Opinião e Análise

André Luiz Fonseca Fernandes

O debate sobre tributação e gênero vem sendo ampliado no país<a href="applewebdata://CF034406-F5EC-4B23-9445-B916E113C811#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> à luz da consideração de que a política tributária opera, como toda política econômica, num mundo construído sobre desigualdades de gênero, de raça e de classe<a href="applewebdata://CF034406-F5EC-4B23-9445-B916E113C811#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. E é fundamental desenhar a política tributária para que as estruturas tributárias em vigor não apenas deixem de reforçar as desigualdades de gênero existentes mas, sobretudo, contribuam para revertê-las.
Para fazê-lo, é necessário levar em consideração questões como (i) a existência de vieses explícitos e implícitos de discriminação de gênero (prejudiciais às mulheres) na legislação tributária; e (ii) o papel da extrafiscalidade e da seletividade como medidas de auxílio para mitigar e superar a desigualdade de gênero. São estas as questões que vêm pautando, em grande parte, as discussões sobre o tema no país<a href="applewebdata://CF034406-F5EC-4B23-9445-B916E113C811#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>
O objetivo deste artigo é chamar a atenção para um ponto que não tem aparecido com frequência nas discussões, mas que é importante para que elas sejam levadas adiante: o reconhecimento de que há diversos instrumentos internacionais de direitos humanos que são relevantes para o redesenho da política tributária sob uma perspectiva de combate à desigualdade de gênero.
De fato, é indispensável repensar a tributação com base em tais instrumentos de direitos humanos. Vale a pena citar, em primeiro lugar, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas em 19/12/1966 e que entrou em vigor no Brasil em 24/4/1992 (Decreto nº 591/1992).
O Art. 2.1 do citado Pacto determina que os Estados devem mobilizar o máximo de recursos disponíveis para a realização progressiva de direitos humanos. O <a href="https://undocs.org/A/HRC/26/28" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Relatório</a> de Magdalena Sepúlveda Carmona – Relatora Especial das Nações Unidas para Pobreza Extrema e Direitos Humanos – de 22/5/2014 mostra como a política tributária pode auxiliar na concretização de direitos humanos no sentido determinado pelo Pacto, limitando a discricionariedade dos Estados na formulação de políticas tributárias:
“(...) Entretanto, uma ampla variedade de tratados internacionais, como o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Convenção sobre os Direitos da Criança, impõe limites à discricionariedade dos Estados na formulação de políticas tributárias. Para assegurar que os Estados respeitem, protejam e cumpram direitos e para auxiliá-los na abertura de espaço no orçamento rumo à realização de direitos humanos, as políticas tributárias devem ser guiadas pelas obrigações impostas por estes tratados.”<a href="applewebdata://CF034406-F5EC-4B23-9445-B916E113C811#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Cabe, assim, à política tributária atuar para mobilizar o máximo de recursos disponíveis para realizar progressivamente os direitos humanos, o que inclui o combate à desigualdade de gênero. Este aspecto fica mais evidente na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher. Criada no âmbito da Assembleia-geral da ONU em 1979, ela entrou em vigor no Brasil em 2/3/1984 e é objeto do Decreto nº 4.377/2002. É o primeiro tratado internacional que dispõe amplamente sobre os direitos humanos das mulheres e que objetiva eliminar a discriminação de gênero.
O art. 17.1 da referida Convenção criou o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, composto atualmente de “vinte e três peritos de grande prestígio moral e competência na área abarcada pela Convenção.” Este Comitê tem, entre outras funções, a de analisar os relatórios apresentados periodicamente pelos Estados sobre os problemas e os sucessos alcançados na concretização da Convenção, com a elaboração de recomendações específicas.
É interessante notar que as <a href="https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CEDAW/C/CHE/CO/4-5&amp;Lang=En" target="_blank" rel="noopener noreferrer">recomendações</a> específicas do Comitê em relação à Suíça (novembro de 2016) incluíram a de considerar e avaliar os efeitos extraterritoriais de suas políticas tributárias no que concerne a outros países – como a erosão de base tributária e a subsequente diminuição de arrecadação - e as consequências que isto produz quanto à concretização dos direitos humanos das mulheres em tais países<a href="applewebdata://CF034406-F5EC-4B23-9445-B916E113C811#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Trata-se de recomendação que o Comitê vem estendendo a outros países (como <a href="https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CEDAW/C/LUX/CO/6-7&amp;Lang=En" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Luxemburgo</a>) e que revela preocupação com a atuação de paraísos fiscais e/ou países com estrutura facilitadora de uma elisão tributária considerada “excessiva” ou mesmo de evasão tributária, e com os reflexos sobre a arrecadação de outros países, que (i) perdem receitas indispensáveis à concretização de direitos humanos das mulheres; e que (ii) para compensar a perda de receitas, acabam aumentando, em geral, a tributação sobre o consumo, mais regressiva e que onera desproporcionalmente as mulheres.
<blockquote class="jota-article__eye">Isto leva necessariamente a uma reflexão sobre a reavaliação das regras de tributação internacional, sobretudo de elisão tributária.</blockquote>
Não parece ser possível continuar a conviver, numa perspectiva que deve considerar a necessidade de combate à desigualdade de gênero, com um sistema que, de acordo com o Relatório <a href="https://www.taxjustice.net/reports/the-state-of-tax-justice-2020/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">State of Tax Justice 2020</a> da Tax Justice Network (novembro/20) mostra que os países estão perdendo mais de 427 bilhões de dólares por ano com elisão ou com evasão tributárias.
