Em 2015, presenciamos a criação de três partidos: o Partido Novo; o Rede Sustentabilidade; e o Partido da Mulher Brasileira, totalizando 35 agremiações nacionais. Neste conjunto, há partidos grandes, medianos e pequenos, sendo estes últimos a maioria, que necessitam de coligações para sobreviver na “selva” eleitoral brasileira ou que adotam esta estratégia somente como um canal para chegar ao poder.
A Constituição Federal de 1988 dispõe textualmente em seu art. 17 que há a livre criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana, observados os seguintes preceitos: (i) caráter nacional; (ii) proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes; (iii) prestação de contas à Justiça Eleitoral; e (iv) funcionamento parlamentar de acordo com a lei. Ou seja, a Carta Maior não “liberou geral” a criação de partidos, mas a condicionou a certos critérios. Trata-se de uma via de mão-dupla.
Complementando o texto constitucional, a Lei de Partidos, n° 9.096/95 regulamentou como seria a sua criação, fixando a obrigação de demonstrar apoiamento de eleitores e outros requisitos, para que seu estatuto possa ser registrado junto ao Tribunal Superior Eleitoral e, assim, dar-lhes o direito de participar do processo eleitoral, receber recursos do Fundo Partidário e ter acesso gratuito ao rádio e à televisão, o que não é pouco. Portanto, o ordenamento constitucional confere às organizações que cumprem os requisitos legais um status de partido. Não é qualquer agremiação no Registro Civil que pode ser considerado juridicamente um, mas somente aquelas que se submetam aos critérios dispostos em lei.
No entanto, pouco ou nada se fala sobre os partidos que, após serem agraciados com este status, não cumprem seus deveres na democracia ou que fraudam diretamente as razões de sua criação, como ocorreu recentemente com o PMB, Partido da Mulher Brasileira, do qual se esperava uma atitude em prol das mulheres e da defesa de questões de gênero, mas que se revela a cada dia mais conservador e mais – na palavra de alguns – “antifeminista”. Pelo menos em um primeiro momento, há indícios de que o partido só leva ‘mulher’ no nome, o que induz o eleitorado em erro e, de certa forma, retira a justificativa da criação da agremiação.[1]
Sempre se fala no fortalecimento dos partidos e no pluripartidarismo. Foi devido a isso que a fidelidade partidária ganhou força e que a cláusula de barreira foi declarada inconstitucional. Porém, na contramão deste discurso, resta um silêncio sobre como o ordenamento jurídico deveria agir diante de casos em que a agremiação não realiza minimamente o seu papel na democracia.
Na teoria dos partidos, eles são tidos como uma entidade estável, que têm como meta principal chegar ao poder e fazer com que a sua agenda política seja aplicada. Trata-se de um objetivo permanente e central a ser alcançado por meio dessas associações que possuem funções próprias na competição eleitoral. Além disso, os partidos têm como tarefa a gestão do poder e a expressão oficialmente democrática do pluralismo político, sendo o canal – muitas vezes exclusivo - de comunicação entre a sociedade e o Estado.[2]
Estas funções de ser um canal da expressão popular, de selecionar líderes e de simplificar a complexidade das demandas sociais não são fáceis. Mas não podem ser esquecidas, uma vez que o status de partido a partir do registro do estatuto no TSE lhes concede direitos, que envolvem recursos públicos escassos. Aparentemente, parece que o panorama atual somente está preparado para dar direitos aos partidos, porém, quando se cobra algo deles, rapidamente os argumentos de liberdade partidária e de pluripartidarismo se levantam, como se fosse até uma heresia questionar o papel que as organizações partidárias estão exercendo na esfera pública de agora.
Em primeiro lugar, devemos superar o nosso trauma da ditadura. Esse momento já passou, e se espera que não volte, pois há instituições para evitar isso. Assumindo que esta ferida já está cicatrizada, chega o momento de discutir esta abertura partidária que temos e que também colabora para o aprofundamento da crise de legitimidade democrática que está a nossa frente.
Em segundo lugar, temos que considerar que a democracia brasileira se embasa nos partidos, e devido a isso precisamos deles fortes e com qualidade. A nossa democracia necessita se robustecer, e se a agremiação não contribui a este processo favoravelmente, deverá ceder o seu lugar a outra que o fará.
