Essa é a minha coluna inaugural. De antemão, agradeço à equipe pelo espaço, espero que eu consiga contribuir, de algum modo, na feitura do JOTA de Justiça. E aos leitores peço que verifiquem as referências, assim compreenderão melhor o que quero expor, pois farei alusão a outros textos de minha autoria ou de outros autores que complementam o raciocínio que desenvolvo.
Na famosa canção “Que país é esse?”, lançada em 1987, Renato Russo colocou o dedo na ferida no seguinte trecho: “Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da Nação!” e, um ano após, tínhamos a CF de 88 saída do forno. Dificilmente você encontrará alguém que não queira viver no mundo melhor, até mesmo os radicais do movimento inconstitucional Black Bloc, como expliquei no texto sobre a Constituição Geni [1], são movidos por um sentimento de “destruir o velho e construir o novo”, mesmo que não saibam ainda o que é esse “novo”. Em outras palavras, podem também querer do seu jeito torto uma sociedade melhor, mas qual a é a condição disso ocorrer no Estado Democrático de Direito sem o respeito à Constituição? A mim me parece muito remota ou írrita, nula. Ou mesmo aqueles, mais “comedidos”, que buscam “reformas” na Constituição por vias inconstitucionais – golpismo institucional - como é o “plebiscito constituinte” [2].
Essa coluna trata acerca do problema da cisão entre teoria e prática que permanece impermeável à filtragem constitucional. Na verdade, o pano de fundo que se coloca é a dificuldade de consolidação do pensamento constitucional na sociedade, sobretudo na própria comunidade jurídica. Além de ter apontado a analogia que existe entre nossa Constituição e a personagem buarquiana Geni (Abboud), tracejei umas linhas sobre algumas implicações disso sobre a máxima “bandido bom é bandido morto” que merecem uma atenção [3]. Ou mesmo quando abordei o princípio da igualdade para os brasileiros mais iguais que outros no país dos honoráveis [4]. Também quando expliquei a síndrome de Quico que grassa em nosso Direito [5].
Em continuidade a essas reflexões, dou início a um assunto que me é muito caro como podem notar: a efetivação do Texto Magno. O estudante de Direito tem o péssimo defeito de separar “teoria-prática” como se estas não se interpenetrassem e estivessem umbilicalmente relacionadas. Falo do acadêmico, mas poderia falar dos juristas genericamente, porém minha ótica é umbigo-classista. Prossigo, eles dizem assim: “Ah, isso é na teoria...” ou “Ah, na prática não é assim...”, essa dicotomia serve, muitas vezes, para inviabilizar uma filtragem constitucional seja na “prática forense” (cotidianidade do Judiciário), “na Academia” etc. E quando a doutrina fica refém dos Tribunais (vejam os novos livros para concursos, mastigados, triturados e digeridos) acaba ocorrendo um círculo vicioso que se retroalimenta. Mas para recordar Jesus nos Evangelhos, quando estava “sob custódia” do governador Pilatos, disse “Nenhum poder terias contra mim, se de cima não te fosse dado, mas aquele que me entregou a ti maior pecado tem”. (Mt 19, 11).
Repiso: aquele que me entregou a ti maior pecado tem. Mutatis mutandis, não é bem culpa do acadêmico repetir isso, às vezes, por automatismos, para ser “crítico” e concomitantemente “emponderado”. Foi treinado nesse imaginário (poluído). Trata-se, na verdade, do “pecado maior” de juristas graúdos que estão nos elevados postos do Judiciário desse país, senão vejamos: com a maior naturalidade do mundo (nonsense), o ministro Eros Grau repristina de modo similar na Reclamação 4335-5 a citação célebre do ex-ministro Humberto Gomes de Barros que disse que não se importava com o que diziam os doutrinadores, era a doutrina que tinha que se adaptar a ele em razão da sua autoridade de ministro do STJ e de que decidia conforme sua consciência (AgReg em ERESP n° 279.889-AL).
A ideia ventilada por Eros Grau é tão chocante que merece ser descrita ipsis litteris: “Sucede que estamos aqui não para caminhar seguindo os passos da doutrina, mas para produzir direito e reproduzir o ordenamento. Ela nos acompanhará, a doutrina. Prontamente ou com alguma relutância. Mas sempre nos acompanhará, se nos mantivermos fiéis ao compromisso de guardarmos a Constituição. O discurso da doutrina [= discurso sobre o direito] é caudatário do nosso discurso, o discurso do direito. Ele nos seguirá; não o inverso”.