O caminho parece estar, como sustenta Chiara Capraro, numa revisão completa das regras globais de tributação, sob os auspícios da ONU e por meio de um Órgão Tributário Global, provido de recursos e com expertise, inclusive, em direitos humanos e igualdade de gênero, que leve em consideração a necessidade de financiamento adequado para a concretização destes direitos. Um órgão que também considere e avalie os efeitos extraterritoriais de políticas tributárias de determinados países em relação a outros países, como a erosão de base tributária e a subsequente diminuição de arrecadação e de possibilidade de efetivação dos direitos humanos das mulheres em tais países<a href="applewebdata://CF034406-F5EC-4B23-9445-B916E113C811#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
O persistente problema da desigualdade de gênero, e as graves consequências que ele acarreta, exigem uma visão mais ampla da tributação. A existência de receitas estatais suficientes é indispensável para concretizar políticas públicas que combatam tal desigualdade. Uma perspectiva diferenciada da tributação<a href="applewebdata://CF034406-F5EC-4B23-9445-B916E113C811#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> pode prover o Estado destas receitas, mediante o necessário redesenho da política tributária sob o ponto de vista da efetivação dos direitos humanos das mulheres.
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<a href="applewebdata://CF034406-F5EC-4B23-9445-B916E113C811#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Graças, em boa medida, aos esforços de movimentos como o WIT – Women in Tax Brazil e o Tributos a Elas e ao pioneiro trabalho que vem sendo desenvolvido pelo grupo de estudos “Tributação e Gênero” do Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da FGV Direito SP (<a href="https://direitosp.fgv.br/nucleo-de-pesquisas/nucleo-de-direito-tribut%C3%A1rio-do-mestrado-profissional">https://direitosp.fgv.br/nucleo-de-pesquisas/nucleo-de-direito-tribut%C3%A1rio-do-mestrado-profissional</a>).
<a href="applewebdata://CF034406-F5EC-4B23-9445-B916E113C811#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> CAPRARO, Chiara. Women's Rights and Fiscal Justice. SUR - International Journal on Human Rights. v. 13, n. 24. pp. 17-26. 2016. Disponível em: <a href="https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3021958">https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3021958</a>. Acesso em: 20/4/21.
<a href="applewebdata://CF034406-F5EC-4B23-9445-B916E113C811#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Cf. PISCITELLI, Tathiane et al. Tributação e gênero. Jota. 3 mai. 2019. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/tributacao-e-genero-03052019">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/tributacao-e-genero-03052019</a>. Acesso em: 20/4/21. Cf. ainda, entre outros, DOMINGUES JÚNIOR, William do Val. Tributação e gênero. Jota. 27 ago. 2020. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/pauta-fiscal/tributacao-e-genero-2-27082020">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/pauta-fiscal/tributacao-e-genero-2-27082020</a>. Acesso em: 21/4/21, ROCHA, Sergio André. Discriminações de gênero e tributação: uma abordagem estrutural. Jota. 27 dez. 2020. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/discriminacoes-de-genero-e-tributacao-uma-abordagem-estrutural-27122020">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/discriminacoes-de-genero-e-tributacao-uma-abordagem-estrutural-27122020</a>. Acesso em: 20/4/21 e AVANSINI, Ariana. No mês das mulheres que tal falarmos de justiça fiscal e desigualdade de gênero? Jota. 19 mar. 2021. Disponível em:<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/women-in-tax-brazil/no-mes-das-mulheres-que-tal-falarmos-de-justica-fiscal-e-desigualdade-de-genero-19032021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/women-in-tax-brazil/no-mes-das-mulheres-que-tal-falarmos-de-justica-fiscal-e-desigualdade-de-genero-19032021</a>. Acesso em: 21/4/21.
<a href="applewebdata://CF034406-F5EC-4B23-9445-B916E113C811#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Tradução livre do original em inglês: “However, a wide range of international treaties, such as the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights and the Convention on the Rights of the Child, impose limits on the discretion of States in the formulation of fiscal policies. In order to ensure that States respect, protect and fulfil rights and to assist them in opening fiscal space towards the realization of human rights, fiscal policies must be guided by the obligations imposed by these treaties.”
<a href="applewebdata://CF034406-F5EC-4B23-9445-B916E113C811#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> É o que decorre dos itens 40, (c) e 41, (a) das <a href="https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CEDAW/C/CHE/CO/4-5&amp;Lang=En">recomendações</a>.
<a href="applewebdata://CF034406-F5EC-4B23-9445-B916E113C811#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> CAPRARO, Chiara. Ibidem. p. 23.
<a href="applewebdata://CF034406-F5EC-4B23-9445-B916E113C811#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Esta perspectiva diferenciada de tributação pode ser vislumbrada, por exemplo, na <a href="https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-8-2019-0014_PT.html">Resolução</a> do Parlamento Europeu, de 15/1/2019, sobre a igualdade de gênero e as políticas fiscais na EU (2018/2095(INI)).

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JOTA

Instrumentos internacionais de direitos humanos são relevantes para o redesenho da política tributária


Tributação e gênero: uma perspectiva à luz dos direitos humanos

Instrumentos internacionais de direitos humanos são relevantes para o redesenho da política tributária