Opinião e Análise

Renato Toledo

No âmbito do <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2256735">PL 2630/2020</a> (apelidado PL das Fake News), um dos assuntos debatidos foi a possibilidade de criação de uma agência reguladora destinada a fiscalizar plataformas digitais. A despeito das controvérsias sobre a conveniência ou não de criação de uma entidade responsável para supervisionar as atividades na internet,<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> um dos tópicos vistos como óbices ao seguimento da proposta seria a ausência de iniciativa do Poder Executivo para o projeto de lei, o que impossibilitaria a criação de uma nova entidade pertencente à Administração Pública indireta.
De fato, o art. 61, §1º, inciso II da Constituição Federal confere ao chefe do Poder Executivo a competência privativa para inaugurar o processo legislativo que disponha sobre a organização administrativa e a criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica. O dispositivo, originário da Constituição de 1988, foi pensado em um contexto em que a Administração Pública seguia o arquétipo do Decreto-lei 200/1967, em que o desenho das instituições públicas era encarado sob a ótica dos processos de desconcentração e descentralização.
A organização administrativa, nesse contexto, era um elemento que se voltava à divisão funcional de competências, adotando uma dimensão precipuamente formal. Assim, fazia sentido que o chefe do Poder Executivo tivesse a competência privativa para deflagrar o debate sobre tais temas, dado que caberia a ele a função primária de organizar os órgãos e entidades a ele submetidos, impedindo que os demais Poderes pudessem interferir nessa seara.
No entanto, desde meados da década de 1990, o Brasil conviveu com sucessivas medidas de reforma administrativa que incorporaram ao Brasil a figura das agências reguladoras – entidades relativamente independentes da administração central, com autonomia reforçada, compostas por especialistas na matéria, com garantias de poder decisório insulado do processo político e dotadas de recursos financeiros e humanos próprios. A Administração Pública evoluiu de um modelo piramidal para outro policêntrico, com a presença de um grande número de instituições de diferentes desenhos, responsáveis pela conformação de setores econômicos e sociais.
Nesse contexto, uma estrutura organizacional sólida passa a ser encarada como verdadeira ferramenta de governança regulatória,<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> pois proporciona uma base institucional necessária para garantir a eficiência, a independência e a transparência necessárias na implementação das políticas públicas e na regulação de setores estratégicos. A organização administrativa passa a ter, assim, uma dimensão substantiva, em que os direitos tutelados pelo ordenamento só poderão ser atendidos de forma satisfatória caso sejam adotadas providências estatais com vistas à criação e à conformação de órgãos e entidades indispensáveis à sua efetivação.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Por isso, sempre que debatido um marco regulatório de grande relevância para a sociedade, é comum que surja no bojo do processo legislativo a criação de uma entidade com capacidade institucional adequada a lidar com temas complexos, ou a ampliação do feixe de atribuições de outra entidade já existente. Foi assim que ocorreu, por exemplo, com a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anpd">ANPD</a>) – inicialmente pensada como órgão da Administração Pública direta, mas posteriormente transformada em autarquia de regime especial, ante a necessidade de garantir maior governança à instituição. Contudo, quando tais marcos regulatórios são suscitados a partir de projetos de lei de iniciativa parlamentar, a discussão sobre uma entidade competente para lidar com o assunto pode vir a ser prejudicada, o que requer uma releitura das competências privativas do chefe do Poder Executivo para iniciativa de processos legislativos.
Uma possibilidade para o enfrentamento do problema é estabelecer que a competência privativa prevista no art. 61, §1º, inciso II seja interpretada restritivamente: apenas nos casos em que um projeto de lei versar de forma central e imediata sobre a organização administrativa, a criação de cargos ou de funções, a deflagração do processo legislativo deverá ser necessariamente do chefe do Poder Executivo. Quando, contudo, o delineamento de uma nova entidade ou a reconfiguração de competências de entidades pré-existentes decorrer de uma necessidade de conferir maior governança regulatória e promover, por conseguinte, maior proteção a um direito ou política pública que seja objeto central do PL, a iniciativa privativa não mais se colocará. Mutatis mutandis, essa foi a orientação adotada no âmbito da ADI 6696, relativa à autonomia do Banco Central, em que o ministro relator, Luís Roberto Barroso, afastou a necessidade da iniciativa presidencial para dar configuração a uma instituição de Estado que tem relevante papel como árbitro neutro, e cuja atuação não deveria estar sujeita a controle político unipessoal.
Outra possibilidade para o enfrentamento do problema seria a superação da histórica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a sanção do projeto de lei não convalida o vício de inconstitucionalidade resultante da usurpação do poder de iniciativa<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Segundo a nova interpretação proposta, a ulterior aquiescência do chefe do Poder Executivo, mediante sanção do projeto de lei, poderia vir a sanar o eventual vício da inconstitucionalidade de dispositivos específicos nos casos em que o tema central do projeto de lei sancionado não versar exclusivamente sobre a organização administrativa.
A importância da organização administrativa como instrumento de governança regulatória não pode ser negligenciada ou obstada dos processos legislativos. É necessário garantir ferramentas e segurança jurídica para que o Congresso Nacional venha a debater desenhos institucionais adequados para a regulação e a fiscalização de setores estratégicos, sem correr riscos de que tais leis venham a ser posteriormente declaradas inconstitucionais. Daí a necessidade cada vez mais urgente de uma nova leitura das competências privativas estabelecidas no art. 61, §1º, inciso II da Constituição.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> De um lado, as críticas quanto à criação de uma autoridade do gênero envolviam um receio de haver um “Ministério da Verdade”, com riscos de interferência ideológica e remoção de conteúdos de opositores, a despeito de o PL não prever tal competência (v. <a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/04/relator-cede-e-retira-do-pl-das-fake-news-agencia-para-fiscalizar-plataformas.shtml">https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/04/relator-cede-e-retira-do-pl-das-fake-news-agencia-para-fiscalizar-plataformas.shtml</a>). De outro, doutrinadores como Diogo Coutinho e Beatriz Kira defendem que o estabelecimento de um novo marco regulatório para a internet demanda a criação de uma entidade reguladora responsável por fazer cumprir suas disposições (v. <a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/04/relator-cede-e-retira-do-pl-das-fake-news-agencia-para-fiscalizar-plataformas.shtml">https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/04/relator-cede-e-retira-do-pl-das-fake-news-agencia-para-fiscalizar-plataformas.shtml</a>).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Dentre as recomendações da OCDE sobre política regulatória e governança, é descrita a necessidade de estabelecer mecanismos e instituições para supervisionar ativamente os procedimentos da política regulatória e seus objetivos, apoiar e implementar a política regulatória, a fim de propiciar maior confiança de que as decisões são tomadas de maneira objetiva, imparcial e consistente, sem conflito de interesse ou influência indevida (v. OCDE, Recommendation of the Council on Regulatory Policy and Governance, 2012).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> No Supremo Tribunal Federal, defende-se a existência de “direitos a organização e procedimento”, decorrentes da dimensão objetiva dos direitos fundamentais (v., por todos: STA 419, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 22/04/2010).
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Nesse sentido: ADI 2.867, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 09/02/2007; ADI 2.305, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 05/08/2011; e ADI 6.337, Rel. Min. Rosa Weber, DJ de 22/10/2020.

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JOTA

Uma proposta de interpretação restritiva da iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo

Governança regulatória e organização administrativa

Uma proposta de interpretação restritiva da iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo