O feminismo tem se estabelecido nos últimos anos muito mais como um modo de vida do que simplesmente como uma categoria de pensamento filosófico e político. Hoje não seria inadequado dizer que o pensamento feminista está tão avançado, difundido e discutido que devemos nos referir ao termo no plural, dada a sua multivocalidade, expansão e redimensionamento em grupos situados em localizações sociais bastante distintas. Não há mais um único feminismo. Muitas vertentes podem ser mencionados aqui, como os feminismos da diferença, que englobam feminismo negro, feminismo indígena, transfeminismo, feminismo lésbico, feminismo protestante, feminismo asiático. Feminismos outros como feminismo decolonial, ecofeminismo, feminismo marxista, feminismo liberal, dentre muitos outros. Para quem se interessa por compreender melhor o tema, recomendo a obra Explosão Feminista[2] de Heloisa Buarque de Hollanda bem como a coleção Pensamento Feminista[3] coordenada pela mesma autora.
Há feminismos, teorias enunciadas a partir de corpos situados em condições sociais, políticas, epistêmicas, econômicas, geográficas e culturais múltiplas e que anunciam perspectivas diversas acerca de marcadores de opressão que se acumulam, se atravessam e se reconfiguram em franco diálogo com a posição de enunciação de quem promove e conduz o debate.
Esses feminismos possuem vasto âmbito de abrangência e muitas distinções em suas especificidades, mas também há pontos de contato que permitem uma confluência de interesses que guardam forte relação com propósitos emancipatórios, igualitários e de melhores condições sociais, econômicas, identitárias, raciais, sexuais, etárias, de capacidade e de gênero.
Nesta vasta gama de interesses e possibilidades que alçam o debate feminista para a pauta do dia, de todos os dias, os assuntos fiscais não estão de fora. Não é de hoje que feministas se interessam por questões tributárias. Entretanto, de uns anos para cá, pode-se perceber uma ampliação considerável do interesse de mulheres e homens tributaristas pela intersecção entre feminismo, tributação e orçamento. Este fenômeno está bastante atrelado a uma inserção cada vez mais robusta do pensamento feminista na academia, através de um enorme esforço de teóricas feministas que vem trabalhando há décadas para ocuparem o espaço de poder que dá suporte para a produção científica.
No campo do direito as teorias feministas começam a provocar fissuras incontornáveis e a evidenciar problemas que não são recentes, mas que não ocupavam o centro do repertório canônico de estudos e debates que os acadêmicos e práticos do direito tributário estavam interessados em perpetuar.
Tributaristas feministas jogam luz sobre temáticas e abordagens que a tradição tributária, fortemente marcada pelo patriarcado, não considerava como preocupações válidas ou mesmo legítimas.
Ainda hoje é comum encontrar tributaristas, que contra-argumentam em favor da tradição, alegarem que a análise da tributação pela perspectiva exclusiva de classe já seria suficiente para dar conta da materialização dos preceitos constitucionais, do que está previsto no Sistema Tributário Nacional disposto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Mas será que isso é verdade? Feministas defendem que não é. A categoria da “classe” não é suficiente para alcançar os ideais sociais, econômicos, políticos, igualitários e emancipatórios pelos quais anseiam estas mulheres e homens feministas. É necessário se fazer uso de uma metodologia interseccional no direito tributário através da qual se implemente uma investigação e práxis crítica, como ensinam Patricia Hill Colins e Sirma Bilge na obra Interseccionalidade[4].
O direito tributário precisa interseccionar, no mínimo, classe, raça, gênero e tributação para que consiga perceber-se como agente opressor contributivo para os acentuados índices de desigualdades que imperam em nosso país. Enquanto o sistema tributário nacional for lido, estudado e praticado em apartado de uma investigação interseccionalmente crítica, as mudanças socioeconômicas necessárias para uma emancipação saudável de nossa sociedade das amarras coloniais, patriarcais, racistas e sexistas estará distante em nosso horizonte.
Neste diapasão, considero necessário e viável que comecemos a projetar uma restruturação do Sistema Tributário Nacional, de modo a transformá-lo e condicioná-lo a atuar sobre outros eixos, para além dos tradicionalistas que até aqui conduziram a teoria e a práxis no direito tributário. Mas para isso uma questão precisa ser posta sobre a mesa: Como organizar um Sistema Tributário que respeite a dinâmica feminista?
Não há uma única resposta para essa pergunta. Uma das respostas possíveis é: estabelecendo dinâmicas de tributação que remanejem a carga tributária de modo a deslocá-la dos pontos de tensão econômico-sociais. Revisando as leituras que existem sobre temas predominantes na seara tributária a partir de uma lente interseccional. Produzindo alterações legislativas que materializem estratégias inclusivas, feministas e antirracistas, minimizando os impactos de uma lógica tributária que acentua desigualdades ao invés de reduzi-las.
Todas essas alternativas dispostas acima podem e devem ser acopladas a muitas outras que precisam ser elaboradas pelos vários feminismos. Este artigo aqui é só um breve convite à reflexão e ao aprofundamento no debate. Afinal de contas, um Sistema Tributário Feminista só será construído no coletivo, na reflexão e na produção conjunta e transformadora.
[2] HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
[3] Coleção publicada pela Bazar do Tempo.
[4] COLLINS, Patricia Hill. BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021.