Como se fosse possível separar a “produção do direito” e o “discurso sobre o direito” como Lenio refutou cirurgicamente! Isso dificulta a construção de um Direito mais coerente e coeso, pois tanto a “prática” quanto a “doutrina” (teoria) estão fechados nos seus mundinhos como se um não tocasse o outro, não se iluminassem reciprocamente. E, além da doutrina subserviente aos tribunais, os professores cooperam com essa retroalimentação viciosa.
Já que falei do jurista gaúcho mais pop do país, cito duas perguntas que fiz numa entrevista com ele [6]:
8) Quais os obstáculos para a consolidação do pensamento constitucional na sociedade brasileira?
Há vários modos de identificar estes obstáculos. Poderíamos fazer referência a questões históricas, pelo fato de o Brasil ser uma democracia muito recente. Mas gosto de falar dos predadores externos [argumentos morais, de política e de economia] e internos [mercadologização do ensino, estandardização das decisões, discursos de eficiência no lugar de efetividades qualitativas]. Penso que eles são os responsáveis pela grande dificuldade que têm os juristas/juízes de levar o direito a sério, isto é, de cumprir a Constituição. Mas também isso é assim porque o Brasil fez importações teóricas equivocadas, como demonstro em Verdade e Consenso. Importamos mal a jurisprudência dos valores, a teoria da argumentação alexiana, o ativismo norte-americano, a metodologia savigniana e o neoconstitucionalismo. Este último, aliado com a jurisprudência dos valores e a ponderação alexiana, foram os responsáveis por essa praga contemporânea chamada pamprincipiologismo, essa fábrica de princípios que fragiliza o direito e que ainda vai se transformar em uma bomba de efeito retardado. Uma espécie de subprime do direito. Alguns setores exageraram. Por exemplo, o direito de família. Em nome da afetividade, tudo é possível. O Código Civil diante de um pamprincípio vira pó.
9) Por que ainda muitos juristas insistem na dicotomia teoria e prática no Direito como se elas fossem estanques?
Porque as abordagens teóricas são vistas como "perda de tempo". Porque o Direito não é visualizado como um fenômeno complexo. Resultado: direito facilitado, mastigado, resumidinho, etc. Há uma ideia de que "na prática" vale tudo. E a frase nefanda de que “na prática a teoria é outra”. Horrível isso. Aqui deveria haver um chicoteamento epistêmico. O látego da palavra deve bater forte em que sustenta isso. Esse é o problema; e a solução também (para os que visualizam essa separação) - na prática, a pessoa age como quiser, decide sem critérios jurídicos...
Por fim, não gostaria que minhas palavras fossem como as de Cássia Eller, que ficassem ao vento e fossem apenas palavras, palavras, palavras... Mas há sério risco de que se divida: suas palavras pertencem à teoria. A práxis é outra. Mas não é a CF quem constitui o agir público e privado? Ela é uma mera “folha de papel” para ressuscitar Lassalle? E Hesse não “enterrou” essa tese com a força normativa? A Geni não constitui na prática? Problema dela, diriam os dicotômicos. Eu pergunto: estamos a quantos passos do “paraíso”, dois, três? Ou seria do “inferno”? Já que a tweetização dos textos (quanto menor o texto, mais chances de ser lido) é um fenômeno de massas, faço o escorço do que escrevi até agora: a Constituição não é um arranjo, não serve para enfeitar prateleira, deve ser aplicada justamente porque é condição de validade e, num slogan, não há clivagem que resista à filtragem constitucional!
[1] http://www.jurisconsultos.org/2015-1-12---olhar.html
[2] http://www.conjur.com.br/2014-ago-26/defender-assembleia-constituinte-hoje-golpismo-institucional
[3] http://www.jurisconsultos.org/2015-2-3---olhar.html
[4] http://www.jurisconsultos.org/2015-1-29---olhar.html
[5] http://www.jurisconsultos.org/2014-11-29---olhar.html
[6] http://www.jurisconsultos.org/2015-2-20---coloquios.html