanha e a evolução da matéria nos tribunais brasileiros. Também o Congresso Nacional tem demonstrado preocupação crescente com o tema. Para ilustrar esse fenômeno, confira-se o gráfico abaixo, que mostra que o interesse dos brasileiros pela temática do direito ao esquecimento tem aumentado ao longo dos anos, com alguns picos de interesse, cada vez mais frequentes.

Pesquisas por “direito ao esquecimento” pelo buscador da Google (Brasil, 2008-2016)

googleesquecimento2

(Pesquisa realizada pelo Google Trends e disponível neste link)

Ano Tópicos dentre os resultados de busca mais clicados
 pico: jun.2013
 PICO: OUT.2013
  • Pouco depois da publicação dos acórdãos nos casos do STJ.
  • Discussões sobre o instituto aplicável à imprensa tradicional. Ex.1; Ex.2; Ex.3.
 PICO: JUN.2014
 PICO: OUT.2014

(maior pico)

 pico: 0ut.2015
 PICO: mai.2016
 PICO: AGO.2016

Apesar de o direito ao esquecimento estar inegavelmente na pauta do dia, ainda não estão claros o sentido nem o alcance do conceito. A própria tabela exposta acima 

ilustra essa indeterminação. Inicialmente, o tema aparecia relacionada a hipóteses como o famoso caso Lebach[1] – considerado um dos julgamentos que marcaram a doutrina dos direitos da personalidade como a conhecemos hoje. Na oportunidade, o Tribunal Constitucional Alemão analisou se pessoa condenada por famoso caso de homicídio na Alemanha teria o direito de proibir que programa de televisão retratasse o crime com menção aos nomes dos envolvidos. Discussão da mesma natureza foi enfrentada pelo Superior Tribunal de Justiça nos casos Aida Curi e da Chacina da Candelária, relatados pelo Ministro Luis Felipe Salomão. No gráfico acima, o pioneirismo do STJ na matéria é ilustrado pela contemporaneidade do julgamento dos dois paradigmas e o primeiro grande pico de interesse no assunto.

A análise do caso alemão e dos dois precedentes brasileiros revelam que o primeiro conceito de direito ao esquecimento – podemos chamá-lo material – guarda quatro características fundamentais: (i) pressupõe o decurso de um período de tempo; (ii) veicula a pretensão de transpor informações da esfera pública de volta para a esfera privada; (iii) frequentemente vem aliado a um argumento de ausência de interesse público na informação; e (iv) serve a interesses relacionados à privacidade sob duas concepções clássicas: (a) o direito de ser deixado em paz (the right to be let alone) e (b) o direito de controle sobre o fluxo de informações sobre si. Já em sua primeira concepção, portanto, esse é um instituto tipicamente europeu, com forte carga no direito à privacidade como vertente da dignidade humana.

Nunca é demais lembrar, o caso Lebach veio da mesma tradição jurídica que sustentou por anos intenso debate sobre a constitucionalidade da prática de guardas de presídios entrarem nas celas dos presos sem antes bater na porta[2]. Segundo se argumentou à época, entrar sem bater seria uma ofensa ao espaço privado do preso e, portanto, à sua dignidade[3] – o que talvez seja exagerado mesmo para os padrões brasileiros de proteção à privacidade. Sem entrar na controvérsia específica, o que se extrai disso é apenas uma advertência: ainda que o Brasil siga uma tradição muito próxima à europeia em matéria de privacidade, qualquer importação de institutos jurídicos estrangeiros deve ser feita com o devido temperamento.

Mais recentemente, o direito ao esquecimento passou a ser relacionado a outra matéria: o suposto direito à remoção de resultados de busca na internet. Nesse segundo sentido – podemos chama-lo procedimental –, o direito de ser esquecido é também chamado de direito de ser desindexado, em alusão à remoção dos links impugnados do index de possíveis resultados de busca. O conceito procedimental do direito ao esquecimento, como se sabe, não implica a remoção do conteúdo da internet, mas dificulta, de alguma forma, a localização do material supostamente ilícito. Assim, opera não na existência do material em si, mas nos procedimentos disponíveis para se alcançar o conteúdo impugnado. Esse é o tema do famoso caso Google Espanha v. Agência Espanhola de Proteção de Dados, julgado pela Corte de Justiça da União Europeia[4]. No gráfico acima, é interessante ver que o interesse dos internautas brasileiros no direito ao esquecimento alcança picos recordes nos meses seguintes à decisão.

