
A impressionante massa de dados sobre controle judicial da administração, trazida por pesquisa capitaneada por Daniel Wang (FGV Direito SP) e Natália Pires de Vasconcelos (INSPER), divulgada aqui no JOTA, revelou um desafio.
A legalidade administrativa é a base do Estado de Direito. Gestores públicos têm que seguir as leis. Mas o senso comum no Brasil é que, no geral, eles tenderiam à ilegalidade. Ao contrário, controladores públicos agiriam para a defesa das leis. Certo?
Em 2016, só a União forneceu R$ 1,3 bilhões em medicamentos por ordem judicial. Em dois anos anteriores, 150 mil tratamentos médicos haviam sido pedidos ao Judiciário. Serão tantas assim as ilegalidades? Bem, a pesquisa mostrou que o Sistema Único de Saúde (SUS) é processado justamente por quem quer passar por cima das leis que impedem o fornecimento de medicamentos sem o registro sanitário da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e sem a avaliação científica, econômica e de saúde da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).
E como reage o Judiciário? Eis a conclusão dos pesquisadores, com os dados em mãos: “em matéria de saúde o Judiciário desconsidera as escolhas administrativas, mesmo quando feitas por um corpo técnico especializado e por meio de um procedimento informado por evidência, transparente e aberto à participação social. Esses achados põem em xeque as expectativas daqueles que apostam que a judicialização da saúde pode ser resolvida se o SUS fosse mais rigoroso e transparente na forma como decide. O Judiciário parece não ter interesse em saber como a política da saúde é feita.”
Os fatos estão desmentindo o senso comum. Mesmo com leis prestigiando a ciência e a técnica, o Judiciário parece ter perdido o encanto pela legalidade administrativa.
O fenômeno pode não estar restrito à saúde pública: é caótica a intervenção judicial também em áreas como previdência, servidores e finanças públicas.
Problema adicional é que controladores desconfiam das discussões sobre seu desempenho e possíveis melhorias. Eles parecem convictos de que os problemas estão todos nas leis e nas administrações públicas. E creem que o remédio seria seguir ampliando os poderes deles próprios. Prova é a reação emocional contra os atuais projetos de mudança na Lei de Improbidade Administrativa. Foi assim também com a nova Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB), em 2018, atacada – felizmente sem sucesso – por lideranças do controle de contas, do Ministério Público e da magistratura.
O que a realidade sugere? As administrações públicas precisam ter mais meios para proteger a legalidade dos repetidos voluntarismos de controladores – sem, claro, destruir o controle público.
Soluções internas aos controles têm sido insuficientes. Que tal discutir alternativas? Em artigo recente aqui na coluna Publicistas, meu colega Eduardo Jordão divulgou hipótese sobre a qual nós dois temos trabalhado. Será viável reconhecer às administrações públicas um direito à “legítima defesa administrativa da legalidade”, em certos casos de “ilegalidade manifesta” dos que deveriam protegê-la? Explorar esse caminho pode nos levar ao equilíbrio.
O episódio 46 do podcast Sem Precedentes discute se o contrato de trabalho intermitente é ou não constitucional. Ouça: