Opinião e Análise

Daniela Olímpio de Oliveira

O Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) e a Oxfam-Brasil realizaram um Fórum em Brasília, nos dias 12 e 13 de setembro, com o tema Tributação e Desigualdades no Sul Global. Na ocasião, diversos pesquisadores e organizações fomos convidados para dialogar. Além das entidades organizadoras (Oxfam-Brasil e INESC), marcaram presença os movimentos Tributação e Gênero da FGV, Tributação Justa, Reparação Histórica, Instituto Justiça Fiscal, Plataforma Justa, Grupo de Estudos Fiscais -GESF-UFG, Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades – MADE-FEA-USP, Instituto Equit, dentre outros.
A escuta quanto ao estado da arte da desigualdade e da reforma se deu de forma ativa, de modo a instigar inquietações e réplicas em todos os presentes. A organização do evento tinha mesmo esse objetivo – o de debater a importância de políticas tributárias justas, inclusivas, antirracistas, feministas e sustentáveis. E o estado da arte da reforma tributária fora atravessado pelas manifestações sobre urgência na reparação histórica, inclusão, representatividade, proteção social e ambiental. Dois sentimentos, a princípio contraditórios, dominaram: i) o incômodo latente e crescente quanto ao estado da arte, dito amadurecido e pronto para ser implementado junto à sociedade; ii) o conforto de encontrar afins em perspectivas de se discutir tributação, não mais pela sua finalidade arrecadatória, mas a partir e frente à desigualdade social, racial, de gênero e territórios, que intersecciona a política tributária.
A raça foi pautada em todo debate. Assim como já vínhamos entendendo, raça cada vez mais é entendida como atravessamento que forja a estrutura fiscal, não só social, sobrepondo as interfaces – o social e o fiscal e o econômico e o cultural. A racialização do tributo seria, portanto, o espelho do sistema tributário dito neutro. A regressividade, enquanto fenômeno econômico que denuncia distorções e desigualdades com a tributação, é outro nome para a racialização tributária.
As organizações e os movimentos sociais se preocupam com os encaminhamentos pautados em pretensa neutralidade que a reforma tributária sugere; se preocupam com a descontinuidade das etapas e o encerramento do ciclo reformista com as mudanças de cunho arrecadatório na tributação do consumo; com a pressão de alguns setores econômicos para obterem benefícios fiscais na abertura da lista de bens e serviços que terão alíquotas reduzidas. Assim, a reforma corre perigo de atuar apenas como ajuste da engrenagem. Ainda que, primeiro o consumo, depois a renda e o patrimônio, não se deve perder de vista os marcadores que conduzem a pauta reformista – simplificação, racionalidade, arrecadação – e os que estão aguardando pauta – raça, gênero, sustentabilidade.
As propostas pela justiça tributária interseccionada com raça, gênero, classe, territórios, defendem, em sua generalidade, no que diz respeito à tributação do consumo: a ampliação do desenho do imposto seletivo, para incluir outros bens da vida constitucionalmente normatizados, como proteção à vida, redução das desigualdades de gênero, raça e territórios; buscam a eliminação de privilégios fiscais que possam ser nocivos a esses atravessamentos, como, por exemplo, a possível concessão de incentivos para bens e serviços relacionados à segurança nacional, e nestes estarem incluídos armas e munições. O sistema tributário atual reforça desigualdades. E esta característica, como disseram os pesquisadores Cristina Pereira Vieceli e Róber Iturriet Avila<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>, “não está somente associada à progressividade e regressividade tributária, como também a outros aspectos particulares, como, por exemplo, a maneira como o país realiza políticas de desoneração, ou como são tributados diferentes arranjos familiares.”. 
