Ao longo deste último um ano e meio, o tema da transação tributária vem ganhando destaque, sendo objeto de recorrentes notícias e debates. Uma dessas notícias, que circulou recentemente nos sites[3] e mídias sociais, refere-se à decisão judicial que suspendeu dispositivo regulamentar que estipula valor mínimo para a transação tributária individual da dívida ativa da União.
A Associação Brasileira dos Contribuintes impetrou mandado de segurança coletivo[4] buscando assegurar o direito a essa modalidade de transação individual por dívida inscrita cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 15 milhões.
A Juíza Federal da 9ª Vara Cível da Seção Judiciária de São Paulo deferiu a liminar[5], afastando o artigo 4º, §1º, da Portaria PGFN nº 9.917/2020[6] e permitindo a celebração da transação individual em patamares inferiores, ao fundamento de que referida norma teria inovado e extrapolado os regulares efeitos da Lei nº 13.988/2020, criando uma limitação que não existia na Lei do Contribuinte Legal, o que acabaria por violar o princípio da legalidade.
Segundo a decisão, os artigos 2º e 10º da Lei nº 13.988/2020 preveem as hipóteses de transação dos créditos em dívida ativa (adesão e por proposta individual), mas não estabelecem qualquer limite ou condição para sua utilização. Portanto, a previsão regulamentar – via Portaria – de que a transação por proposta individual somente seria possível para débitos superiores a R$ 15 milhões era, de fato, inovação violadora da legalidade. [7]
Para legitimar tal entendimento, a referida decisão se apoiou em alguns precedentes, inclusive do Superior Tribunal de Justiça (STJ)[8], os quais reconheceram a ilegalidade de Portaria da Receita Federal do Brasil que limitou o valor dos débitos passíveis de inclusão no parcelamento simplificado (igual ou inferior a R$ 1.000.000,00), uma vez ter criado restrição que a lei não previa. Chamamos aqui especial atenção para a expressa conclusão na decisão de que ora se trata de que uma Portaria “não pode impor condição limitadora ao benefício fiscal” [sic].
Pois bem, parece-nos haver duas questões em debate, a saber: (i) se a transação caracteriza favor ou benefício fiscal, e (ii) a extensão do poder regulamentar da Administração Pública e sua validade frente ao princípio da legalidade.
Quanto ao primeiro ponto, cabe endereçar a natureza jurídica da transação tributária, prevista no artigo 171, do CTN, e regulamentada pela Lei 13.988/20 em nível federal. A transação tributária é acordo que pressupõe concessões mútuas que resultem na terminação do litígio e extinção do crédito tributário. Nesse contexto, não se equipara a um benefício fiscal justamente por haver concessões de lado a lado e, especialmente da forma em que prevista na Lei 13.998/20, por focar na recuperação de dívidas classificadas como de baixa expectativa de recuperabilidade.
Oportuno mencionar, aliás, que o Poder Legislativo já assinalou que a transação tributária não implica renúncia ou favor fiscal (art. 3º da Lei Complementar 174/2020). Já o Supremo Tribunal Federal (STF) demonstrou, por sua vez, que a transação tributária não se confunde com benefício fiscal (STF: ADI 2405/RS). Trata-se, como determina o art. 156, III, do CTN, de meio de extinção do crédito tributário.
Portanto, parece-nos não se tratar de hipótese de imposição limitadora a benefício fiscal, mas de eleição de regras que reflitam as concessões que a Administração Pública está disposta a fazer diante da sua efetiva estrutura organizacional e da sua capacidade.
Não discordamos, porém, que esse patamar possa (e inclusive deva) ser reavaliado de acordo com as diferenças regionais, seja nas estruturas da Administração Pública local (o que abrange especialmente número de procuradores aptos a transacionarem), seja também na dimensão das dívidas dos contribuintes, sob pena de que eventual “calibragem” equivocada desse valor de fato esvazie o instituto, o que se mostra como uma preocupação bastante legítima.
Já quanto ao segundo ponto, trata-se de matéria relevante tanto para o Direito Administrativo, como para o Direito Tributário, em razão do previsto no art. 150, II, da Constituição da República. Ressalvado o convencimento particular dos autores deste artigo, não se pode ignorar uma tendência mais recente de crescimento de corrente doutrinária que defende que, no atual estágio do Estado Democrático de Direito, não há mais espaço para uma “legalidade exauriente”, mas, sim, uma “legalidade suficiente”[9], o que, de certa forma, vem sendo, aos poucos, aceita pelo Supremo Tribunal Federal, desde os tempos do caso do SAT, até a recente decisão plenária que, por ampla maioria, legitimou a redução e majoração das alíquotas de PIS e COFINS sobre receitas financeiras pela via de decreto[10].
É claro que essa mudança de paradigma é passível de crítica, mas não pode deixar de ser ponderada neste artigo, sob pena de parcialidade.
A atribuição de poder normativo ao Executivo tende a conferir eficiência necessária à dinâmica da Administração Pública. Muitas vezes, seja por questões de juízo técnico como de conveniência e oportunidade, a Administração Pública (inclusive a tributária) pode necessitar de uma “área de manobra” que a legalidade forma e estática não permite.
Nesse espírito, há diversas decisões do STJ que legitimam o poder normativo e regulador do Executivo, inclusive em matéria de sanção administrativa[11].
Não identificamos, contudo, essas ponderações acima sintetizadas na decisão judicial proferida. Além disso, causa estranheza não ter sido considerado o artigo 14, da Lei 13.988/2019, que prevê expressamente que ato do Procurador-Geral da Fazenda Nacional disciplinará, entre outras coisas, “as situações em que a transação somente poderá ser celebrada por adesão, autorizado o não conhecimento de eventuais propostas de transação individual”. Tal dispositivo expressamente prevê a delegação normativo à PGFN para tratar do assunto, dando legitimidade ao previsto no artigo 4º, §1º, da Portaria PGFN nº 9.917/2020; de modo que, para fins de manutenção de sua coerência interna, a discussão deveria ter passado pelo exame da constitucionalidade ou não também deste dispositivo.
Já encaminhando para a conclusão, entendemos que todas essas considerações não podem passar ao largo da reflexão sobre os contornos da preservação da isonomia, o que envolve necessariamente também juízos de proporcionalidade e razoabilidade.
Será que a estipulação de um critério de valor para a dívida é um discrímen legítimo para conferir tratamento diferenciado aos contribuintes devedores? Por que um contribuinte com débito superior a R$ 15 milhões pode ter mais uma via para a solução dos seus problemas enquanto o outro, que pode estar em situação de penúria e dificuldade muito maior que o primeiro devedor, não pode lançar mão dessa via?
Além disso, atenderia também à igualdade a estipulação de um mesmo patamar para contribuintes localizados em todas as regiões do Brasil? Se benefícios fiscais podem ser, de alguma forma, personalizados ou regionalizados, por que as regras de transação também não poderiam ser? Afinal, R$ 15 milhões de um contribuinte em São Paulo ou Minas Gerais tende a ser uma realidade bem diferente de um contribuinte no Maranhão ou no Tocantins.[12]
Temos ciência que tal modalidade de transação ainda precisa ser melhor testada e que a sua abertura, para qualquer contribuinte, pode não ser viável na prática, inclusive pela falta de estrutura humana da PGFN. Reconhecemos também que a Administração Pública possui margem para concretizar as medidas de eficiência na recuperação do crédito tributário. Contudo, a aferição da isonomia, o que envolve juízos de proporcionalidade e razoabilidade, não pode ser desconsiderada. Ainda que a isonomia não seja quebrada, medidas que busquem maior justiça fiscal merecem consideração.
De todo modo, o modelo da transação tributária, em especial a individual, deve ser constantemente pensado, debatido e aprimorado, permitindo que se caracterize como mecanismo de célere adaptação, pois, afinal, os modelos econômicos e gerenciais são dinâmicos, não estáticos.
[3]https://www.conjur.com.br/2021-mai-31/juiza-suspende-norma-pgfn-limitou-transacao-tributaria
[4] Processo nº 5017071-40.2020.4.03.6100.
[5] https://www.conjur.com.br/dl/juiza-suspende-norma-pgfn-limitou.pdf
[6] ”A transação de débitos inscritos em dívida ativa da União cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais) será realizada exclusivamente por adesão à proposta da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, sendo autorizado, nesses casos, o não conhecimento de propostas individuais.”
[7] Assim, consta na decisão: “Uma vez que a Lei nº 13.988/2020, que dispõe sobre a referida transação, em seu artigo 10, não impõe limites de valores para concessão do benefício fiscal, nem delega à Administração Tributária a atribuição de impor limites de valores de débitos possíveis de transação (exceto transação por adesão no contencioso tributário de pequeno valor – artigo 23, I), não há como uma portaria ou instrução normativa inovar onde a lei ordinária não o fez. Assim, não pode impor condição limitadora ao benefício fiscal no tocante ao valor do débito tributário para adesão à respectiva transação, sob pena de violação ao princípio da reserva legal em matéria tributária.”
[8] Por exemplo, REsp 1.506.175-PR, da Relatoria do Ministro Herman Benjamin, DJe 20/04/2015, cuja ementa foi transcrita na decisão que deferiu a liminar.
[9] Terminologia usada por Marco Aurélio Greco. Vide GRECO, Marco Aurélio. Três papéis da Legalidade Tributária. In RIBEIRO, Ricardo Lodi; ROCHA, Sérgio André. Legalidade e Tipicidade no Direito Tributário. Rio de Janeiro: Quartier Latin, 2008, p. 101-110.
[10] RE 1.043.313, rel. Min. Dias Toffoli, j. 10/12/2020, Tema 939 da Repercussão Geral, em que foi fixada a seguinte tese: “É constitucional a flexibilização da legalidade tributária constante do § 2º do art. 27 da Lei nº 10.865/04, no que permitiu ao Poder Executivo, prevendo as condições e fixando os tetos, reduzir e restabelecer as alíquotas da contribuição ao PIS e da COFINS incidentes sobre as receitas financeiras auferidas por pessoas jurídicas sujeitas ao regime não cumulativo, estando presente o desenvolvimento de função extrafiscal”.
[11] Vide, por exemplo, REsp 883.844/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/08/2009, DJe 27/04/2011.
[12] Essa é uma ideia levantada por André Luiz Fonseca Fernandes, membro-pesquisador do grupo de ADRs em Questões Tributárias no núcleo da FGV São Paulo.