Opinião e Análise

Julia de Menezes Nogueira

<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/women-in-tax-brazil/proposta-da-cbs-no-ambito-de-uma-reforma-tributaria-fatiada-21082020" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Em artigo anterior</a>, analisamos a primeira etapa da proposta de reforma tributária apresentada pelo Governo Federal – o PL 3887/2002 – e concluímos que não unifica nem uniformiza os tributos federais incidentes sobre o faturamento, não simplifica a legislação e não mantem a carga tributária inalterada. Passaremos a analisar, a seguir, quais seriam as demais etapas da reforma proposta, a fim de verificar se o conjunto é racional e contribui para a solução da crise econômica vivenciada pelo país.
Desde o início do presente governo, há 19 meses, a equipe econômica vem alegando que os resultados positivos pretendidos na economia adviriam de reformas, em especial a da previdência, a tributária e a administrativa. A despeito da importância atribuída no discurso a essas reformas, até hoje somente a da previdência foi aprovada, e ainda assim com características muito mais próximas àquela proposta pelo governo anterior do que pelo atual. A ideia de capitalização, por exemplo, foi abandonada nas discussões com o Congresso.
<a href="http://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos"><img class="aligncenter wp-image-259015 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos.jpeg" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Quanto à reforma tributária, enquanto avançavam as discussões da PEC 45 e da PEC 110, nenhuma proposta foi apresentada pelo Executivo, chegando-se a acreditar que acabaria por aderir a uma delas.
Nesse contexto, há alguns meses finalmente foi anunciado que a proposta seria apresentada de forma “fatiada”, para não “causar confusão”. A impressão deixada por essa estratégia é de que o governo ainda não teria elaborado uma proposta completa e que estaria usando o “fatiamento” como subterfúgio para buscar aprovações parciais e, posteriormente, vincular as mais benéficas à aprovação da nova CPMF, por eles denominada “imposto digital”.
Ora, como já dissemos, reforma tributária é repactuação do acordo entre a sociedade e o Estado. A sociedade aceita contribuir com tributos para o financiamento dos projetos e obrigações assumidas pelo Estado. Uma reforma tributária nada mais é que a renegociação desse consenso tênue, que exige a destinação dolorosa de parcelas do patrimônio dos contribuintes a governos nos quais, em geral, depositam escassa confiança.
Não é razoável, tampouco transparente, propor que essa repactuação se dê de forma fatiada, sem que se conheça o conjunto da obra, em especial quando suas etapas iniciais exigem sacrificante aumento da carga tributária sobre a receita bruta. Sobre as próximas etapas da reforma, pouco se conhece e o que se sabe não é nada alvissareiro.
Quanto ao imposto sobre a renda das pessoas físicas, vem se anunciando a ideia de revogar as deduções de despesas com saúde e educação, as mais relevantes para a classe média, sob o argumento de que esse benefício não seria usufruído igualmente por toda a sociedade, já que nem todos podem pagar por serviços privados.
Ocorre, contudo, que é da natureza do próprio conceito de renda considerar como tal o cotejo entre ingressos e gastos dentro de um certo período. Não há renda, e sim receita, se não houver gastos dedutíveis.
<blockquote class="jota-article__eye">A competência atribuída pela Constituição para a criação do imposto deve ser exercida sobre renda. Esse é o entendimento consensado pela comunidade jurídica e pela jurisprudência.</blockquote>
Então, se é verdadeiro que as deduções de despesas com educação e saúde são injustas, serão substituídas por quais, consideradas justas? Despesas com alimentação? Juros de financiamento imobiliário? Aluguel? Repita-se: não há renda tributável sem receitas dedutíveis. Pelo que foi dito até agora, não há intenção de substituir as despesas dedutíveis por outras.
Somente foi declarado o desejo de revogar as existentes, impondo mais um aumento de carga à sociedade e potencialmente distorcendo a natureza de um imposto consolidado no país há décadas, cujo funcionamento e incidência são bastante razoáveis e amadurecidos. Ou seja: vamos mexer no que não deve e não precisa, com grandes riscos de chegar a resultado indesejável.
Também foi cogitada a intenção de tributar dividendos. A despeito de esse ser mais um possível aumento de carga, a tributação dos dividendos pode ser bem-vinda para corrigir distorções no sistema e aumentar a base de contribuintes. Mas é preciso entender como será implementada, em que percentual, e com qual redução de alíquota no IRPJ. Tampouco há notícias claras sobre como isso será feito, levando à preocupação de que se pretenda tão somente obter incremento de arrecadação, em detrimento da racionalização do sistema.
