Opinião e Análise

Larissa Lucio Limeira

Martha R. Leonardi

Manuele Sarmento

Após o início do julgamento da ADI 5422/DF pelo Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>), a tributação dos valores recebidos a título de pensão alimentícia ganhou destaque no debate público. Em sessão virtual, no dia 6/6/2022, a maioria do plenário do STF entendeu que os valores não constituem acréscimo patrimonial e que a incidência do imposto consistiria em bitributação<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Dois votos chamaram atenção. O ministro Dias Toffolli, relator da ADI, consignou que o valor destinado aos alimentos não representaria acréscimo patrimonial e, por isso, não deve fazer parte da base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Física. Além disso, destacou que o alimentante já sofre a tributação do imposto sobre a pensão, o que configuraria bis in idem (uma dupla incidência do imposto sobre os valores referentes à pensão alimentícia), já que, para o ministro, a dedução é tão somente de um benefício fiscal.
O voto do relator foi seguido pelo ministro Roberto Barroso, que, no entanto, se baseou em outro raciocínio. Fincou o conceito de pensão alimentícia a partir de julgados<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> do STJ, aplicando o conceito de mínimo existencial. O ministro afastou esse montante do direito econômico e o aproximou do direito de personalidade do alimentando, justamente pela destinação da monta à garantia da subsistência do alimentando.
O ministro ainda usou outro tipo de fundamentação para julgar procedente o pedido formulado na ADI. Trouxe à baila a discussão sobre gênero, salientando que a disparidade nos números de guardas concedidas unilateralmente às mulheres demonstra como a sociedade atribui a responsabilidade social de cuidar da prole às mulheres, e enfatizou que recolher o tributo das detentoras das guardas referente a essas verbas de pensão tem como reflexo o reforço dessa ideia.
Isso porque as pensões alimentícias, quando homologadas judicialmente, arbitradas em condenação judicial ou constantes em escritura pública, podem ser deduzidas integralmente da base de cálculo utilizada na apuração do IR devido pelo alimentante<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, de forma que o alimentando incorpora tais valores aos seus proventos e paga o IR referente ao montante.
Pode ocorrer, ainda, a situação em que o tutor, curador ou responsável pela guarda opte por declarar o alimentando como seu dependente, já que por lei<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, existe a possibilidade de dedução de determinados tipos de gastos com os dependentes constantes na Declaração de Imposto de Renda. Nesse caso, a monta precisa ser incorporada à base de cálculo do IR devido pelo guardião.
A questão é que, enquanto o alimentante deduz da base de cálculo do imposto o valor integral da pensão paga a um filho, por exemplo, aquele que declara como dependente o mesmo filho, somente poderá deduzir anualmente, além dos valores referentes à educação e saúde, o montante de R$ 2.275,08, devendo, ainda, incorporar os valores pagos a título de pensão à sua declaração anual de imposto de renda, e sobre esses proventos pagar a alíquota compatível com a soma de seus proventos percebidos individualmente mais os alimentos percebidos pelo dependente.
A disparidade é evidente: aos alimentantes (que em sua expressiva maioria são homens<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>), a legislação concede o benefício de deduzir integralmente a pensão paga. Às mulheres (usualmente as detentoras da guarda dos filhos), o dever de cuidar, manter a guarda e, ainda, pagar tributos sobre ingresso financeiro que é integralmente destinado à subsistência do filho.
Em setembro foram rejeitados os Embargos de Declaração opostos pela União e o pleito de modulação dos efeitos da decisão embargada. Os Embargos questionaram a aplicação do entendimento da Corte de forma ilimitada independente do valor da pensão paga<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, além da aplicação em casos em que a pensão alimentícia é embasada em escritura pública<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Foi objeto dos embargos também, a existência de inconstitucionalidade, por arrastamento, dos arts. 4°, II; e 8º, II, “f”, da Lei 9.250/95, destacando-se a perda financeira aos cofres públicos de R$ 1,05 bilhão por ano e que, considerando o exercício atual e os cinco anteriores, a perda poderia chegar ao total de R$ 6,5 bilhões<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, pleito também rejeitado pelo Tribunal.
