Jacintho Arruda Câmara
Professor doutor da PUC-SP e vice-presidente da SBDP
A MP 1.065, editada no último 30 de agosto, disciplinou a exploração do transporte ferroviário por meio de autorizações. Para muitos, associar autorização com serviços públicos desta magnitude seria uma heresia.
Eis uma reação típica de quem tem pouco contato prático com o tema. O repúdio está escorado na idealização da concessão como única forma para delegação de serviço público a particulares, por ser dotada de regime jurídico de direito público, capaz de oferecer ao poder concedente instrumentos fortes de intervenção sobre o concessionário (dever de continuidade, regime tarifário, reversibilidade de bens).
Nesta concepção, as autorizações, nos serviços públicos, só caberiam como instrumentos precários, destinadas a atender situações pontuais, transitórias. Elas seriam mesmo talhadas para a livre iniciativa, em regime de direito privado, supostamente por conferir maior liberdade aos agentes (preço livre, propriedade sobre bens afetados aos serviços).
Daí criticarem a autorização para serviços públicos relevantes. Algo que, além da incorreção técnica, prejudicaria o interesse público.
A ordem jurídica contemporânea contradiz essa narrativa. As concessões se notabilizam por proporcionar robusta proteção ao investimento privado. Sua lei de regência tece complexa teia normativa capaz de conferir segurança e condições especiais de recuperação do investimento privado: direito à preservação do equilíbrio econômico-financeiro, pagamento de indenização pelos investimentos não amortizados ao final da concessão, por exemplo. Essa proteção especial se justifica para atrair investimento privado em serviços públicos.
Em certos serviços públicos, porém, investidores estão dispostos a assumir riscos maiores. A legislação, para esses casos, tem admitido a autorização. Nesse contexto as autorizações são estáveis, não têm nada de precárias.
O modelo preserva o poder da regulação estatal, mas reduz a proteção econômica ao investimento privado. Isso tem ocorrido há décadas em segmentos abertos à competição, como telecomunicações, portos, produção de energia elétrica e, mais recentemente, ferrovias.
Autorizações de serviço público vêm sendo adotadas nos últimos 25 anos, sem que se sinta falta de maior intervenção estatal. Exemplo ilustrativo de sua viabilidade vem das telecomunicações. Redes de fibra óptica e de telefonia móvel, por exemplo, foram criadas com base em autorizações.
As empresas assumem os riscos do empreendimento sem garantias econômicas típicas da concessão. A disputa pelo mercado tem assegurado a expansão dos serviços e a prática de preços razoáveis.
O setor ferroviário buscou essa inspiração: criar possibilidades de investimento privado com menor exposição a risco do poder público. Oxalá a alternativa promova o desenvolvimento aguardado. O sucesso do modelo depende da comprovação da existência de interessados. Mas fiquemos tranquilos, o interesse público não ficará desamparado com o regime de autorização.