São essas, portanto, as duas concepções básicas do direito ao esquecimento. Estabelecidas as primeiras premissas conceituais, pode-se passar à discussão normativa sobre a validade do suposto direito ao esquecimento no sistema jurídico brasileiro. A discussão sobre o direito ao esquecimento no sentido clássico já envolve muitos e convincentes argumentos contrários à sua incorporação ao direito brasileiro[5]. São argumentos relacionados ao interesse público na veiculação de algumas notícias[6], ao direito à memória[7], o direito à informação[8], etc.. E a tese do direito à remoção de resultados de busca na internet acrescenta um arsenal de novos argumentos que explicitam com ainda maior ênfase a inconstitucionalidade desse instituto. As decisões judiciais sobre o tema frequentemente enfatizam o fato de que os buscadores apenas informam o que existe na internet e que a exclusão desse índice geral não seria válida[9].

Essa distinção já é observável na experiência brasileira, de forma mais ou menos explícita. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, admitiu a existência de um direito ao esquecimento nos casos relatados pelo Ministro Luis Felipe Salomão, mas desde 2012 consolidou o entendimento pela invalidade de ordens de remoção de resultados de busca[10]. Na semana passada, a Ministra Nancy Andrighi foi relatora de histórico precedente que discerniu de forma mais clara a distinção entre a linha de precedentes sobre direito ao esquecimento no sentido material e no sentido formal. Na oportunidade, a Terceira Turma julgou unanimemente o REsp nº 1.593.873, em que a Ministra Relatora reforçou a tese de que ordens de remoção de resultados de busca são inválidas – na linha da jurisprudência histórica de 2012 – mesmo em demandas fundadas no direito ao esquecimento[11].

Os próximos tópicos se propõem a desenvolver dois argumentos pouco explorados no debate especializado sobre o tema. O primeiro, mais geral, defende que o direito ao esquecimento é a prerrogativa de proibir a divulgação de fatos verdadeiros e públicos. O segundo argumento, específico para os pedidos de desindexação, é que essa manifestação do direito de ser esquecido sempre envolve um agravante adicional, que é a ofensa ao devido processo legal. Em ambos os casos, importantes princípios constitucionais são comprometidos, mesmo em tese. Confira-se.

II. Argumento material: direito ao esquecimento em geral como a prerrogativa de proibir a divulgação de fatos verdadeiros e públicos

Para ter autonomia conceitual, o instituto do direito ao esquecimento deve ter características distintivas dos casos já conhecidos de ofensa à honra e à intimidade. Ou seja: o pressuposto lógico da sua discussão específica é que haja parâmetros diferentes daqueles já típicos na legislação e na jurisprudência. Por exemplo, quando for o caso de informações objetivamente falsas e potencialmente ofensivas, o instituto da violação à honra parece ser capaz de solucionar qualquer controvérsia. Por outro lado, quando se estiver diante de informações verdadeiras, mas obtidas por meio ilícito, será o caso da violação à privacidade e à intimidade, tuteladas pelos tipos penais da invasão de domicílio e da invasão de dispositivo eletrônico (Lei Carolina Dieckmann).

Excluindo essas duas situações, que são reguladas por institutos já tradicionais, pode-se enunciar o direito ao esquecimento da seguinte forma: trata-se da prerrogativa de impedir a divulgação de fatos verdadeiros e públicos, que deixariam de ser protegidos contra a censura judicial em razão de seu caráter ofensivo, constrangedor ou até mesmo pela vontade caprichosa da pessoa envolvida.

A proibição da divulgação de fatos verdadeiros e públicos, contudo, não encontra qualquer amparo na Constituição. Primeiramente, a publicação de fatos verídicos está na essência da liberdade de expressão, recebendo proteção constitucional qualificada pelo direito de informação da sociedade em geral. Além disso, também a divulgação de informações que estavam, por qualquer razão, disponíveis para qualquer um que tivesse interesse em encontrá-las está no cerne das liberdades comunicativas. Não se deve impedir que as pessoas falem ou escrevam sobre fatos que todos conhecem ou teriam condições de conhecer. É a ideia de que, uma vez em “domínio público” – ou seja: que já estava publicamente disponível – já não é constitucionalmente legítimo obstruir ou punir sua disseminação (sobre o ponto, v. Suprema Corte dos Estados Unidos em Smith v. Daily Mail Publishing, 443 U.S. 97 (1979)).

