Que o papel aceita qualquer argumento jurídico é da natureza tanto do direito quanto do papel. Também não espanta a ninguém que qualquer governo, por pior que seja, conte com juristas de estimação. Em regra, trata-se de mistura de autointeresse, autoengano, e, às vezes, daquele ar de antagonismo, que, necessário em certos casos, em outros vira puro espírito de porco. De igual modo, juristas também podem rápidos mudar de posição: o centrista de ontem vira o liberal de hoje e poderá se tornar o progressista de amanhã. É do jogo.
A história traz exemplos de tudo isso. Positivismo e antipositivismo funcionam ora na chave liberal, ora na antiliberal. “O juiz deve libertar-se da escravidão do direito positivo.” Parece frase inofensiva de professor de sociologia jurídica – é trecho de sentença nazista[1]. Para continuar no exemplo do nazismo, muitos publicistas germânicos, com destaque para Carl Schmitt, aderiram ao regime, e, na queda, reinventaram-se. Rodrigo Valadão, especialista no tema, é taxativo: “A maior parte dos juristas responsáveis pela edificação da Nova República eram exatamente os mesmos que manifestaram irrestrito apoio ao regime nazista”[2].
Mas foquemos em nossos dramas bananeiros. Pois bem: não é exagero afirmar que, durante o governo Bolsonaro, formou-se um arremedo de direito bolsonarista. Entre lives, livros, artigos, pareceres e posts, o corpus iuris bolsonarium advogou uma exegese autoritária do direito público, focada na transcendência da figura do chefe do Executivo. Todos os poderes dever-lhe-iam submissão, eis que sua legitimidade decorria tanto do pleito popular quanto, sobretudo, de sua adesão/acesso imediato ao espírito das “pessoas de bem”.
O papel do direito era triplo: (i) blindar a autoridade, sempre às voltas, segundo a narrativa, com a perseguição de uma institucionalidade capturada pelo inimigo; (ii) viabilizar ataques – por exemplo, por meio do manejo da relação de sujeição especial de direito administrativo contra professores universitários; (iii) fornecer argumentos de combate na guerra cultural (v.g., Forças Armadas não são um elemento de defesa da soberania, mas um “poder moderador”).
Ora: se ideias têm consequências, consequências também têm idealizadores. Vejamos então estes. Qual será a responsabilidade dos juristas bolsonaristas quando – como foi o caso no 8 de janeiro – uma interpretação absurda do art. 142 da Constituição da República, por eles construída e professada como argumento de fé, serve como leitmotiv explícito para uma tentativa de golpe? Não se trata de criminalizar opiniões, tampouco de impedir que pessoas possam mudar de ideias (é bom que, estando erradas, façam-no). Pergunto-me sobre a responsabilidade no plano moral: o jurista bolsonarista autoritário vai sair dessa com a cara limpa? Vai voltar à fantasia de paterfamilias moderadão? Enquanto o Brasil queima, o antiliberal militante já está podendo pagar de bonito no clubinho dos juristas? Cartas para a redação.
[1] MAUS, Ingeborg. O Judiciário como Superego da Sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade órfã’. Novos Estudos Cebrap, n. 58, p. 194.
[2] VALADÃO, Rodrigo. Positivismo jurídico e nazismo: formação, superação e refutação da lenda do positivismo. Ed. Contracorrente, 2020.