Marina Soares Marinho
Doutoranda e mestra na UFMG. Advogada e Consultora Jurídica no Jusbrasil

"20 de maio ... Para mim o mundo em vez de evoluir está retornando a primitividade. Quem não conhece a fome há de dizer: 'quem escreve isto é louco'. Mas quem passa fome há de dizer:
– Muito bem, Carolina. Os gêneros alimentícios deve ser ao alcance de todos.
Como é horrível ver um filho comer e perguntar: 'tem mais?'. Esta palavra 'tem mais' fica oscilando dentro do cérebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais.
Desde que publicamos o primeiro texto desta série, em dezembro de 2021 [2], o quadro de fome e desigualdade no Brasil não parece ter se atenuado, pelo contrário. O aumento acumulado da cesta básica no ano de 2021 atingiu 16% em algumas capitais [3]; a taxa de desemprego chegou a 12,6% no país; e a inflação acumulada foi de mais de 11% para as famílias de baixa renda [4]. De outro lado, tampouco houve indícios de que o governo federal colocaria como prioridade na agenda política de 2022 o combate às desigualdades e à fome.
Como apresentamos anteriormente, a erradicação da miséria e o combate à fome deveriam ser os grandes objetivos do Estado brasileiro, já que é este projeto a que serve a Constituição de 1988. Isso implica que tanto a tributação quanto o orçamento deveriam ser direcionados a alcançar esse fim, pois os fins das finanças públicas são os fins da Constituição. Assim, neste segundo texto, pretendemos fomentar a discussão sobre a política tributária do governo federal durante o período da pandemia da Covid-19 e o aumento da fome, e sua relação com o grave quadro social apresentado.
A desigualdade e a concentração de renda no Brasil não são fenômenos recentes. Ao contrário, são questões históricas e estruturais – e por esta razão, a Constituição de 1988 é tão enfática em desenhar um Estado voltado ao combate às desigualdades.
Não é novidade na literatura jurídica ou econômica que nosso sistema tributário é regressivo, onerando proporcionalmente mais os mais pobres. Estudo divulgado na semana passada pelo Centro de Pesquisa em Economia e Desigualdade da USP (Made-USP), analisou a regressividade da carga tributária brasileira. A conclusão do estudo foi que os 10% mais pobres no Brasil gastam quase 27% da sua renda em impostos (23,4% em impostos indiretos e 3% em impostos diretos), enquanto os 10% mais ricos gastam cerca de 19% da sua renda em impostos (11,2% em impostos indiretos e 8% em impostos diretos) [5].
Além disso, como apresentamos no primeiro texto, essas desigualdades têm cor e gênero: de acordo com outro estudo do Made-USP, a soma da renda de todas as mulheres negras do país, que representam 26% da população, ainda é inferior ao recebido pelos homens brancos do 1% do topo, que representam 0,56% da população total – elas auferem 14,3% da renda nacional, enquanto eles se apropriam de 15,3% dessa renda [6].
Apesar dos inúmeros estudos que já datam de algumas décadas, não houve iniciativas congruentes do Estado brasileiro para reestruturar o sistema tributário de modo a fazê-lo cumprir as disposições constitucionais. Esse quadro se agrava ainda mais no momento em que quase 20 milhões de brasileiros enfrentam a fome. Como pretendemos demonstrar, essas questões parecem ser ignoradas pelo governo federal: as reformas propostas e aquelas poucas executadas não possuem um projeto nacional a conectá-las, a garantir-lhes coerência, e parecem servir a outros interesses que não ao de combater às desigualdades sociais imposto pela Constituição.
A Proposta de Emenda à Constituição no 45, de 2019, veio da promessa do Congresso Nacional de que a reforma tributária seria prioritária na agenda do Legislativo e do Executivo no mandato do presidente Jair Bolsonaro. Com o mote de simplificar a tributação do consumo, nem a PEC, nem os debates que obstaram a sua aprovação foram pautados pela necessidade de reduzir as desigualdades sociais no país – nem tampouco objetivaram mitigar as desigualdades de gênero e raça, como apontou relatório do Grupo de Estudos de Tributação e Gênero da FGV [7].
Isso também vale para a PEC 110/2019 e PL 3887/2020, o último a respeito da unificação de Programa de Integração Social/Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (PIS/Cofins). As propostas de reforma da tributação do consumo, a propósito, não lidam com outro problema profundamente ligado à fome e à miséria: as desigualdades regionais. As tensões federativas não são problemas novos, mas ao contrário do que prometia o presidente em sua campanha presidencial com o lema “mais Brasil, menos Brasília”, não tiveram qualquer solução satisfatória neste mandato. E, neste contexto, voltam à tona as disputas em torno da autonomia política dos estados com as negociações do Regime de Recuperação Fiscal, reeditado da LC 159/2016.
O cenário, entretanto, pareceu diferente com a proposta de reforma do Imposto de Renda [8]. Por meio do PL 2337/2021, o Executivo, apesar de reduzir a tributação sobre pessoa jurídica, propôs acabar com a isenção de lucros e dividendos e os juros sobre capital próprio e ampliar a faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Todavia, ao fim da rodada de alterações, a proposta de tributação de lucros e dividendos em alíquota única de 20% foi reduzida para 15%, com grande ampliação das isenções. Mesmo assim, a promissora proposta de extinguir a isenção sobre lucros e dividendos seria sobreposta pelos resultados regressivos da diminuição da carga tributária sobre as empresas e os resultados regressivos da alteração na tabela do IRPF.
O federalismo, mais uma vez, sairia prejudicado, já que a receita entregue aos estados e municípios diminuiria. Mais uma vez, nos deparamos com a ausência de um projeto nacional amplo, com objetivo de promover justiça fiscal, que conecte as propostas envolvendo as diferentes bases tributárias, de forma que os resultados progressivos de uma não sejam contrapostos pela tributação regressiva de outra base.
Segundo estimativa do Centro de Pesquisa em Macroeconomia da USP, a reforma do Imposto de Renda de Pessoa Física, nos moldes do projeto aprovado pela Câmara, contribuiria somente para 0,2 ponto percentual na progressividade do sistema tributário – sendo esse valor devido ao restabelecimento, ainda que pequeno, da tributação de lucros e dividendos, em contraposto ao reajuste da tabela de IRPF, que apresenta um impacto regressivo, visto que não amplia a quantidade de faixas de alíquotas e praticamente não altera a tributação no 1% do topo da pirâmide brasileira [9].
Se o 1% do topo — aquele com rendimento anual acima de R$ 322.295 – fosse tributado em uma alíquota marginal de 40% e a tributação de lucros e dividendos em 20% em todas as fontes, estima-se que teríamos um potencial redistributivo três vezes maior que a proposta aprovada e, por conseguinte, um grande impacto arrecadatório [10].
Não é preciso dizer que, num momento em que o Brasil é devastado pela miséria e pelo contínuo aumento da desigualdade social, a reforma do IR, com o fim da isenção de lucros e dividendos, ampliação de faixas de alíquotas do IRPF e com aumento da tributação sobre o topo da pirâmide, poderia custear a urgente ampliação da rede de proteção social que o Brasil precisa.
Assim, a proposta de reforma do Imposto de Renda parece ser uma oportunidade perdida para tornar o sistema tributário mais justo e aumentar a arrecadação para custear o combate às desigualdades, como decreta a Constituição.
Lado outro, o governo federal parece não se interessar pelos impostos não arrecadados sobre valores enviados a paraísos fiscais. A Tax Justice Network apresentou o estudo demonstrando que, apenas em 2020, o Brasil perdeu US$ 8,17 bilhões em impostos não pagos por multinacionais e milionários que fazem uso de paraísos fiscais [11]. Deste total, US$ 7,86 bilhões foram resultado de abuso fiscal corporativo e US$ 298 milhões por riqueza em offshore – coincidentemente, através dos Pandora Papers, descobriu-se que duas figuras centrais na política econômica e fiscal do governo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, faziam uso deste arranjo fiscal [12].
Por fim, não podemos deixar de destacar alguns elementos da política tributária do governo Bolsonaro. Primeiro, para o comércio exterior, favoreceu a importação de armas e munições [13] e dificultou a importação de produtos médico-hospitalares. Em segundo lugar, houve aumento da alíquota do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sobre o endividamento, sob o argumento impreciso, para dizer o mínimo, de que o aumento de receita financiaria o Bolsa Família. E, por último, no campo das disputas federativas, recentemente fora anunciado que o governo federal pretende realizar corte linear em alíquotas de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para pressionar os estados a aceitarem mudanças no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) incidente sobre combustíveis [14].
Embora as reformas tributárias sejam recorrentemente discutidas, renovando-se as ideias antigas, e indiquem que a injustiça tributária se trata de projeto velho, o contexto chama atenção para a permeabilidade dessa ideia no atual governo por dois motivos: 1) o país ainda passa por uma pandemia que matou mais de 600 mil brasileiros, enfrenta altíssima inflação e desemprego, recessão da economia e, especialmente, precisa enfrentar o desafio da fome; 2) as medidas tributárias propostas ou adotadas, além de contribuir para o aumento da desigualdade, não atacaram os problemas apontados em 1).
Assim, a política tributária do governo Bolsonaro parece servir a outros interesses que não o de combater as desigualdades sociais imposto pela Constituição de 1988. E essa percepção também é vista na política orçamentária: é o que traremos em nossa próxima coluna.
[1] Jesus, Maria Carolina. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. São Paulo : Ática, 2014. p. 32 e 33.
[2] Cf. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/pauta-fiscal/politica-fiscal-da-fome-02122021.
[3] Cf. https://www.redebrasilatual.com.br/economia/2021/09/cesta-basica-aumenta-ate-3413-em-12-meses-aponta-dieese/; acesso em: 01 fev. 2022.
[4] Cf. https://www.dieese.org.br/boletimdeconjuntura/2021/boletimconjuntura31.html; acesso em 01 fev. 2021.
[5] Silveira, Fernando Gaiger; et al. Previdência e assistências sociais, auxílios laborais e tributos: características redistributivas do Estado brasileiro no século XXI (Working Paper nº 007). Made/USP. Cf. https://madeusp.com.br/wp-content/uploads/2022/01/WP-Made-Impactos-redistributivos.pdf; acesso em: 01 fev. 2022.
[6] Bottega, Ana; et. al. Quanto fica com as mulheres negras? Uma análise da distribuição de renda no Brasil (Nota de Política Econômica nº 018). MADE/USP Cf. https://madeusp.com.br/wp-content/uploads/2021/12/npe018.pdf; acesso em: 01 fev. 2021.
[7] Cf. https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/reforma_e_genero_-_final_1.pdf; acesso em: 01 dez. 2021.
[8] Diferente porque o IR é um tributo que, embora possua alíquotas progressivas, é marcadamente regressivo. Dados da Receita Federal de 2020 apontam que a alíquota média daqueles que recebem mais de 320 salários mínimos mensais é de 2,1%, enquanto a fatia da população que tem rendimentos de três a cinco salários mínimos é tributada à alíquota média de 1,6% e os que ganham de cinco a sete salários mínimos contribuem mais do que os estratos mais ricos: 3,9% de alíquota média.
[9] Bottega, Ana; et al. A Proposta de Reforma Tributária para o Imposto de Renda de Pessoa Física e seus efeitos na desigualdade. (Nota de Política Econômica nº 015). Disponível em: https://madeusp.com.br/wp-content/uploads/2021/09/npe-015_11.pdf; acesso em 01 fev. 2022.
[10] Ibid.
[11] Cf. https://taxjustice.net/wp-content/uploads/2021/11/State_of_Tax_Justice_Report_2021_PORTUGUESE.pdf; acesso em: 17 nov. 2021.
[12] Cf. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58783951; acesso em 01 fev. 2022.
[13] Aqui sim, por outro lado, parece haver projeto, visto que será votado pela CCJ do Senado nesta quarta-feira (9/2) o PL 3.723/2019, de autoria do governo federal, que dificulta o rastreio de munições adquiridas por atiradores desportivos.
[14] Cf. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/02/governo-estuda-corte-no-ipi-para-pressionar-governadores-a-mudarem-icms-de-combustiveis.shtml. Acesso em: 06 fev. 2022.