Opinião e Análise

Renata Correia Cubas

Pamela Ramagnoli

A propósito da expansão da economia digital, com o vertiginoso crescimento de operações com non fungible tokens (NFTs) e realização de negócios milionários a eles relacionados, inclusive no contexto do metaverso, cumpre uma reflexão sobre a caracterização jurídica dessas operações e, consequentemente, sobre o tratamento tributário que lhes cabe.
Com o ano de 2022 apenas começando, a expectativa é que haja cada vez mais crescimento no mercado de NFTs, considerando que somente em janeiro esse mercado registrou o valor superior a US$ 6 bilhões em termos de volume de negociações<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Mas não é só, de acordo com a retrospectiva da tendência de pesquisas online realizadas em 2021, divulgada pelo próprio Google, NFT foi um dos termos mais pesquisados em âmbito global, o que mostra um interesse crescente sobre o tema<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
E nem poderia ser diferente, considerando que diversas celebridades têm aderido a esse mercado, se é que se pode chamar assim, adquirindo NFTs em transações milionárias e divulgando tais aquisições em suas redes sociais. Tanto é assim, que muitos daqueles que ainda não tinham ouvido falar dos NFTs foram introduzidos ao termo por meio de uma postagem do jogador de futebol Neymar Júnior em suas redes sociais, feita em janeiro deste ano, anunciando a aquisição de dois NFTs da coleção Bored Ape Yacht Club, uma das coleções de NFTs mais valiosas da atualidade<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Diante desse cenário de expansão de operações com NFTs e de aquisições milionárias feitas por pessoas públicas, impossível não indagar: o que é um NFT? E principalmente: qual é a natureza jurídica dessas operações? São operações com <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/criptoativos">criptoativos</a>? Ou seriam vendas de obras de arte realizadas online? Ou ainda, seriam operações de venda de bens digitais?
No que se refere ao conceito de NFTs divulgado no mercado, tem-se que a tradução literal do termo NFTs corresponde a token não fungível, sendo tais tokens caracterizados por alguns como uma “subclasse de criptoativos”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Com base nesse conceito, é possível depreender que o NFTs é uma representação digital de um ativo, registrado por meio de blockchain. Tal token, portanto, funciona como um certificado de autenticidade do ativo que lhe corresponde.
Ademais, uma vez que são não fungíveis, os NFTs se diferenciam de bitcoins e do ethereum por serem exclusivos e intercambiáveis. Afinal, enquanto o artigo 85 do Código Civil determina que são fungíveis os bens que “podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade”, os NFTs são o exato oposto disso, na medida em que funcionam como tokens digitais voltados a individualizar e garantir a exclusividade de ativos virtuais, tais como obras de arte<a href="#_ftn5" name="_ftnref4">[5]</a>.
Tal conceito, contudo, não possui respaldo na legislação brasileira, uma vez que não há uma definição legal quanto ao conceito de NFTs e, muito menos, quanto a sua natureza jurídica. É a partir dessa ausência de definição legal e de regulamentação que surgem os desafios quanto à tributação dessas atividades. Afinal, como sabemos, o tratamento tributário está diretamente atrelado, tanto do ponto de vista da tributação do consumo quanto do ponto de vista da tributação corporativa, à natureza jurídica atribuída às operações.
Em vista da indefinição do conceito jurídico de NFTs, os estudiosos do tema Eduardo de Paiva Gomes e Daniel de Paiva Gomes tomaram a dianteira do assunto, analisando-o inclusive sob a perspectiva da <a href="http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&amp;idAto=100592">Instrução Normativa nº 1.888/2019</a>, que define criptoativos como sendo uma “representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, podendo ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso de serviços”.
Considerando que os NFTs se amoldem ao conceito de “criptoativos”, do ponto de vista de tributação do consumo não teríamos incidência de ICMS, pois, nesse contexto, as operações com NFTs não se caracterizariam como vendas de mercadorias, mas sim como meras transações financeiras. Inclusive, esse entendimento já foi manifestado pela Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo, que por meio da <a href="https://legislacao.fazenda.sp.gov.br/Paginas/RC22841_2020.aspx">Resposta à Consulta Tributária 22841/2020</a> reconheceu que criptoativos, como o bitcoin, não tem natureza de mercadoria e, consequentemente, que operações a eles relacionadas não concretizam fato gerador de ICMS.
