Opinião e Análise

Karoline Lins Câmara Marinho de Souza

Na obra “A Galáxia da Internet”, Manuel Castells afirma que a internet é o tecido de nossas vidas e a mola propulsora da sociedade contemporânea. A obra, que foi publicada em 2003, mesmo sem uma intenção explícita de prever o futuro, indicava que testemunhávamos o “desenvolvimento gradual de um mercado financeiro global, independente, operado por redes de computadores, com um novo conjunto de regras para o investimento de capital e a avaliação de ações e de títulos em geral.”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
A internet movimenta a economia mundial e cria novos contornos para as antigas instituições inseridas no contexto de mercado. Assim, acompanhamos o desenvolvimento das grandes corporações digitais, que, em literais fenômenos surgidos da “noite para o dia” tiveram os seus ativos valorizados em cifras que chegam às casas dos doze zeros.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>Com a financeirização da economia – movimento a que Noam Chomsky<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> se refere como movimentação do dinheiro com esquemas complexos – ladeada da “uberização”, a necessidade de encontrar vias para a redução de seus custos alcança cada vez mais a busca por meios legais para escapar da tributação, também chamados de planejamento tributário, e, dentre esses, a localização do estabelecimento empresarial ocupa lugar de destaque.
Segundo estudos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as grandes corporações do mundo da tecnologia possuem uma tendência de se localizarem em paraísos fiscais, o que ensejou o lançamento do projeto BEPS (Base Erosion and profit shifting), que envolve medidas para reaver as bases tributárias que erodiam nos países desenvolvidos a partir da transferência de lucros para os países com tributação favorecida. Dentre essas, a cooperação internacional para compartilhamento de informações é imprescindível.
Como, em geral, a tributação da renda é muito inferior aos patamares médios existentes na maior parte dos Estados Fiscais, os paraísos fiscais atraem investidores que, além do benefício relativo ao percentual de taxação, ainda possuem, em muitos casos, o sigilo bancário absoluto, não podendo ser quebrado nem por decisão judicial.
Nesses paraísos, não há uma garantia de que os recursos investidos serão distribuídos entre toda a população assegurando o desenvolvimento humano. O que acaba acontecendo é a formação de rincões de pobreza – vide Panamá ou Ilhas Cayman – convivendo com parcelas mínimas de concentradores de renda: os proprietários das instituições financeiras e seus governantes, que mantêm as leis nesses moldes em torno da expectativa do autoprivilégio.
Portanto, a economia digital pressupõe a existência de uma fluidez de capital incompatível com o interesse público atinente à arrecadação tributária, porquanto, ao passo em que esta é prejudicada pela fuga de investimentos para os paraísos ficais, passa a repercutir fortemente sobre os fatos econômicos sobre os quais os Fiscos possuem eficiência na captação, como a tributação sobre a renda de pessoas físicas ou a tributação indireta destacada na fonte.
Se a conta do Estado Fiscal não fecha, porque ele precisa cobrar tributos suficientes a cobrirem os gastos com serviços públicos, ressoa como obviedade que essa arrecadação recaia sobre quem não tem capacidade para dela fugir. A classe média e as classes mais baixas pagam, assim, uma alta carga tributária embutida nos bens de consumo, o que provoca a diminuição de seu poder aquisitivo. Proporcionalmente, a carga tributária sobre essas classes é muito mais alta, o que se traduz no fenômeno da regressividade.
Diante disso, a preocupação em torno dessa crescente tendência de transferência de lucros dos Estados Fiscais para os “Paraísos Fiscais” vem aumentando, motivo pelo qual unem-se grandes potências no intuito de criar um imposto corporativo mínimo com base no conceito de Presença Digital Relevante. À frente nesse raciocínio, a Índia possui um imposto de equalização (equalization levy), desde 2016, incidente sobre pagamentos realizados a não residentes a título de publicidade on line, ao que veio seguida de França, Itália e Hungria<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, que implementaram os seus “Digital Services Tax” (DST).
No último dia 05, os países do G7 (Estados Unidos, Canadá, França, Itália, Alemanha, Japão e Reino Unido), através de seus ministros das finanças, concordaram com o importante esboço de um acordo global sobre tributação de multinacionais no patamar mínimo de 15%<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Isso significa que a consideração de um “território nacional virtual”, que existe em paralelo ao mundo dos bens tangíveis, é imprescindível para raciocinar o futuro da tributação.</blockquote>