Outro anúncio em relação à possível reforma do imposto sobre a renda das pessoas físicas é a intenção de aumentar a faixa de isenção – hoje em torno de R$1.900 – para cerca de cinco salários mínimos, ou quase cinco mil reais, o que também poderia tornar o sistema mais justo.
Contudo, a par dessa medida, também seria importante aumentar as alíquotas marginais –alíquotas máximas incidentes sobre altas rendas – uma vez que as adotadas no Brasil estão entre as mais baixas do mundo.
Nessa matéria, o que se ouve do governo, ainda de forma incipiente, é exatamente o oposto: a intenção de estabelecer uma alíquota única de 20%, desprestigiando os princípios constitucionais da progressividade e da capacidade contributiva, que impõem ao legislador tributar mais quem ganha mais.
Nesse contexto – de se dever tributar mais quem ganha mais – observamos que não é mencionada, nas falas esparsas sobre as próximas etapas da reforma fatiada, nenhuma intenção de instituir o imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição desde 1988 e objeto de 18 projetos de lei em andamento no Congresso Nacional.
Ou seja – não se pode “beneficiar” a classe média com deduções de saúde e educação – mas podem manter-se os privilégios dos super ricos de não ter suas grandes fortunas tributadas na forma prevista pela Constituição há mais de vinte anos.
Por outro lado, o que parece efetivamente confirmado, ao menos como intenção, nas demais etapas, é a suposta desoneração da folha de pagamentos – não sabemos de qual magnitude – e a instituição de tributação das movimentações financeiras, nos moldes da antiga CPMF.
Quanto à desoneração da folha de pagamento, parece-nos algo incoerente com o déficit da previdência tão propalado inclusive por esse governo, que fez da reforma previdenciária redutora de benefícios sua maior bandeira. Ora, se o déficit da previdência era tamanho – e continuará após a reforma, tendo sido apenas atenuado – como reduzir a incidência das contribuições sobre a folha sem aumentar esse rombo? Além disso, ao contrário do que vem sendo afirmado pelo Governo, diversos estudos demonstram que desonerações na folha de pagamento não contribuem para a redução do desemprego.
No que se refere à reinstituição da CPMF, essa forma de tributação dos pagamentos, embora defendida como prática e eficiente por alguns, é rechaçada por grande parte da sociedade, pelo Congresso Nacional e, até onde se sabe, pelo próprio presidente da República.
Rebatizá-la de imposto sobre transações digitais não resolverá isso. Será esse o melhor caminho para a repactuação social necessária à aprovação de uma reforma? Lamentavelmente, além de essa ser uma ideia fixa do Ministério da Economia, que vem e volta desde o início do governo, ainda está sendo artificiosamente apresentada como condição para a criação da faixa isenta alargada no IRPF e da ampliação do bolsa família.
A resposta a todas essas perguntas teria que ser trazida por uma reforma que fosse apresentada por inteiro – e não de forma fatiada – à sociedade brasileira, e discutida em todos os seus aspectos e impactos. Sua apresentação fatiada não alcança esse resultado, não tem transparência e só gera insegurança para os contribuintes e rejeição por seus representantes no Congresso Nacional.
Para concluir, não se pode deixar de citar aquela que parece ser a característica mais abjeta da proposta de reforma fatiada, quando vista em seus contornos gerais. A proposta de CBS, assim como as possíveis revisões futuras planejadas para a legislação tributária, parece ignorar completamente que nos encontramos no meio de uma pandemia, que além de já ter ceifado tragicamente mais de 100 mil vidas, deverá deixar um legado nefasto à economia do país. Seria esse um negacionismo, não apenas sanitário, mas também econômico do Governo Federal?
Se até ontem era razoável – embora muito pouco ambicioso – apresentar uma proposta de reforma tributária almejando apenas uma ingênua tentativa de simplificação, hoje essa falta de ambição se mostra completamente desconectada da realidade e das necessidades do país.
Novos problemas exigem novas soluções. A pandemia nos trará imensos problemas a resolver: desemprego em massa, economia em frangalhos, médias e pequenas empresas quebradas.
A reforma tributária apresentada, cuja primeira etapa deverá iniciar sua vigência em primeiro de janeiro de 2021, teria a obrigação de estar inserida num conjunto de medidas pensadas pelos governantes para enfrentar com galhardia esses problemas. Será que está? Será que contribui para a recuperação da saúde e da economia do país? Essa é a pergunta que fica para reflexão.

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JOTA

A proposta de CBS parece ignorar completamente que nos encontramos no meio de uma pandemia

Ainda sobre a proposta da CBS e o fatiamento da reforma Tributária

A proposta de CBS parece ignorar completamente que nos encontramos no meio de uma pandemia