Opinião e Análise

Rachel Delvecchio

A vedação da análise de argumentos constitucionais pelos tribunais administrativos que apreciam recursos contra lançamentos tributários é velha conhecida dos operadores do Direito dessa área, sendo reproduzida por esses órgãos sem inovação em sua fundamentação.
Em âmbito federal, a restrição já estava presente nas decisões do então Conselho de Contribuintes que, inclusive, ensejaram a aprovação da Súmula 02<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Posteriormente, foi acrescida ao Decreto nº 70.235/1972 (artigo 26-A) pela Lei nº 11.491/2009 que, entre outras medidas, criou o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>O citado dispositivo autoriza o afastamento de ato normativo pautado por sua inconstitucionalidade somente quando (i) essa já houver sido declarada por decisão definitiva proferida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal; e/ou (ii) nos casos em que haja dispensa de contestar ou recorrer pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, súmula ou parecer da Advocacia Geral da União.
No caso, vigora a ideia de que a análise da constitucionalidade de leis é matéria reservada ao Poder Judiciário e que a atribuição dessa competência aos conselhos administrativos tributários resultaria em violação ao princípio da separação de poderes.
Todavia, parece incoerente a disponibilização de um processo administrativo pautado pelos direitos à ampla defesa e ao contraditório (artigo 5º, LV, da Constituição Federal), no qual o julgador apenas possa se debruçar sobre argumentos de ilegalidade, especialmente no contexto de um ordenamento jurídico em que os valores e princípios constitucionais são autoexecutáveis e, portanto, independem de leis para instrumentalizá-los.
A teoria da normatividade constitucional marcou a mudança de paradigma na percepção do texto constitucional ao longo do século XX de modo que a Constituição deixou de representar um compromisso político e o texto constitucional passou a ser dotado de imperatividade.
Soma-se a isso o fenômeno da constitucionalização do Direito que, nas palavras de Luís Roberto Barroso, é associado a “um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, o qual inegavelmente repercute na relação dos Poderes do Estado com os cidadãos. Passa-se, então, a falar da constitucionalização do Direito Administrativo, Civil e Tributário.
<blockquote class="jota-article__eye">Adicionalmente, o modelo intervencionista dos Estados Absolutistas foi superado pelo dos Estados Democráticos de Direito. No entanto, a teoria da Separação dos Poderes parece não ter evoluído no mesmo ritmo.</blockquote>
Bruce Ackerman<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> destaca que nenhum outro campo de pesquisa acadêmica é tão intensamente dominado por um único pensador quanto a teoria da Separação de Poderes é pelo pensamento de Montesquieu. A partir disso, ele defende a nova separação de poderes através do desenvolvimento de um Direito Administrativo que reflita os desafios do Estado Moderno.
Para Cíntia Morgado<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, o princípio da separação de poderes continua sendo fundamental ao Estado Democrático de Direito, mas deve-se atribuí-lo um novo significado considerando que as circunstâncias históricas e teóricas que o rodeiam já não são mais as mesmas.
Então, outorgar aos tribunais administrativos a competência para verificar a adequação entre o lançamento tributário e a Constituição representaria uma violação à competência do Poder Judiciário e à teoria da Separação de Poderes?
Cláudio Pereira Neto e Daniel Sarmento consideram “um erro grave pretender que o Poder Judiciário ou o Supremo Tribunal Federal seja o intérprete exclusivo da Constituição”. Para eles, uma decisão da Suprema Corte é um elemento importante no diálogo sobre a construção de sentido de uma norma constitucional, mas não encerra o debate porque há diversos mecanismos de reação contra ela que podem ser utilizados pelos outros Poderes e pela própria sociedade.
Aliás, Alberto Xavier<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> já defendia que os tribunais administrativos somente assumiriam a última palavra sobre o sentido da Constituição “se (...) tivessem uma ‘competência de rejeição’, isto é, fossem dotados do poder de declarar a inconstitucionalidade das leis com efeitos constitutivos e erga omnes”.
Não se pretende – tampouco seria possível – esvaziar a competência e a função típica do Poder Judiciário para a interpretação do texto constitucional e a tutela dos direitos fundamentais. Superada a atual limitação, as decisões dos tribunais administrativos tributários produziriam efeitos inter partes para revisar determinados lançamentos tributários, o que não nos parece violar a capacidade institucional desses órgãos.
Os dispositivos legais – eventualmente afastados ou interpretados à luz da Constituição Federal no caso concreto – permaneceriam válidos e aplicáveis aos demais contribuintes.
Ademais, não se pode desconsiderar o fato de que a Constituição Federal contém um título dedicado exclusivamente ao Sistema Tributário Nacional e ao Orçamento no qual estão inseridos os princípios gerais do Direito Tributário, as limitações ao poder de tributar, as competências tributárias dos entes federativos.
Nesse cenário, são comuns dúvidas acerca da observância desses dispositivos por lançamentos tributários de modo que o não conhecimento de recurso com fundamento constitucional importa em inequívoca limitação às garantias do devido processo administrativo e da ampla defesa.
Além do mais, os mecanismos de interação no Estado Democrático de Direito são via de mão dupla. Permitir que os conselhos administrativos participem da construção do sentido das normas constitucionais em matéria tributária pressupõe, inclusive, a possibilidade de superação de suas decisões pelos outros Poderes.
A Constituição Federal deve ser abraçada e aplicada por todos, sobretudo pela Administração Pública. Logo, os tribunais administrativos, enquanto órgãos dotados do poder-dever de revisar atos administrativos à luz do ordenamento jurídico, deveriam ser competentes para examinar violações constitucionais, especialmente como forma de garantir os direitos à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo administrativo dos contribuintes.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Acórdãos precedentes são claros ao tratar da "competência exclusiva do Poder Judiciário” para a análise da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei (acórdãos nº 103-21.568, 108-06.035, 203-09.298 e 201-77.691).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> BARROSO, Luís Roberto, Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil), p. 16.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> ACKERMAN, Bruce, Good-bye, Montesquieu, Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 265, p. 13-23, jan-abril-2014.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> MORGADO, CÍNTIA, A Nova Face da Separação de Poderes – Capacidades Institucionais, Vinculação dos Poderes e Constitucionalismo Cooperativo, R. Dir. Proc. Geral, Rio de Janeiro, 2011.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> XAVIER, Alberto, Princípios do Processo Administrativo e Judicial Tributário, Editora Forense, 2005, p. 84.

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Tribunais administrativos deveriam ser competentes para examinar violações constitucionais

Silêncio dos tribunais administrativos nos diálogos constitucionais em matéria tributária

Tribunais administrativos deveriam ser competentes para examinar violações constitucionais