A 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4) anulou uma rescisão por comum acordo entre uma rede de clínicas e uma médica que sofre de Transtorno Afetivo Bipolar. O relator Clóvis Fernando Schuch Santos e os colegas da Turma modificaram a decisão de 1º grau e condenaram a empresa a pagar os salários que seriam devidos desde a despedida até a parte autora iniciar no emprego subsequente, bem como as diferenças de aviso prévio e multa de 40% do FGTS, além de indenização por danos morais no valor de R$ 25 mil.
A médica trabalhou para o plano de saúde de 2011 a 2018, quando começou a ter crises devido ao Transtorno Afetivo Bipolar. Entre outubro e novembro de 2018, foi constatado que ela estava passando por um episódio depressivo bipolar grave. A médica narra que necessitava fazer uso de um “potente esquema farmacológico” e que os efeitos colaterais dos medicamentos causavam sonolências e lapsos de memória. Sustenta que, por conta dos remédios, foi flagrada dormindo em horário de trabalho e a passou a ser perseguida pelo diretor administrativo da prestadora de serviços de saúde.
Em dezembro de 2018, ela foi chamada para conversar com o RH, que a informou sobre a demissão. A médica afirma que lhe deram papéis para assinar, que ela acreditava ser a comunicação da dispensa, mas que eram, na verdade, um acordo nos termos do artigo 484-A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A funcionária alega que “foi induzida a assinar um acordo, de forma a tentar conferir aparente legalidade a uma despedida discriminatória em razão dos transtornos psiquiátricos”.
A médica ainda sustenta que a forma com que a empresa agiu fez com que ela se sentisse usada, enganada e descartada no momento que estava mais fragilizada, o que agravou os sintomas de sua doença. Assim, requereu o reconhecimento de nulidade do acordo rescisório celebrado com a empresa, além da reintegração ao emprego, com o pagamento dos consectários legais e de indenização por danos morais.
Em 1ª instância, o pedido da funcionária não foi acolhido sob a justificativa de que não foi comprovado que a assinatura tenha ocorrido de forma não voluntária pela médica. Segundo o magistrado, também não havia provas de que ela estivesse doente na ocasião da saída do emprego. O juiz ainda argumentou que depressão não é doença grave, que cause estigma ou preconceito, para configurar a despedida como discriminatória. A médica recorreu.
Ao julgar o recurso, o relator entendeu que “a doutrina e jurisprudência colacionadas na decisão originária dizem respeito à depressão pura e simples, e não ao transtorno bipolar”, afirma e continua: “Não é novidade que o transtorno bipolar causa estigma. E tanto é assim que há poucos anos atrás essa mesma doença era denominada ‘psicose maníaco-depressiva’. O nome não foi alterado por causa de descobertas científicas acerca de sua natureza, mas justamente pelo estigma que causava. Ainda hoje os portadores dessa doença são vítimas de preconceito”.
Santos explicou que a doença alterna episódios de depressão com os de mania e que se trata de uma condição muito mais complexa do que a depressão desacompanhada da bipolaridade. Durante o tratamento do Transtorno Afetivo Bipolar, o paciente precisa alternar a medicação para animá-lo em momentos de depressão e para acalmar os momentos de euforia. Um dos problemas que se apresenta ocasionalmente seria o de o paciente não identificar o término de uma fase e início da outra e administrar a medicação errada, ou seja, tomar o estimulante no início da fase de mania ou o calmante quando se apresenta a depressão.
Com relação ao exame demissional, o relator observou que “certamente foram realizados em períodos nos quais a medicação para seu transtorno estava adequada e efetiva; do contrário o resultado não seria esse, o que não quer dizer nem que a parte seja apta para o trabalho constantemente, e nem que sua inaptidão seja completa. São e serão, sempre, fases transitórias”, diz.
O desembargador ressalta que o Transtorno Afetivo Bipolar “mina a confiança que o empregador tem no portador da síndrome, porque por vezes o patrão acredita que não pode contar com o trabalhador em um momento de crise, seja em qual extremo for. Entretanto, o empregado pode, e deve, realizar tarefas compatíveis com o estado em que se encontrar em cada momento. No presente caso, em que a parte autora é médica, ainda que o empregador tenha reservas em permitir que ela atenda pacientes durante suas fases, nada impede que ela faça trabalhos administrativos ou laboratoriais como análise de imagem e diagnósticos, por exemplo”, afirma.
Santos ainda citou o PLS 236/12, que trata da reforma do Código Penal Brasileiro, e que procura estabelecer a psicofobia como crime, ou seja, o preconceito contra as pessoas que têm transtornos e deficiências mentais. “A negligência, a ignorância e a solidão levam a pessoa a um estado muito pior do que aquele no qual o transtorno a coloca”, ressalta e continua: “A psicofobia é motivo de suicídio no país inteiro, por incompreensão de próximos e a falta de um tratamento adequado. O fato se torna ainda mais grave no presente caso, pois a parte autora trabalha em ambiente clínico e a parte demandada é empresa que comercializa planos de saúde”.
“Tendo em vista que o ambiente de trabalho da parte ré é um local de tratamento de saúde, não duvido que a parte autora tenha sido convocada para a reunião em comento justamente por apresentar sintomas da crise que, ao fim a ao cabo, facilitaria a assinatura do termo de rescisão. Logo, não constato apenas o estigma causado pela doença, mas também um embuste segundo o qual a parte autora se sentiria coagida mesmo que as ações dos coatores não fossem extremas”, concluiu o relator.
O processo tramita com o número 0020207-06.2019.5.04.0232.