Para a operacionalizar essa tributação, esforços conceituais devem ser empreendidos, como no caso da “Presença Digital Relevante” - conceito que deve nortear a tributação das grandes corporações tecnológicas. Ainda que se valham da aplicação do critério da territorialidade para tributação da renda no plano internacional e se registrem em outros territórios para pagar menos ou quase nada de tributos, a sua atuação naquele território virtual ficaria condicionada à regularização fiscal.
Segundo Tathiane Piscitelli<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, a ausência de definição do conceito de estabelecimento permanente dificulta essa incidência tributária, motivo pelo qual torna-se imperiosa a instituição do Estabelecimento Permanente Virtual (EPV), exigindo-se, inclusive, o fornecimento de dados quanto aos serviços prestados a residentes em território nacional.
Esse é um caminho que já está sendo percorrido no âmbito da Lei Geral do ISS (LC n.º 116, de 2003), diante da criação de um Comitê Gestor das Obrigações Assessórias pela LC nº 175, de 2020, que pretende uniformizar a prestação de informações por operadoras dos serviços ali identificados. Ainda que a referida lei alteradora não se refira expressamente a serviços eletrônicos, ela já sinaliza a necessidade de padronização de procedimentos para cobrança de serviços intangíveis e a necessidade de aumento das hipóteses de cobrança do imposto no local de residência do tomador de serviço.
Ademais, conforme diretriz da OCDE, existe uma tendência de que os bens comercializados ultrapassem a categoria de mercadorias e sejam tratados como serviços, fenômeno a que se costuma referir por XaaS (everything as a service), de modo que sendo prestados a residentes brasileiros, devem ser tributados no local dessa prestação. Com a dificuldade de se precisar o local da prestação digital, dadas as múltiplas possibilidades de movimentação do destinatário, o critério utilizado pode ser o local de residência deste, critério que transversalmente realiza o princípio federativo.
É importante asseverar que a liberdade de atuação econômica dessas gigantes da tecnologia não seria obstada em razão do estabelecimento de regras sobrejacentes à sua presença fática no território virtual. Como sói acontecer, o Direito apara arestas e viabiliza o ambiente de negócios de acordo com os valores prevalecentes no texto constitucional.
Portanto, a exigência de tributação das empresas a partir de sua atuação relevante em um dado país solidifica o pacto global de recuperação de finanças públicas que foram corroídas ainda mais com a pandemia do coronavírus e cumpre, a um só tempo, o ditame constitucional da igualdade tributária.
E é por tudo isso que se torna imprescindível a inserção do debate sobre a tributação das empresas de tecnologia no Brasil de forma prioritária. O acordo formulado nos últimos dias é um sinal latente de que algo no mundo precisa ser feito, sob pena de sucumbirmos em face da crescente concorrência fiscal internacional.
Assim, a discussão em torno das propostas de reforma tributária brasileira deve envolver, necessariamente, a consideração de que a nossa realidade econômica perpassa, de forma inescapável, à crescente comercialização de bens e serviços tangíveis e intangíveis pela via digital e o Fisco, de seu turno, deve poder alcançar esses fatos econômicos para não perpetuar a sua repercussão sobre aqueles que ganham menos, dando continuidade à injusta distribuição do ônus fiscal.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet. Tradução: Maria Luiza Borges. Zahar, 2003. p. 85.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> CHOMSKY, Noan. Requiem for American Dream. Seven Stories Press, 2017. p. 37.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> ROCHA, Sérgio André; CASTRO, Diana Rodrigues Prado de. Plano de Ação 1 do BEPS e as Diretrizes Gerais da OCDE. In: Tributação da Economia Digital. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 32.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a>Finance Leaders Reach Global Tax Deal Aimed at Ending Profit Shifting. In: https://www.nytimes.com/2021/06/05/us/politics/g7-global-minimum-tax.html?action=click&amp;module=Top%20Stories&amp;pgtype=Homepage&amp;login=email&amp;auth=login-email
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> PISCITELLI, Tathiane. Desafios da tributação de bens digitais. In: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/desafios-da-tributacao-de-bens-digitais-17042017">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/desafios-da-tributacao-de-bens-digitais-17042017</a>. Abril de 2017.
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JOTA

A internet movimenta a economia mundial e cria novos contornos para as antigas instituições inseridas no contexto de mercado

Presença digital no território nacional e imposto corporativo acordado pelo G7

A internet movimenta a economia mundial e cria novos contornos para as antigas instituições inseridas no contexto de mercado