Opinião e Análise

Daniela Olímpio de Oliveira

Em muitas ocasiões, no debate democrático, diante de uma enormidade de interesses divergentes e posições políticas historicamente marcadas, corre-se o risco do esvaziamento discursivo, ou o debate pelo debate, com descurada finalidade constitucional, perdida por entre retóricas da disputa.
E aqui nos encontramos perante a pauta da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/reforma-tributaria">reforma tributária</a>. Afinal, o que buscamos? Ou melhor, por qual princípio ou objetivo constitucional percorremos cada raciocínio discursivo na pauta da reforma tributária? Maior arrecadação, com a otimização das receitas, ou menor carga tributária, com a revisão das receitas?
Todos conclamam a necessidade da reforma, mas qual reforma para qual interesse? E a Constituição?
Diversidade das bases ou unificação das bases? Otimização dos processos ou redistribuição do peso tributário? Concentração da tributação no consumo e ampliação da arrecadação, ou seu combate, assim como combate à regressividade tributária? o fio da meada...
Vê-se uma zona de perigo, onde palavras-chaves e lugares comuns do discurso podem se sobrepor ao rigor da função da tributação e aos conclames de justiça tributária. E o elefante branco pode estar sendo desenhado.
A discussão tributária traz esse risco. Pois é o campo da complexidade dos múltiplos interesses atravessados. Fato é que a tributação transcende a discussão de polos entre fisco e contribuinte e desnuda o processo social.
Um exemplo recente. A <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/governo-recua-e-pessoas-fisicas-terao-isencao-em-compras-internacionais-de-ate-us-50-18042023">tributação dos varejos internacionais</a>. Detectado um possível abuso com a dissimulação de transações entre pessoas físicas, a ação racional pede a desconsideração da prática e a aplicação da incidência (e multa tributária, se for o caso). E, quem sabe, não seria medida de bom senso padronizar de vez a ação racional, para se quebrar possíveis isenções que envolvem transações entre pessoas físicas, com relevante repercussão na arrecadação tributária e na concorrência entre mercado nacional e estrangeiro? Restabelecer-se-ia a ordem.
Porém, as peças de varejo, basicamente roupas, podem chegar mais caras ao consumidor brasileiro se a tributação for restabelecida com imparcialidade. E a indisposição é gerada.
Porém ainda, há outros atores. Os varejistas nacionais como ficam? Eles recolhem tributos a mais? O menor preço que advém de uma ausência de tributação ao varejista internacional gera desnível na concorrência interna. A solução pode ser tentar nacionalizar a produção estrangeira, gerando outros benefícios internos para a economia nacional e para atender aos reclamos de um padrão de consumo.
E por que não alterar o comportamento de consumo, fortalecendo o varejo interno?
Ainda outros poréns. Tem-se, por exemplo, um desgaste da imagem de um governo, que passa a ser lido como o que dificulta a economia, aumentando a tributação sobre o consumidor comum. E, assim, o mercado fica “nervoso”.
Juscelino Kubitschek disse certa vez que “qualquer político sabe o que uma elevação de impostos representa como fator de alienação da popularidade de um governo”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Talvez por isso, os discursos se perdem em meio às legítimas finalidades constitucionais.
E talvez, também, a decisão de começar pela (e talvez, também, ficar na) reforma tributária do consumo possa facilitar a dinâmica da neutralidade tributária, que quase não modifica substância em termos de regressividade, mas faz um bom trabalho de aparar arestas de uma certa dinâmica fisco-contribuinte. Vemos, antes, restauração, do que reforma tributária.
Assim situamos a discussão ao entorno da adoção de alíquota única para a tributação sobre o consumo. E, também, a vedação de qualquer benefício fiscal para o imposto. Com tal reforma, maximizar-se-ia a arrecadação, simplificando também os processos, evitando distorções competitivas com proliferação de incentivos fiscais indevidos. De cabo, blindar-se-ia a utilização de instrumentos tributários para intentos sociais, destacando tratar-se de campos não-comunicáveis. E o consumo, enquanto vocação da era moderna, sustentaria a arrecadação de forma ótima.
