Opinião e Análise

Manuela Fernandes da Silva Santos

Maria Eduarda Cavalcanti Pinheiro Ramos

Letícia Soares Machado

O <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal</a>, na última sexta-feira de setembro, rejeitou os embargos de declaração opostos pela União, mantendo a integralidade do acórdão exarado quando do julgamento da ADI 5422/DF<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Por unanimidade, os ministros ratificaram os efeitos imediatos e retroativos da decisão que conferiu interpretação conforme à Constituição para afastar a “incidência do imposto de renda sobre valores decorrentes do direito de família percebidos pelos alimentados a título de alimentos ou de pensões alimentícias”. Confirmou-se, ainda, que tal entendimento se aplica tanto à pensão alimentícia firmada por decisão judicial como por escritura pública, afastando-se a tentativa de restrição de seus efeitos pela União.
A discussão ali abordada é de grande relevância, uma vez que confere ênfase a um tema caro aos estudiosos do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/direito-tributario">Direito Tributário</a> sob um “novo” viés, cuja perspectiva, ao voltar-se ao ideal de igualdade, não mais se restringe a fator de classe — simplista ante à complexidade da desigualdade no Brasil. Por meio da ADI 5422, discute-se formas de mitigar a desigualdade não apenas social, mas de gênero, intensificada pela tributação vigente<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
A discriminação tratada por meio da ADI é implícita e advém de elementos que decorrem não apenas da tributação, mas também da realidade socioeconômica brasileira, construída sobre bases patriarcais. Em razão de papéis sociais arraigados à comunidade, é comum que a mãe seja a principal responsável pelos cuidados com a família e a prole. Segundo o IBGE, as mulheres dedicam-se a tais atividades o dobro de horas que os homens. Do mesmo modo, a discriminação salarial ainda é uma realidade no país<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Não por acaso, em grande parcela dos divórcios, a guarda da criança remanesce com a mãe e, assim, o pagamento da pensão alimentícia ao menor torna-se obrigação do pai. Isso é evidenciado pelos números da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/receita-federal">Receita Federal</a>, reveladores de que, em 2020, do total de R$ 15,67 bilhões em deduções a título de pensão alimentícia, as mulheres declaram apenas R$ 390 milhões<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Esse cenário ocorre, pois, ao fornecer a pensão devida ao seu  filho, o alimentante é autorizado a deduzir a totalidade do montante pago da base de cálculo de seu IR<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, enquanto que os valores recebidos como pensão alimentícia, caso se queira aproveitar o ínfimo limite de dedução legal com dependentes<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, serão somados à renda do responsável pela guarda e, sendo o seu resultado superior à faixa de isenção, oferecidos à tributação integral.
Desse modo, considerando tais dados, a mãe, além de se tornar a responsável pelo cuidado e pelas necessidades mais básicas da criança, terá que arcar com todo o ônus tributário decorrente da pensão alimentícia do menor, revelando maior carga tributária suportada pela mulher, haja vista a faculdade de dedução integral de tal montante da base de cálculo do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/irpf">IRPF</a> pago pelo pai. Em face dessa realidade, o plenário, aderindo ao voto do ministro relator Dias Toffoli, formou maioria em favor da não incidência do IR sobre pensões alimentícias.
Em que pese a relevância da solução alcançada, o relator, ao defender a não incidência do IR sobre as verbas alimentícias, o fez sob a justificativa de que a forma atual de sua tributação acarretaria desigual carga tributária entre as demais formações familiares e aquelas sujeitas ao pagamento de pensão alimentícia para o provento da prole. E, não obstante tal premissa, acabou por estabelecer sistemática tributária fortalecedora justamente da distorção a qual aduz ter como finalidade combater. Segundo o entendimento firmado pela Corte Suprema, quando do custeio da prole por meio da pensão alimentícia, não haveria qualquer incidência de IR, ao contrário do que se daria nas demais organizações familiares.
Com a decisão proferida na ADI 5422, mantendo-se a faculdade legal de dedução da referida verba quando da sua percepção pelo alimentante, afasta-se totalmente a incidência do imposto, seja quando da percepção da renda pelo alimentante, seja quando do seu repasse ao alimentado, a acarretar tratamento tributário diverso do destinado às demais formações familiares — e tudo isso, frise-se, independentemente de se tratar de verba milionária ou irrisória. É evidente, assim, a distorção causada pela não tributação da pensão alimentícia em nenhuma das pontas, cuja solução mais adequada perpassa por alteração legislativa sobre o tema.
A ratio da ADI 5422 revela um terreno fértil para tanto. O voto aderido pela maioria dos ministros tem como premissa central a compreensão de que os numerários recebidos a título de pensão alimentícia “não são renda nem provento de qualquer natureza do credor dos alimentos”, mas meras entradas deste. Na visão dos ministros, tais verbas são parte da renda ou do provento de qualquer natureza do alimentante que, assim como se daria por meio do pagamento direto das despesas do alimentado, são destinadas ao sustento da prole.