Os critérios da veracidade e da obtenção lícita de informações já foram aplicados diversas vezes pelo Supremo Tribunal Federal (v., e.g.: STF, Rcl-MC 18638, Rel. Min. Luis Roberto Barroso; STF, Rcl-MC 18836, Rel. Min. Celso de Mello; STF, Rcl-MC 18746, Rel. Min. Gilmar Mendes). A proteção especial à divulgação de informações verídicas em decorrência do direito à informação foi objeto de destaque especial no voto da Ministra Relatora da ADIn nº 4815/DF, que julgou a matérias das biografias não-autorizadas (v. STF, ADIn 4815, Rel. Min. Carmen Lúcia). A legalidade da publicação de informações protegidas, em tese, por sigilo, mas de fato disponíveis ao público já foi debatida mais de uma vez em casos de publicação de dados sigilosos, quando jornalistas têm acesso aos autos que tramitam em segredo de justiça por erro do cartório (v., e.g.: TRF3, Proc. 0014097-92.2014.4.03.0000, Rel. Des. Cotrim Guimarães).

E aqui vale um registro. Não se nega a importância de que as pessoas tenham controle sobre o fluxo de informação sobre elas. O que se defende é que, uma vez que essa informação é legitimamente disponibilizada para o mundo, impedir que as pessoas falem, escrevam ou divulguem essas informações é uma interferência excessiva na liberdade de expressão. A liberdade é a regra (CF, art. 5o, II) – e é preciso que se mostre razões suficientemente relevantes para afastá-la. Essas hipóteses foram adequadamente previstas na Constituição e na legislação específica, como no caso do discurso inverídico e da obtenção ilícita de informações privadas.

III. Argumento procedimental nos casos de desindexação: ofensa ao devido processo legal

O argumento procedimental é que o direito à desindexação ofende o devido processo legal. A Constituição dispõe no artigo 5º, LIV que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. O conteúdo básico do princípio pressupõe a oitiva prévia do titular do direito ou liberdade que possa sofrer alguma espécie de restrição judicial. Mas esse interesse sofreria grave ofensa se as pessoas em geral tivessem o direito de remover resultados de busca por meio de processo judicial contra os provedores de pesquisa na internet, sem a oitiva dos responsáveis pelo conteúdo. Afinal, esses últimos teriam suas liberdades de expressão ou de imprensa substancialmente restringidas sem que tivessem sequer a oportunidade de serem ouvidos antes da efetivação da constrição judicial. A remoção de resultados de busca restringe a publicidade da informação. A limitação, por não ser acompanhada de oitiva do titular da liberdade em questão, fere de morte o devido processo legal.

Ainda nesse ponto de vista procedimental, vale um último registro. Quando o postulante ao esquecimento aciona o buscador em vez de o responsável pelo conteúdo, altera-se o foco da discussão judicial. Ou seja: o cerne do debate se transfere da relação autor-ofendido para a relação buscador-ofendido. Disso decorrem duas consequências inconstitucionais. Em primeiro lugar, o postulante diminui substancialmente seu ônus argumentativo. Ao invés de ficar claro que se trata de um conflito de direitos fundamentais de usuários da internet (privacidade vs. liberdade de expressão ou de imprensa), a demanda apresenta-se aos olhos dos magistrados como uma controvérsia consumerista entre empresa de tecnologia e usuário hipossuficiente. Ou seja: a lide assume a aparência de um conflito entre interesses comerciais do intermediário réu e direitos fundamentais do autor. Enquanto isso, o relevante conflito de direitos fundamentais entre produtores de conteúdo e postulantes ao direito ao esquecimento é deslocado para segundo plano. E, assim, o ônus argumentativo do deferimento da ordem restritiva de direitos é artificialmente mitigado. Tudo em razão da forma que o conflito de interesses é apresentado nos autos.

Em segundo lugar, não seria de se imaginar que o intermediário dispusesse de condições materiais para deduzir todas as defesas possíveis do material impugnado. Exemplo disso seriam circunstâncias como a veracidade do fato, a relevância das informações, a licitude da forma de obtenção da informação, dentre outras que apenas o autor do conteúdo poderia deduzir plenamente nos autos. Afinal, vale lembrar, o buscador não ostenta qualquer relação com o conteúdo em si e o responsável pelo conteúdo não tem sequer conhecimento da tentativa de desindexação do material.

