
A desigualdade de gênero me incomoda desde muito pequena. Recordo-me de ouvir músicas que minha mãe gostava – e que atualmente adoro –, mas quando criança, soavam-me machistas e injustas. Ouvia “Esse Cara”[3], de Caetano, na voz de Maria Bethânia: “ah, esse cara tem me consumido (…); ele é quem quer, ele é o homem e eu sou apenas uma mulher” ou “Mulheres de Atenas”[4], de Chico Buarque: “mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas, vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas” e indagava à minha mãe: “– mas mãe, como você pode escutar isso? Essa música é muito machista! ”.
Ela tentava me explicar que o objetivo dessas letras era trazer uma reflexão e crítica à situação de desigualdade das mulheres; confesso que levei alguns anos até compreender. Hoje, agradeço à Bethânia, Caetano, Chico e principalmente à minha mãe por terem despertado em mim este olhar crítico quando criança.
Devaneios à parte e mais de trinta anos depois, as desigualdades não diminuíram muito. Por mais que possamos afirmar que hoje o debate é mais aberto e transparente, infelizmente os números evidenciam que não avançamos tanto. Estudos mostram que seriam necessários, em média, cem anos para que houvesse igualdade de gênero. E de acordo com o Índice Global de e Desigualdade de Gênero, o Brasil está em 85º lugar, dentre um total de 145 países[5].
Ademais, a pandemia escancarou ainda mais esta desigualdade: diversos estudos[6] têm demonstrado que mulheres e negros, tem sofrido muito mais com jornadas triplas, dificuldades para conciliar o trabalho e afazeres domésticos[7] e demissões. Ou seja, há um risco de que a pandemia traga alguns retrocessos, caso ações efetivas não sejam adotadas rapidamente.
Obviamente, a área tributária não é exceção; um levantamento feito pela Page Personnel com base nos candidatos registrados em seus bancos de dados[8] ilustra que a maioria dos profissionais na área tributária em início de carreira (analistas) são mulheres (57,8%, em comparação a 40,2% de homens). Entretanto, quando avaliamos quantas das mulheres chegam às posições de liderança, os resultados são assustadores.
Se considerarmos as posições de Heads ou Diretoria em empresas, 29,6% são mulheres e quando avaliamos posições equivalentes em consultorias/big-fours e escritórios, apenas 15% são representadas por mulheres. Olhando os números de big-fours de maneira isolada, temos um percentual ainda mais baixo: somente 11% das cadeiras são ocupadas por mulheres.
Não temos dados seguros a respeito de mulheres negras, porém, ao fazer diversas pesquisas informais não localizei qualquer Head de Tax mulher e negra[9] no Brasil, ou seja, não há representatividade alguma destas mulheres nos cargos mais altos da área tributária[10].
Optei também por trazer dados das posições de Chief Finance Officers (“CFOs”) das empresas, uma vez que, via de regra, as áreas tributárias reportam-se direta ou indiretamente a estas posições nas empresas. Isso porque, apesar de termos uma representatividade um pouco maior de mulheres em posições de Head de Tax nas empresas, os números parecem indicar que poucas mulheres que são Heads de Tax conseguem ser promovidas para uma posição de CFO, com escopo maior[11].
Além da pequena representatividade dentro das mais altas posições nas organizações, notamos também a baixa representatividade feminina no meio acadêmico, bem como em eventos da ára tributária, tais como congressos, paineis, webinars etc.
É bastante comum vermos posts no LinkedIn diariamente com eventos sem representatividade de gênero. No que se refere à representatividade das mulheres negras em eventos, diria que a mesma é praticamente nula.
Desta forma, diferentemente de algumas áreas em que há dificuldade de encontrar profissionais mulheres na base da pirâmide[12], tais como engenharia, tecnologia, dentre outras, este não é um obstáculo presente na área tributária; muito pelo contrário. Urge então a pergunta óbvia: por qual razão não vemos tantas mulheres em cargos de liderança, já que as organizações têm falado tanto sobre o tema? Trago abaixo algumas ideias para reflexão.
Comumente, as áreas de Recursos Humanos das organizações buscam solucionar o tema da diversidade focando em três principais pilares: (i) atração/contratação; (ii) desenvolvimento/promoção e (iiI) retenção. No entanto, nem sempre este olhar é suficiente uma vez que as dificuldades de progresso nesses pilares são apenas sintomas.
As verdadeiras causas raízes ou enfermidades das organizações é que contaminam os processos de contratação, performance, promoção etc., e acabam trazendo por consequência um baixo número de mulheres no topo da organização.
Penso que as principais causas raízes para o baixo número de mulheres no topo da pirâmide sejam: (i) os vieses inconscientes; (ii) a inexistência de metas concretas para aumento do número de mulheres em cargos de liderança; (iii) inexistência de políticas e/ou ações que visem eliminar as barreiras “invisíveis”; e (iv) ambientes não inclusivos.