Dentre as discussões, destaque para a contraproposta chamada Reforma Tributária 3S: Saudável, Solidária e Sustentável. O objetivo é buscar aperfeiçoamento do texto da Reforma Tributária para inserir demandas da sociedade brasileira “para que a reforma esteja mais convergente às economias do século XXI, à justiça ambiental, à necessária transição energética justa e à promoção da saúde da população”<a href="#_ftn2" name="_ftnref1">[2]</a> Aqui, a bandeira levantada aponta para o cenário atual, da <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2196833">PEC 45</a>, e a possibilidade de ainda pautarmos ajustes no texto que versa sobre o tributação do consumo.
No que tange ao segundo momento para uma ampla reforma tributária, importante  dizer que uma pesquisa feita pela Oxfam-Brasil e Datafolha sobre percepções da sociedade brasileira em relação às desigualdades<a href="#_edn3" name="_ednref2">[3]</a> aponta o apoio de 96% dos entrevistados à garantia, pelos governos, de recursos para programas de transferência de renda e de assistência social, principalmente para quem mais precisa. E mostra que: 56% dos entrevistados concordam com o aumento dos impostos em geral para financiar políticas sociais; 85%, concordam com o aumento dos impostos de pessoas muito ricas para financiar políticas sociais; e 94% concordam que o imposto pago deve beneficiar os mais pobres.
Outras (e antigas) discussões também foram atualizadas. Recobrar as demandas por ampliação da progressividade no atendimento à capacidade contributiva e combater a regressividade atualiza a ótica da racialização do sistema tributário. Que registremos essa lógica: a não-tributação de lucros e dividendos, por exemplo, é um pacto da branquitude. O mesmo se diga da não-tributação dos super ricos. Outra pesquisa da Oxfam<a href="#_edn4" name="_ednref3">[4]</a> aponta que:
<blockquote class="jota-article__citation">Apenas 4 centavos de cada dólar de receita tributária vêm de impostos sobre o patrimônio e metade dos bilionários do mundo vive em países sem imposto sobre herança, aplicado ao dinheiro que dão aos filhos. Um imposto de até 5% sobre os super-ricos do mundo poderia arrecadar 1,7 trilhão de dólares por ano, o suficiente para tirar 2 bilhões de pessoas da pobreza e financiar um plano global para acabar com a fome.</blockquote>
“Racialização tributária” é uma expressão que entendemos ser uma constatação de que a tributação, tal qual erigida historicamente, sobre bases altamente regressivas do consumo, sobre privilégios fiscais, sobre déficit de representatividade nos espaços institucionais de decisão, sobre uma compreensão da arrecadação e do tributo com malefícios sociais, enfim, trata-se de uma constatação de que a tributação tem sido um pacto da branquitude. E, neste sentido, recobrar o justo numa política tributária passa, necessária e fundamentalmente, pelo marcador de raça.
O Fórum Tributação e Desigualdades no Sul Global marcou uma esperançosa agenda de debates, que considera presente e possível rever a estrutura racial da tributação. A reforma ainda não acabou.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://docs.google.com/forms/u/0/d/e/1FAIpQLSf8R9nAWmw6SxmJKDUqhgQ3-jt8JttDyPAPpaDLZXcq1dq-BQ/formResponse">https://docs.google.com/forms/u/0/d/e/1FAIpQLSf8R9nAWmw6SxmJKDUqhgQ3-jt8JttDyPAPpaDLZXcq1dq-BQ/formResponse</a>
<a href="#_ednref2" name="_edn1">[2]</a> VIECELI, Cristina Pereira, AVILA, Róber Iturriet. Economia e Finanças. Tributação e Desigualdade de Gênero e Classe no Brasil. Uma análise a partir do IRPF 2020 da POF 2017-2018. Instituto Justiça Fiscal, Março de 2023.
<a href="#_ednref3" name="_edn2">[3]</a> OXFAM-BRASIL. Nós e as Desigualdades: Pesquisa Oxfam Brasil /DataFolha. Percepções sobre Desigualdades no Brasil. Setembro 2022.
<a href="#_ednref4" name="_edn3">[4]</a> OXFAM-BRASIL. A ‘sobrevivência’ do mais rico: por que é preciso tributar os super-ricos agora para combater as desigualdades. Fórum Econômico de Davos, 2023.

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JOTA

A tributação no Brasil tem sido um pacto da branquitude

Racialização tributária e o estado da arte da tributação

Assim como já vínhamos entendendo, raça cada vez mais é entendida como atravessamento que forja a estrutura fiscal, não só social, sobrepondo as interfaces