IV. Conclusão

Apenas pelo que se viu aqui brevemente, em qualquer acepção do conceito, o próprio termo “direito ao esquecimento” não parece ser uma boa escolha de palavras. “Direito” transmite uma perspectiva equivocadamente positiva ao instituto, de trunfo contra arbitrariedades. Para colocar esse conceito em uma perspectiva constitucionalmente adequada, ao invés de direito ao esquecimento, melhor seria dizer prerrogativa de omissão ou de silêncio. Afinal, trata-se de impor um dever de omitir a verdade, de silenciar e silenciar-se – e, no caso dos pedidos de desindexação, sem o devido processo legal.

Sem nenhuma pretensão de exaurimento, foram propostas algumas reflexões sobre o sentido e as consequências de eventual tutela a esse suposto direito ao esquecimento. Espera-se, com isso, chamar atenção para a complexidade dos interesses envolvidos nesse tipo de demanda. As liberdades de expressão, de informação e de imprensa são colocadas em xeque por qualquer das suas versões. O direito de privacidade arma o cidadão com uma série de prerrogativas importantes, mas não permite que o indivíduo adquira controle sobre os fatos públicos.

É importante destacar mais uma vez: as pretensões fundadas no suposto direito ao esquecimento não impugnam fatos inverídicos nem a publicação de informações obtidas por meios ilícitos. Trata-se de restrição muito mais grave na esfera de liberdade das pessoas, coibindo manifestações que seriam legítimas não fosse o desconforto daqueles que são retratados pelo conteúdo impugnado. São fatos verdadeiros e públicos, extraídos do debate público por quem pretende reescrever sua biografia usando a força da jurisdição. Mas onde há o poder de impor o silêncio – seja pela via que for – não há liberdade verdadeira. Essa perspectiva não deve ser negligenciada em qualquer debate sobre o tema.

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[1] Sobre o caso Lebach, v.: Ingo Sarlet, Do caso Lebach ao caso Google vs. Agencia Espanhola de Proteção de Dados, disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-05/direitos-fundamentais-lebach-google-vs-agencia-espanhola-protecao-dados-mario-gonzalez>.
[2] James Q. Whitman, The Two Western Cultures of Privacy: Dignity versus Liberty, The Yale Law Journal 113, No. 6 (Apr., 2004), p. 1165, disponível em: http://www.jstor.org/stable/4135723.
[3] O debate foi levado até o Tribunal Constitucional, que concluiu que a Constituição não obriga os guardas a baterem na porta antes de entrar. V.: James Q. Whitman, The Two Western Cultures of Privacy: Dignity versus Liberty, The Yale Law Journal 113, No. 6 (Apr., 2004), p. 1165, disponível em: http://www.jstor.org/stable/4135723.
[4] Para um relatório conciso da decisão, confira-se: Corte de Justiça da União Europeia, Press Release nº 70/14, disponível em: http://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2014-05/cp140070en.pdf.
[5] V., e.g., Daniel Sarmento, Parecer no ARE 833248, disponível em <http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/2/art20150213-09.pdf>. Procuradoria Geral da República, Parecer no ARE 833248, disponível em <http://s.conjur.com.br/dl/parecer-pgr-direito-esquecimento.pdf>.
[6] V.: STJ, DJe 10 set. 2013, REsp 1335153/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão.
[7] Eduardo Bertoni, The Right to Be Forgotten: An Insult to Latin American History, disponível em <http://www.huffingtonpost.com/eduardo-bertoni/the-right-to-be-forgotten_b_5870664.html>.
[8] V.: STJ, DJe 10 set. 2013, REsp 1335153/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão.
[9] STJ, Segunda Seção, DJe 04 jun. 2014, Rcl 5.072/AC, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. p/ Acórdão Min. Nancy Andrighi.
[10] STJ, Terceira Turma, DJe 29 jun. 2012, REsp 1316921/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi.
[11] V.: Migalhas, Pedido de direito ao esquecimento não pode ser direcionado ao Google, disponível em: <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI248798,51045-Pedido+de+direito+ao+esquecimento+nao+pode+ser+direcionado+ao+Google>.logo-jota