Estes fatores, de forma conjunta, criam uma “cultura de desigualdade” que reforça o status quo e, ao mesmo tempo, prejudica os pilares de atração, desenvolvimento e retenção de mulheres, gerando um círculo vicioso e contribuindo para que o ambiente se torne ainda menos inclusivo. A ilustração abaixo demonstra essa ideia.
A figura acima ainda aponta fatores externos como o machismo, cultura patriarcal e racismo estrutural são influenciadores para a criação dos “vieses inconscientes”. As experiências que tivemos, assim como os valores da sociedade em que vivemos e os estereótipos formam os vieses inconscientes, os quais induzem nossa tomada de decisões.
Alguns exemplos de vieses inconscientes são: preterir a contratação de mulheres em detrimento de homens por presumir que essas irão engravidar ou dedicar-se menos ao trabalho por causa dos filhos; não promover uma mulher que está grávida por imaginar que talvez ela não retorne ao trabalho após a licença.
Durante estes anos na área tributária, muitas vezes presenciei muitos comentários[13] durante o processo da performance/avaliação que evidenciam estes vieses, tais como: “não é possível dizer que a performance dela foi excepcional pois esteve fora metade do ano em razão da licença-maternidade”, quando na realidade a avaliação deveria restringir-se ao período do ano em que ela trabalhou. Outros comentários e adjetivos muito utilizados para a avaliação das mulheres como as como “agressiva”[14] ou “dura” são muito mais comuns que no caso dos homens quando homens são avaliados como “assertivos” ou “objetivos”.
Alguns vieses com relação ao tema de raça: afirmar que há poucos homens ou mulheres negros nas organizações por acreditar que eles não têm tanta força de vontade, quando na realidade, essas pessoas não tiveram acesso às mesmas oportunidades e ainda enfrentam o racismo nos processos seletivos.
Não devemos imaginar que os vieses serão eliminados das organizações, afinal, todos os temos, mas é preciso ter consciência dos mesmos e refletir sempre para garantir se alguma decisão está sendo tomada por conta de algum preconceito ou ideia pré-concebida.
Já as metas são os compromissos feitos pela alta liderança para buscar a equidade, por exemplo: “50% de mulheres em cargos de diretoria até 2022”; “50% de negros na organização até 2025”. Mas para que as metas sejam efetivas devem impactar a remuneração variável dos altos líderes da organização.
Com relação a políticas ou ações que eliminem as barreiras “invisíveis”, podemos citar: licenças parentais que igualem o período de licença maternidade de e paternidade, exigir um percentual mínimo de candidatas mulheres e candidatas negras nos processos de contratação ou ainda, eliminação da exigência do inglês na contratação de profissionais negros.
Ambientes não-inclusivos são aqueles que permitem ou estimulam comentários nocivos, machistas e racistas, locais em que não há salas de amamentação ou ambientes em que há a presença excessiva de mansplaining, manterrupting, broptriating e gaslighting.[15]
Assim, se houver consciência dos preconceitos e vieses das organizações, em conjunto com a criação de metas, políticas, ações e de um ambiente inclusivo, quebraríamos o círculo vicioso. Este poderia se transformar em um círculo virtuoso e com isso, os pilares de atração, desenvolvimento e retenção se fortaleceriam de forma mais orgânica[16].
Porém, imagino que muitos estejam aqui se perguntando: “mas se eu não faço parte da área de Recursos Humanos ou não faço liderança da minha organização, como posso mudar esse cenário? Afinal, o que eu tenho a ver com isso?”. A resposta é, todos nós podemos contribuir, independentemente do cargo ou gênero. Algumas dicas:
- Desafiar o status quo da cadeia inteira: questionar a sua organização internamente, desde a área de RH, pares e alta liderança, mas também os seus fornecedores, prestadores de serviço, organizadores de eventos, seminários e até mesmo empresas das quais você é consumidor na pessoa física. É importante entender quais ações a sua organização está tomando para evoluir e contribuir para que hajam avanços. Vale também questionar a lista de novos sócios dos escritórios e consultorias que você contrata ao perceber que não há mulheres ou negros, por exemplo. E sim, boicotar eventos não diversos, seja não aceitando convites para participar como palestrante se não houver diversidade entre os apresentadores ou ainda, simplesmente não os prestigiando;
- Não se cale: se você presencia comentários machistas, racistas ou preconceituosos, é seu dever apontar que aquilo é inadequado, de forma educada. Muitas vezes, tratam-se de vieses inconscientes e você pode ajudar a pessoa a refletir sobre algo que não havia pensado antes. Mas em caso de abuso, é importante procurar os canais internos de Compliance para reporta-lo; e
- Use seu privilégio em favor dos demais: se você é gestorx, aproveite essa posição para influenciar a contratação de mais mulheres, negros, por exemplo. Se você possui uma grande rede de relacionamentos, indique essas pessoas para vagas que conhece. Se você sempre e convidado para palestrar, exija que o evento também convide mulheres ou negros para participarem; e
- Sororidade[17]: essa dica é específica para as mulheres. É importante a união entre as mulheres, sem julgamentos e ainda, que as mulheres que possuem posições mais privilegiadas, apoiem as que não os tem. Se foi difícil para você chegar no topo, isso não quer dizer que todas devam passar por isso e, por que não lutar por um mundo melhor para todas?
Da mesma forma que iniciei o texto com referências musicais, encerro com essa música que diz muito sobre o tema da equidade de gênero: “Triste, Louca ou Má” [18]. E que possamos ser o nosso “próprio lar”.
“Triste, louca ou má
Será qualificada
Ela quem recusar
Seguir receita tal
A receita cultural
Do marido, da família
Cuida, cuida da rotina
(…)
Que um homem não te define
Sua casa não te define
Sua carne não te define
Você é seu próprio lar”
O episódio 43 do podcast Sem Precedentes analisa a nova rotina do STF, que hoje tem julgado apenas 1% dos processos de forma presencial. Ouça:
[1] É importante ressaltar que este artigo não tem por objetivo abordar questões relativas à identidade de gênero, isto é, a expressão de gênero com a qual a pessoa se identifica ou ainda, sobre os temas de orientação sexual. Mas vale esclarecer que acredito que o feminismo apenas pode ser legítimo se abarcar toda e qualquer mulher que se identifique com o gênero, inclusive mulheres “trans” e não pode ignorar outros fatores muito relevantes como raça e etnia. Para saber mais: <https://brasilescola.uol.com.br/sexualidade/cisgenero-transgenero.htm>.
[2] Maíra é membra do TEWA, advogada e atua na área tributária há 21 anos, tendo passado por escritórios e grandes multinacionais. Além da sua atuação na área tributária, tem forte participação nos temas de diversidade, especialmente com relação a gênero e raça.
[3] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9J4K851aal4 https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/144566/>.
[4] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=MabbVn0Rlv4 https://www.letras.mus.br/chico-buarque/45150/>.
[5] Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/videos_e_fotos/2015/11/151118_100w_calculator_vj_2015>.
[6] Disponível em: <https://nacoesunidas.org/pandemia-esta-colocando-luta-pela-igualdade-de-genero-em-risco-diz-relatorio-da-onu/>.
[7] “Pesquisa aponta que afazeres domésticos dificultam home office para 64,5% das mulheres:” <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/08/pesquisa-aponta-que-afazeres-domestico-dificultam-home-office-para-645-das-mulheres.shtml>.
[8] Este levantamento não contempla dados de todos os profissionais da área tributária do Brasil, no entanto, pelo tempo de atuação no país e na área tributária, acreditamos ser uma das fontes mais confiáveis para esta análise.
[9] No entanto, localizamos um número bem baixo de homens negros que ocupam posições de Heads de Tax ou sócios de big-fours, o que reforça a que o racismo estrutural impões barreiras não apenas para mulheres, mas também para homens.
[10] Conheço apenas uma mulher negra que é sócia de consultoria tributária. Para saber mais sobre ela: <https://www.linkedin.com/in/tha%C3%ADs-borges/>.
[11] Não foi possível obter dados de quantas mulheres que eram Heads de Tax conseguiram migrar para uma posição de CFO no Brasil, mas considerando que existem diversas outras áreas dentro de Finanças, tais como Contabilidade, Tesouraria, FP&A etc., deduzimos que este percentual deve ser mínimo.
[12] Novamente, esta afirmação não se aplica ao tema de mulheres negras e muito embora estejamos abordando o tema do racismo de forma superficial neste artigo, pretendo tratar este ponto com mais profundidade em outro momento.
[13] Importante destacar que isso não reflete a posição das empresas nas quais trabalhei, mas são comentários que ouvi ao longo da carreira, seja em empresas, escritórios ou comentados por colegas.
[14] Existem inúmeros estudos demonstrando essa diferença em avaliações de desempenho entre homens e mulheres: <https://fortune.com/2014/08/26/performance-review-gender-bias/>.
[15] Disponível em: <https://www.institutoclaro.org.br/cidadania/nossas-novidades/reportagens/mansplaining-manterrupting-bropriating-e-gaslighting-mulheres-compartilham-suas-experiencias-com-o-machismo/>.
[16] É evidente que esta teoria precisaria passar por alguns testes, mas as organizações mais diversas e inclusivas em geral focam nestes fatores. Disponível em: <https://www.politize.com.br/sororidade/>
[18] “Triste, Louca ou Má”, de Francisco el Hombre: <https://www.youtube.com/watch?v=lKmYTHgBNoE>.