Por outro lado, vemos o reclamo de uma das funções da tributação: a de redistribuir. E sua propensão a reorganizar a sociedade com seu caráter impulsionador ou bloqueador de comportamento; e de proteção, no consumo, de determinados grupos, pelo Estado. O que diz a tributação sobre o consumo? – regressividade!
Consideramos a importância das políticas e normas sobre transferência de renda numa possível reforma tributária sobre o consumo, como sói acontecer com o indicativo do cashback tributário. Mas, tornando-se o principal produto de uma reforma que visa pautar o combate a regressividade, também há que se tomar em conta os reflexos de inocuidade que pode se alcançar, especialmente por se retirar do palco tributário a pessoalidade que o consumo não encampa.
Contra-argumentos virão, no sentido de se apontar estatísticas sobre inefetividade de reformas tributárias que pensaram em equidade entre as pessoas e seletividade das bases do consumo. Fato é, porém, que o sistema tributário deve mesmo ser medido além da arrecadação e deve produzir estatísticas mais qualificadas sobre políticas de inclusão ou mudança de comportamento do consumo, a partir da tributação.
A política tributária é política pública de per se. É política pública prima facie. Merece planejamento com base em objetivos claros e especificados, com metodologia ótima e com avaliação de resultados. Os dados empíricos formam estatísticas para se pautar reformas ou fortalecer suas bases. Não se alicerçando assim, as estatísticas sobre reformas tributárias irão só até certo ponto, sem percepção sensível da relação da incidência tributária com o propósito impulsionador ou obstaculizador de suas ferramentas.
A tributação sobre o consumo é indireta e recai sobre consumidores não-contribuintes. É abstrativizada e atravessada por uma capacidade contributiva objetificada, enviesada pela liberdade e poder de compra, que não representa a realidade da dependência do consumo pela população, especialmente a carente.
Portanto, de uma perspectiva de redução das desigualdades, em especial no que tange a grupos humanos e seus vieses de gênero, raça e suas transversalidades, há de considerar a pessoalidade na tributação, como condicionante estrutural do sistema. Esse é o fio da meada que cuidamos de resgatar.
Estamos diante de um desafio grande, que é realizarmos o justo numa discussão tributária.
O sistema tributário deve reafirmar sua principiologia e ser estruturado a partir de normas constitucionais que possam lembrar sempre ao hermeneuta desse lugar de finalidade da tributação e de representatividade que traz, ou da desigualdade que pode “inconstitucionalmente” gerar.
Pode-se dizer de um estado de coisas inconstitucionais também sobre o estado atual da tributação brasileira, especialmente no que tange à questão de gênero e de raça, onde todas as estatísticas reclamam uma agenda política que alivie a carga tributária indireta que recai sobre a mulher preta no Brasil, base e sustentáculo da pirâmide social no país.
A tributação, enquanto corrente sanguínea de um sistema político, tem vocação constitucional à redistribuição! Nesse sentido, suas normas mereçam vir pautadas em explicitados fins mais consentâneos com as premissas de justiça tributária. A tributação pode e deve sair de uma condição de neutralidade do status quo para a de agente promotora da redução das desigualdades, como sua vocação constitucional o é.
Em meio à complexidade dos grupos, assim como em meio à complexidade dos discursos, revolvemos aos objetivos fundamentais da Constituição. É reforma, e não restauração, tributária. O intento, qual é? Rever a estrutura ou restaurá-la? O fio da meada...
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> KUBITSCHEK, Juscelino. Meu caminho para Brasília: 50 anos em 5. Volume 3. Disponível em: <a href="https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/576817">https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/576817</a>. p.271

o que é reforma tributária

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JOTA

Todos conclamam a necessidade da reforma, mas qual reforma para qual interesse?

Reforma (ou restauração) tributária &#8211; ato 1: o consumo e o fio da meada

Reforma (ou restauração) tributária - ato 1: o consumo e o fio da meada

Todos conclamam a necessidade da reforma tributária, mas qual reforma para qual interesse?