Já do ponto de vista de tributação corporativa, uma vez caracterizadas como criptoativos, as operações com NFTs estariam sujeitas ao Imposto de Renda a título de ganho de capital, seguindo a orientação atual da Receita Federal sobre o tema.
Isso porque recentemente a Receita proferiu a <a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/04/sc-cosit-n-214-2021-1.pdf">Solução de Consulta COSIT 214/2021</a>, por meio da qual exarou entendimento de que a utilização de criptomoedas para aquisição de outro criptoativo se caracteriza como alienação de bem ou de direito, estando, consequentemente, sujeita ao IR a título de ganho de capital. Assim, caso os NFTs fossem dotados de natureza jurídica de criptoativos, estariam enquadradas exatamente na hipótese da Solução de Consulta COSIT em referência, haja vista que, em regra, os NFTs são adquiridos por meio da utilização de outros criptoativos, como as “moedas” bitcoin ou ethereum.
Contudo, ainda que alguns especialistas tratem os NFTs como uma “subclasse de criptoativos” e ainda que os NFTs compreendam elementos que a primeira vista possam sustentar sua classificação como criptoativos (como registros via blockchain e o fato de se caracterizarem como representações digitais de ativos), há diversas dúvidas quanto à viabilidade desse enquadramento, especialmente à vista das peculiaridades que distinguem os NFTs de criptomoedas, como o bitcoin.
Afinal, a definição trazida pela Instrução Normativa nº 1.888/2019 determina que para que algo se caracterize como criptoativo deve ser uma representação digital de valor em uma própria unidade de conta, o que, como bem observado pelos professores Daniel de Paiva Gomes e Eduardo de Paiva Gomes, não reflete a realidade dos NFTs<a href="#_ftn5" name="_ftnref4">[6]</a>, já estes que por serem infungíveis não possuem unidade em sua valoração.
Considerando a relevância do tema e as incertezas que o permeiam, a impossibilidade de tributação de operações com criptoativos e, portanto, potencialmente a impossibilidade de tributação de operações com NFTs, já está sendo objeto de análise na Câmara dos Deputados.
Nesse sentido, no último dia 23 de março o deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil-SP) submeteu, para apreciação da Câmara, o Projeto de Decreto Legislativo nº 3/2022, cujo objetivo é sustar os efeitos da Solução de Consulta COSIT nº 214/2022, sob a justificativa de que por meio de tal posicionamento a Receita Federal caracterizou “permuta de criptoativos” como fato gerador do imposto de renda, a despeito da ausência de respaldo legal para tal caracterização. Atualmente o projeto em referência aguarda designação de relator na Comissão de Finanças e Tributação (CFT).
Assumindo que suas particularidades afastem o enquadramento dos NFTs como criptoativos, seria possível classificar as transações que os envolvem como transferência de propriedade de obras de arte? Tal indagação se fundamenta no fato de que, uma vez que o NFTs viabiliza o registro da propriedade do ativo que lhe corresponde, seja ele uma obra de arte digital, uma música ou um meme, acabaria, em última medida, por viabilizar a transferência de direitos autorais em ambiente digital.
Nesse contexto, o NFT nada mais seria do que uma forma digital de viabilizar a transmissão de direitos autorais sobre as obras digitais, como aquelas da coleção Bored Ape Yacht Club recentemente adquiridas por Neymar, por exemplo.
Admitindo-se tal enquadramento, sob a perspectiva da tributação do consumo, teríamos a sujeição das operações ao ICMS, já que estaríamos diante de uma hipótese de transmissão de direitos autorais materializados por meio de uma obra digital. Ainda, conforme já abordado pelos estudiosos do tema Eduardo de Paiva Gomes e Daniel de Paiva Gomes, poder-se-ia avaliar a possibilidade de enquadrar as operações nos ditames do <a href="https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/1991/CV059_91">Convênio ICMS 59/91 do CONFAZ</a>, que isenta do ICMS saídas de obra de arte que sejam decorrentes de operações realizadas pelo próprio autor das obras.
Seguindo essa linha, sob a perspectiva da tributação corporativa, considerando que os direitos sejam transmitidos pelos próprios artistas, o IR incidiria sobre o produto do trabalho dos autores/artistas das obras que os NFTs representam digitalmente e não a título de ganho de capital. Por outro lado, caso as transmissões de direitos autorais via NFTs fossem realizadas por parte de pessoas jurídicas, ao invés de diretamente pelos autores das obras, os valores provenientes dessas operações se caracterizariam como receita operacional, de modo que a incidência de IR se daria de acordo com o regime jurídico aplicável<a href="#_ftnref7" name="_ftn4">[7]</a>.