A partir disso, a premissa desse artigo é abrir o debate sobre como controlar a qualidade dos partidos, sem que isso pareça apavorante desde o ponto de vista ideológico. Aqui não se está falando em um controle ideológico partidário, embora se deva admitir que os partidos brasileiros quase não possuem ideologia. Este texto também não se refere à assunção de outros modelos de organização política alternativa ao sistema representativo, como o fez Hannah Arendt, que sugeriu a substituição dos partidos por conselhos, que, segundo o seu ponto de vista, seriam mais adequados para a tomada de decisões, facilitando consensos e diminuindo ao máximo o conflito de demandas.[3] Trata-se de expor esta sangria dos partidos dentro da democracia do Brasil para que, juntos, possamos superar esta fase e seguir adiante, na direção de um fortalecimento do sistema político como um todo.
Um partido de qualidade – para os fins desse debate – seria aquele que apresenta candidaturas, que é ativo no Estado dentro das casas legislativas ou fora delas, que fomenta o debate público de uma agenda política concreta e que se mobiliza em prol de uma causa que paute o seu ideário, ou seja, que possua identidade. Obviamente que isto soa utópico, ainda mais considerando a forma de fazer política à brasileira e o comportamento dos partidos ao longo dos anos. Até porque, passado este filtro, praticamente não resta nenhum no Brasil.
Por outro lado, se a Constituição Federal prevê um status de partido, este deve ser objeto de regulação ou por parte do legislador ou pela Justiça Eleitoral, fixando alguns critérios para fazer valer esta regra, utilizando-se de seu poder regulador. Nesta última hipótese, cabe ressaltar que se trata de uma regulação com base em uma disposição constitucional, estando vedado à Justiça Eleitoral criar critérios que não se adequem com o restante do ordenamento. Caso seja por lei, o modelo seguirá o já existente na Alemanha e na União Europeia. Na União Europeia, uma comissão independente do Parlamento Europeu analisa anualmente a condição de um europartido, que somente terá este status se, dentre outros requisitos,[4] participar das eleições com candidaturas próprias. O mesmo ocorre no caso alemão. Não basta existir, eles devem selecionar líderes. Isso os mantém na condição de partidos.
No Brasil, nem todos os partidos apresentam candidatos nas eleições. Pode ocorrer – tanto nas eleições proporcionais como nas majoritárias - de alguma agremiação não apresentar candidato e participar de alguma coligação, e os motivos para isto são muito variados e um tanto nebulosos. Contudo, mesmo sem candidatos, este partido irá receber recursos do fundo partidário e terá direito ao horário eleitoral gratuito, ainda que em percentual bem reduzido, só por ter o registro do seu estatuto no TSE.
Outro ponto é o da participação no debate público, da formação de uma agenda política concreta, enfim, da condução dos assuntos da sociedade ao Estado. Ocorre que – e isso não é só no Brasil – os partidos ocupam uma posição extremamente mais próxima do Estado do que da sociedade. Sinais disso são a baixa filiação, o sentimento antipartidário, o Estado de Partidos[5] e o próprio desconhecimento sobre a existência de algumas siglas. Várias delas aparecem somente em época de eleições, sem uma pauta clara e com um discurso quase que vazio. Além disso, os próprios nomes dos partidos são muito similares, utilizando um tipo de “palavras-chave”, como “republicano”, “trabalhista”, “progressista”, “cristão”, etc. Em meio de tantas organizações com uma denominação semelhante, será que realmente há um leque de ideologias tão amplo e tão variado que não possa ser possível congregar em uma só sigla?
O fato é que a proximidade atual dos partidos com o Estado brasileiro forma um cenário muito pouco favorável para a democracia. As organizações políticas nasceram para servir aos interesses da sociedade, não do Estado, e não é exatamente o que vemos. O que presenciamos são partidos agigantados e que buscam o poder pelo poder, na clara ideia de Weber, [6] ou pequenas siglas que vivem de maneira muito questionável, destinando ao povo o papel de mero assistente desse ambiente de negócios.
Este cenário pode ser fomentado negativamente pelo surgimento de uma patologia da democracia eleitoral-representativa já comum em alguns países: o populismo. O populismo é um fenômeno que, focando as tensões estruturantes da representação, propõe resolver as dificuldades de representar o povo por meio da sua unidade e homogeneidade, a partir de um modelo imaginário. O discurso populista engloba em sua maioria a um formato maniqueísta, no qual sempre haverá a indicação de um opositor, que pode ser o estrangeiro, a elite, a oligarquia, o inimigo. O populismo radicaliza a democracia de controle, conduzindo a sociedade para a impolítica, a uma contrademocracia absoluta. Com o afã de vigiar e criticar os ocupantes do Estado, o populismo termina estigmatizando de forma compulsiva e permanente as autoridades governantes. Por outro lado, o populismo também afeta a soberania de obstrução, ou seja, mostra-se como uma expressão política de crise que pode ser comparada com os partidos antissistema. Parte da base de um sentimento revolucionário e de rejeição do mundo político.[7]
Parece que a denominada “crise dos partidos” e o seu expressivo questionamento na arena política é uma consequência, um preço a se pagar, pelo protagonismo conferido a eles na democracia. É um ônus que eles devem suportar, por serem destinatários de tarefas tão pesadas na sociedade.