Em que pese a percepção adotada pelo Supremo não ser isenta de discussões jurídicas acerca de sua correção<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, ela acaba por consolidar pilar essencial à importante alteração legislativa do tema. Partindo-se da premissa de que os valores da pensão alimentícia são, em verdade, renda do alimentante, a sua tributação através da revogação da previsão do art. 4º, II, <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9250.htm">Lei 9.250/95</a><a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> (autorizador da dedução integral da verba alimentícia paga pelo alimentante da base de cálculo do seu IRPF) torna-se ainda mais lógica e necessária para afastar a distorção acima mencionada. Tal alteração legislativa, inclusive, é objeto do <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2269501">PL 287/2021</a>, em discussão na Câmara dos Deputados<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Convém, assim, frisar que, a despeito da necessidade de se discutir a tributação como fator capaz de mitigar ou intensificar desigualdades, deve-se ter cautela ao se buscar solucionar disparidades tributárias, sob o risco de se ocasionar novas problemáticas como a acima exposta. Relevantíssimo o fato de estarem sendo discutidos temas tão caros pela Corte. Porém, destaque-se que tal decisão judicial decorre da busca por suprir a escolha política do Legislativo de “inexercício” de sua competência, cuja carência de representatividade feminina é fator relevante. O meio mais adequado para a resolução de tal disparidade sempre correspondeu à mudança legislativa sobre o tema.
Neste ponto, relevante a proposta do grupo de estudos sobre tributação e gênero da FGV-SP<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, que, apesar de estar, de certo modo, superada após o julgamento da ADI 5422, mostra-se mais adequada do que a conclusão alcançada pelo Supremo, haja vista o seu menor potencial de distorções tributárias. Nela, é sugerido que a pensão recebida seja considerada isoladamente para sua dedução até o limite mensal da isenção do IR, sem que isso inviabilize a dedução legal com o dependente, solução, inclusive, similar à indicada no voto vencido do ministro Gilmar Mendes. Ao se atentar para o valor da pensão alimentícia, referida proposta está mais adequada a outros elementos essenciais à isonomia, tal qual o fator socioeconômico (atrelado à capacidade contributiva do administrado), do que a conclusão que restou consignada no julgamento da ADI 5422.
Aliás, teratológico se falar, tal como defendido pelo autor da ação, em garantia do mínimo existencial a fim de afastar a incidência do IR sobre tais verbas sem fazer qualquer juízo a respeito do valor pago a título de pensão.
Não obstante a relevância de o STF estar debatendo temas tão importantes, antes desconsiderados pelos estudiosos de Direito Tributário, a conclusão ali firmada acarreta sérias distorções jurídicas e sociais, a tornar o seu enfrentamento pelo Legislativo, antes necessário, em medida verdadeiramente inadiável.<a href="#_ftnref1" name="_ftn1"></a>
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Ata de Julgamento DJe nº 166, do dia 22/08/2022, conforme andamento da ADI 5422. Disponível em: &lt; <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4893325">https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4893325</a>&gt;. Acesso em 11/09/22.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Não olvida-se, porém, que a camada mais afetada pela discussão em comento são mulheres cuja renda escapa à faixa de isenção do IR, isto é, mulheres de classes média e alta.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Conforme estudo realizado pelo IBGE, as mulheres receberam 77,7% do salário dos homens. Disponível em: . Acesso em 21/03/2022.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a>  Receita Federal do Brasil. Grandes Números IRPF – Ano-Calendário 2020, Exercício 2021. Disponível em:<a href="https://www.gov.br/receitafederalt/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos/imposto-de-renda/estudos-por-ano/gn-irpf-2021-2020.pdf">https://www.gov.br/receitafederalt/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos/imposto-de-renda/estudos-por-ano/gn-irpf-2021-2020.pdf</a>.  Acesso em 04/10/2022.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a>  De acordo com o artigo 4º da Lei nº 9.250, de 26 de dezembro de 1995, “Na determinação da base de cálculo sujeita à incidência mensal do imposto de renda poderão ser deduzidas: (...) II – as importâncias pagas a título de pensão alimentícia em face das normas do Direito de Família, quando em cumprimento de decisão judicial, inclusive a prestação de alimentos provisionais, de acordo homologado judicialmente, ou de escritura pública a que se refere o art. 1.124-A da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil. (Redação dada pela Lei nº 11.727, de 2008)” (Brasil, 1995).
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Frise-se que, no caso de a pensão alimentícia percebida pelo alimentado corresponder a montante superior à faixa de isenção (R$ 1.903,38),  haverá a possibilidade de a mãe proceder com a declaração de IRPF do filho de forma apartada, e não como seu dependente. Entretanto, nesta hipótese, ela não gozará sequer do limite de dedução com gastos de dependentes.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Para alguns, a tributação da verba despendida pelo alimentante consiste, em verdade, em ofensa à própria materialidade do imposto de renda.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Esse dispositivo, apesar de central à ratio aderida pela maioria dos Ministros, não foi objeto de questionamento pelo autor da ADI 5422, não tendo, assim, sido enfrentado quando do seu julgamento.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> O PL nº 287/2021 dispõe acerca da impossibilidade de incidência de IR sobre pensão alimentícia recebida por beneficiário descendente do alimentante, bem como exclui a possibilidade de sua dedução da base de cálculo do IRPF do alimentante. Disponível em: &lt;<a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2269501">https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2269501</a>&gt;. Acesso em: 05 dez. 2022.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> FGV DIRETO SP. Disponível em: &lt;<a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/12/reforma-e-gecc82nero-final-2.pdf">https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/12/reforma-e-gecc82nero-final-2.pdf</a>&gt;. Acesso em: 21/03/2022.

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JOTA

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