O caso da tributação das pensões alimentícias exemplifica perfeitamente como a cobrança dos tributos reflete as desigualdades sociais, em especial, as estruturais. É um exemplo claro de ratificação e acentuação desigualdade de gênero já enraizada entre nós. A escolha política de legislar em desfavor de um dos gêneros, a despeito do princípio irrevogável da isonomia, demonstra nitidamente o papel do direito na institucionalização dessa desigualdade.
Quando, portanto, as mães precisam incorporar os valores das pensões pensões às suas declarações anuais de Imposto de Renda e os pais são desonerados, não somente quanto à dedução de tal monta na base de cálculo, mas potencialmente na diminuição da alíquota a ser aplicada no cálculo do imposto, as mulheres sofrem uma escancarada distorção na tributação de seus proventos.
Há aqui um exemplo de legislação que não discrimina expressamente os contribuintes por gênero, mas que, quando interpretada e aplicada, fundamenta posicionamentos institucionais que afetam desfavoravelmente as mulheres.
Ora, a pensão alimentícia é destinada à subsistência da prole tanto quanto os rendimentos ordinários percebidos pelo guardião dos filhos. Permitir a dedução por parte do alimentante e demandar a incorporação por parte do responsável pela guarda dos alimentandos é uma afronta ao princípio da isonomia, tratando-se de legislação completamente inconstitucional, como acertadamente decidiu o STF.
A questão julgada aumentou os debates sobre este e outros temas que envolvem a desigualdade de gênero enraizada no sistema tributário. O papel de cuidado da prole ainda é atribuído majoritariamente às mulheres e essa atribuição carrega também um ônus tributário. Ao invés de beneficiar quem exerce tão relevante papel, o sistema tributário criado por legisladores homens, beneficia economicamente os papéis desempenhados pelos homens (in casu, por meio de benefícios fiscais a quem paga pensões alimentícias).
Vale destacar, nesse contexto, que a redução das desigualdades institucionalizadas passa pela atuação de mulheres também em âmbito legislativo. Contudo, é certo que, com o julgamento da ADI 5422, o Supremo Tribunal Federal deu mais um passo em direção à promoção da igualdade de gênero na aplicação da legislação tributária brasileira, especialmente por ter sido pautado expressamente na questão do gênero.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O STF deu ao art. 3º, § 1º, da Lei nº 7.713/88, aos arts. 4º e 46 do Anexo do Decreto nº 9.580/18, aos arts. 3º, caput e § 1º; e ao art. 4º do Decreto-lei nº 1.301/73 a interpretação conforme Constituição Federal para se afastar a incidência do imposto de renda sobre valores decorrentes do direito de família percebidos pelos alimentados a título de alimentos ou de pensões alimentícias.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Recursos especiais nºs 1.681.877 e 1.886.554, de relatoria do Min. Marco Aurélio Bellizze e Habeas Corpus nº 439.973 de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Artigo 4º, inc. II da Lei n º <a href="http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%25209.250-1995?OpenDocument">9.250</a>/1995.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Art. 35, inc. III da lei 9.250/95
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2019_v46_informativo.pdf
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> A União postulou que fossem considerados insuscetíveis de tributação apenas os valores pagos a título de pensões ou alimentos correspondentes ao piso de isenção do IRPF (hoje estabelecido no valor mensal de R$ 1.903,98).
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Apontou a União que as escrituras públicas podem ser utilizadas como instrumento de dissimulação para fins de evasão fiscal, destacando o argumento econômico de que “aproximadamente 60% das pensões formalizadas em escrituras públicas veiculam pagamentos que superam a faixa mais alta de tributação”.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> A Embargante ponderou a necessidade de se atribuir eficácia ex nunc ao acórdão embargado, citando as ADIs nºs 6019, 5353 e 4788-AgR-ED.

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JOTA

Legislação não discrimina expressamente, mas quando interpretada e aplicada, afeta desfavoravelmente as mulheres

A desigualdade de gênero refletida na tributação das pensões alimentícias

Legislação sobre pensões alimentícias não discrimina expressamente, mas quando interpretada e aplicada, afeta desfavoravelmente as mulheres