Portanto, o que se propõe como reflexão é um controle da qualidade dos partidos, obviamente amparado pelas regras constitucionais. O art. 1° da Lei 9.096/95 dispõe claramente que um partido destina-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal. Se eles não cumprem minimamente estas funções, não há razão para mantê-los com recursos públicos. Há muitos movimentos populares que desempenhariam melhor esta tarefa e que precisam desse apoio econômico do Estado e não o têm. O que precisamos é resgatar a confiança nos verdadeiros partidos, nos que idealizamos quando falamos de democracia.
Um critério para este controle seria uma cláusula de barreira ou de desempenho,[8] sem sombra de dúvidas. Sua declaração como inconstitucional não fortaleceu o pluripartidarismo, mas sim as vantagens de se fundar um partido sem qualquer expressão política, para somente captar benesses. O pluripartidarismo – e o pluralismo político – não são feitos a partir do maior número de siglas. São concretizados quando, dentro do espectro político, o eleitor possa se identificar com uma opção e confiar o seu voto nela sem equívocos. O direito das minorias será muito melhor preservado quando elas realmente tenham essa voz e que tenham apoio social verdadeiro, através de uma agremiação que efetivamente traduza seus anseios.
Entretanto, não se advoga pela extinção desse partido “inadimplente”, pelo menos não a extinção automática. A posição aqui defendida é tão somente a que a agremiação não se sinta tão confortável a ponto de não “correr atrás” de seus deveres. Este controle é somente do status constitucional de partido, não de ser uma associação como outra qualquer. A organização poderá continuar existindo, mas enquanto não cumprir as suas funções, não merecerá ter a condição jurídico-constitucional de um “partido político”.
Vamos lá debater sobre isso?
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[1] Exemplo é a reportagem feita com a presidente do partido, Suêd Haidar, que afirma que jamais encampará causas tidas como feministas, bem como as polêmicas que envolvem diversos integrantes, como o único senador da legenda, Hélio José, do Distrito Federal, que foi acusado em 2010 por supostamente ter abusado sexualmente da própria sobrinha. O caso acabou arquivado. (Cf. http://www.brasilpost.com.br/2016/02/11/pmb-antifeminista_n_9161068.html).
[2] SARTORI, Giovanni. Parties and Party Politics: A Framework for Analysis. New York: Cambridge University Press, 1976. p. 64; BOBBIO, Norberto; et. al. Op. Cit. p. 564-565.
[3] ARENDT, H. Thoughts on politics and revolution. Crisis of the republic. New York: Harvest Books, 1969. p. 263.
[4] Os outros critérios são: ter personalidade jurídica devidamente legal no Estado-membro que tenham a sua sede; estar representado em pelo menos ¼ dos Estados-membros por meio dos membros do Parlamento Europeu, ou estar representado em pelo menos ¼ nos Parlamentos Nacionais ou Regionais, ou nas Assembleias Regionais, ou mesmo ter obtido em pelo menos ¼ dos Estados-membros ao menos 3% dos votos em cada um deles nas últimas eleições europeias; observar e agregar nas suas atividades e programas os princípios sobre os quais se embasa a União Europeia: liberdade, democracia, respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, como também o Estado de Direito; e ter participado nas eleições europeias ou ter expressado a intenção de participar. (Vid. Regulamento (UE, EURATOM) n° 1141/2014).
[5] Cf. GARCÍA-PELAYO, M. “El Estado de Partidos”. In: Obras Completas II, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, p. 1969-2078, 1991.
[6] WEBER, Max. A Política como Vocação. In: WEBER, Max. Ciência e Política, Duas Vocações. São Paulo: Editora Cultrix, 1996. p. 56.
[7] ROSANVALLON, P. La contrademocracia. La política en la era de la desconfianza. Buenos Aires: Manantial, 2007. p. 257-262.
[8] A cláusula de barreira para acesso ao Fundo Partidário e ao horário gratuito foi amplamente debatida na reforma política, sendo aprovada na Câmara (PEC 182/2007) em dois turnos. Porém ao ser enviada ao Senado (já como PEC 113/2015), o parecer do Senador Raimundo Lira (PMDB-PB), n° 1.166, de 2015-PLEN, considerou que somente o artigo que tratava da janela partidária deveria ser aprovado, deixando o restante como uma proposta autônoma não submetida ao calendário eleitoral. Ao final, esta PEC foi aprovada, tornando-se a EC 91/2016, mais conhecida como a Emenda da janela.