Mas não é só. Além das possibilidades de enquadramento já apresentadas, há ainda uma terceira possibilidade para fins de classificação da natureza jurídica de NFTs, qual seja: sua potencial caracterização como bens digitais.
Como se sabe, nos últimos anos o conceito e a tributação de bens digitais tem ganhado destaque nos fóruns de discussão, especialmente após o advento do <a href="https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2017/CV106_17">Convênio ICMS 106/2017</a>, editado pelo Confaz na tentativa de definir o conceito de “bens digitais” para fins de incidência do ICMS.
Ainda que o Convênio ICMS nº 106/2017 já tenha perdido sua eficácia jurídica, em virtude do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.659, fato é que tal convênio respaldou a edição de legislações estaduais sobre o tema, que inclusive permanecem vigentes. A título ilustrativo, cita-se o Decreto nº 63.009/2017, que resultou na alteração do Regulamento de ICMS de São Paulo para introduzir a isenção de ICMS sobre transações com bens digitais realizadas por meio de transferência eletrônica de dados, enquanto estivesse vigente o Convênio ICMS 106/2017. Ora, uma vez que tal Convênio ICMS teve sua eficácia afastada pelo STF, a isenção em referência deixou de ser aplicável.
Nesse contexto, uma vez que os NFTs consistem em uma representação digital de um ativo, sendo registrado também digitalmente via blockchain, nada impede que as autoridades fiscais do estado de São Paulo, por exemplo, caracterizem operações com esses tokens digitais como transferências eletrônicas de bens digitais sujeitas ao ICMS.
Considerando todo o cenário aqui exposto, ainda que a avaliação dos NFTs em seu estágio atual não nos permita uma conclusão objetiva quanto a sua natureza jurídica e, portanto, quanto ao tratamento tributário que lhes cabe, podemos concluir o mesmo que a avaliação de diversas outras inovações tecnológicas têm deixado escancarado: que a legislação tributária e a regulamentação de um modo geral não têm conseguido acompanhar os disruptivos avanços da economia digital, causando incertezas e ausência de segurança jurídica aos contribuintes.<a href="#_ftnref1" name="_ftn1"></a>
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> MANOYLOV, MK. “Monthly NFT trading volume reaches all-time high of $6 billion in January”. The Block. Publicado em 29/01/2022. Disponível em: <a href="https://www.theblockcrypto.com/data/nft-non-fungible-tokens/marketplaces/nft-marketplace-monthly-volume">https://www.theblockcrypto.com/data/nft-non-fungible-tokens/marketplaces/nft-marketplace-monthly-volume</a> . Acessado em 06/02/2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> RUBINSTEINN, Gabriel. “Google destaca bitcoin e NFT em retrospectiva das principais buscas do ano”. Exame: Future Money. Publicada em 11/12/2021. Disponível em: <a href="https://exame.com/future-of-money/google-destaca-bitcoin-e-nft-em-retrospecitva-das-principais-buscas-do-ano/">https://exame.com/future-of-money/google-destaca-bitcoin-e-nft-em-retrospecitva-das-principais-buscas-do-ano/</a> . Acessado em 06/02/2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> GUERATTO, Fabrizio. “Justin Bieber e Neymar gastam milhões em NFTs. Por quê?”. Estadão:E-investidor. Puvlicado em em 01/02/2022. Disponível em: <a href="https://einvestidor.estadao.com.br/colunas/fabrizio-gueratto/justin-bieber-neymar-nft-valor">https://einvestidor.estadao.com.br/colunas/fabrizio-gueratto/justin-bieber-neymar-nft-valor</a> . Acessado em 06/02/2022.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> BRAGA DA CUNHA, João Marco. “NFTs, autenticidade e propriedade”. Hashdex. Disponível em: <a href="https://www.hashdex.com.br/conteudo/artigos-e-opinioes/nfts-autenticidade-e-propriedade">https://www.hashdex.com.br/conteudo/artigos-e-opinioes/nfts-autenticidade-e-propriedade</a> . Acessado em 06/02/2022.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn4">[5]</a> “O que são NFTs? Entenda como funcionam os tokens não fungíveis”. Disponível em: <a href="https://www.infomoney.com.br/guias/nft-token-nao-fungivel/">https://www.infomoney.com.br/guias/nft-token-nao-fungivel/</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn4">[6]</a> DE PAIVA GOMES, Daniel; e DE PAIVA GOMES, Eduardo. “NFTs no setor artístico: questões fiscais no Brasil”. Publicado em 29/08/2021. Disponível em: <a href="https://portaldobitcoin.uol.com.br/nfts-no-setor-artistico-questoes-fiscaisno-brasil/">https://portaldobitcoin.uol.com.br/nfts-no-setor-artistico-questoes-fiscaisno-brasil/</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn4">[7]</a> Idem à referência 5.

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JOTA

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