Opinião e Análise

Alvaro Feitosa da Silva Filho

Diante do baixo índice de recuperabilidade do crédito tributário inscrito em dívida ativa, as procuradorias há muito perceberam que a insistência em uma via única de cobrança, baseada na execução fiscal, não é um meio eficiente. Nesse contexto, exsurge a via da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/transacao-tributaria">transação tributária</a>, por meio da qual o ente público convida o devedor de tributos ao diálogo, em busca de uma solução negociada para que a oferta de concessões recíprocas possibilite a extinção do passivo fiscal. 
Do lado da União – embora a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13464.htm">Lei 13.464/2020</a> preveja diversas transigências como o parcelamento, a moratória, o diferimento, a modificação das garantias oferecidas e a utilização de moedas especiais de pagamento – é certo que a concessão mais vistosa é a aplicação de descontos sobre multas, juros e encargos legais, que podem reduzir o valor do débito em até 65%. O almejado benefício, no entanto, não está disponível a todos os devedores do ente público, mas apenas àqueles que titularizam créditos classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, conforme critérios que incluem, entre outros, o tempo da cobrança, a suficiência e liquidez das garantias oferecidas, a existência de parcelamentos, a situação econômica e a capacidade de solvência do devedor. O modelo difere do vigente no estado de São Paulo, criado pela Lei 17.293/2020, que prevê descontos, ainda que mais módicos, também sobre o débito com alta probabilidade de recuperação. 
Ao senso comum, pode parecer uma contradição que os devedores prestigiados pela concessão de descontos na transação sejam justamente aqueles que tiveram comportamento mais reprovável diante da cobrança tributária – não aderiram a parcelamentos nem ofereceram garantias, frustraram a execução por longo período e conduziram seus negócios à situação de insolvência que os impede de honrar o pagamento integral dos débitos. Por outro lado, aqueles que apresentaram uma postura mais colaborativa e preservaram a saúde financeira de sua atividade econômica são proibidos de usufruir das reduções.  
É como se, na conhecida fábula de Esopo, à esforçada formiga fosse relegado o rigoroso inverno, ao passo que a imprevidente cigarra descansasse em um abrigo confortável. O aparente contrassenso, no entanto, desfaz-se com uma análise mais detida da legitimidade desse instituto, seja sob o prisma moral, comportamental e financeiro. 
O argumento moral contra a concessão de descontos sobre o débito irrecuperável parte da quebra de uma expectativa de meritocracia – o contribuinte que “fez por merecer” um tratamento privilegiado pela administração tributária é “preterido”, em benefício daquele cujo mau comportamento deveria ser retribuído com uma postura mais severa do ente tributante. Segundo o critério meritocrático, as vantagens e os encargos em uma sociedade devem ser distribuídos conforme o reconhecimento público da qualidade das realizações de cada indivíduo[1]. Trata-se de um desdobramento da concepção retributiva de justiça, baseada na proporcionalidade entre os comportamentos e suas consequências. 
É certo, no entanto, que o quadro valorativo consagrado em nosso sistema jurídico e, especialmente, na Constituição Federal de 1988, insere-se em um contexto de justiça distributiva que, no âmbito tributário, reflete-se na obrigação de que o ente tributante observe a capacidade contributiva, de modo que as cargas sejam atribuídas aos contribuintes à medida de sua idoneidade econômica para suportá-las.  
Nesse contexto, constrói-se um relevante fundamento moral para que sejam concedidos descontos – na exata medida de sua capacidade de pagamento – justamente àqueles contribuintes que não têm condição de arcar com o débito fiscal que contraíram, e não àqueles que, sem desconto, teriam aptidão para pagá-lo em sua integralidade. Nesse sentido, Becho e Federighi enxergam na transação tributária “uma ferramenta para se buscar a capacidade contributiva e a igualdade tributária, de forma a regularizar a situação fiscal de contribuintes de boa-fé, transpondo-se a indisponibilidade do interesse público, não em nome do hiperfiscalismo, mas sim da consagração da cidadania fiscal”[2]. 
O comentário acima deixa claro que, para a firme legitimação moral do instituto, a transação deve ser voltada ao devedor de boa-fé, tendo em vista que pressupõe a construção de uma relação de lealdade propícia ao diálogo com a administração, excluindo-se sonegadores, fraudadores e devedores contumazes. Nesse sentido, relevante a iniciativa do estado de São Paulo na Lei 17.293/2020, que definiu o conceito de devedor contumaz, afastando-o da possibilidade de negociar com o ente público. 
Superado o debate moral, passa-se ao argumento comportamental, segundo o qual a concessão de descontos ao crédito irrecuperável funcionaria como um incentivo ao contribuinte para que deixe deteriorar sua própria situação econômica, de modo a enquadrar-se em condição que lhe ofereça melhores descontos. Parte-se da ideia, difundida pela ciência comportamental, de que o contribuinte não age de forma “racional”, podendo sua tomada de decisão ser influenciada por pequenos estímulos do ambiente em que está inserido[3]. Nesse contexto é que a existência de um programa de descontos para o contribuinte irrecuperável serviria como um desincentivo à regularização, conduzindo o devedor à inadimplência sistemática. 
Novamente, ressalte-se que não estamos tratando do devedor de má-fé, que pretende ludibriar o estado simulando a insolvência, pois este deve ser excluído da transação. Fala-se da criação de um ambiente desestimulante à cooperação tributária, que poderia gerar efeitos deletérios de médio e longo prazo à arrecadação. 
Em que pese a relevância do argumento, precisamos ter em mente que o modelo de transação tributária de que falamos pressupõe a existência de mecanismos eficazes, por parte do ente público, para conhecer o patrimônio e a situação financeira do contribuinte com quem deseja transigir. Só assim será garantido que os descontos sejam dados na justa medida da sua capacidade de pagamento – nem a mais, nem a menos – de modo a considerar não as opções empresariais do contribuinte, mas o verdadeiro retrato de sua condição econômica. 
Deve-se ponderar, no entanto, que assiste certa razão aos que alegam não haver incentivo ao devedor para ofertar garantias ou celebrar parcelamentos, quando sabem que isso, na verdade, os distancia da possibilidade de obtenção de descontos. Nesse contexto, emerge a relevância da criação, ao lado dos programas de transação, de políticas de compliance tributário, que premiem o contribuinte cooperativo com benefícios como prioridades no atendimento a consultas, formas especiais de pagamento e facilitação à celebração de negócios jurídicos processuais.  
Por fim, mas não menos importante, temos a preponderância do argumento financeiro a justificar que os descontos sejam concedidos precisamente aos débitos irrecuperáveis e de difícil recuperação. Ressalvadas as inúmeras críticas e atenuações apontadas pela doutrina, é conhecida a influência que o dogma da indisponibilidade opera sobre o direito público, em especial o tributário. Pois bem, é justamente o débito recuperável e de difícil recuperação o campo mais fértil de mitigação desse superprincípio. 
Com efeito, desde 2017, o Ministério da Fazenda, reconhecendo a baixíssima probabilidade de ingresso dessas receitas nos cofres públicos, desreconheceu esses valores do Balanço Geral da União, alocando-os como ativos em uma conta de controle até a extinção. Olhando por esse prisma, é fácil chegar à conclusão de que os descontos não representam renúncia ou disposição por parte do ente público, sendo, ao contrário, qualquer receita advinda desses acordos de transação, um ganho de arrecadação. 
Em termos menos congestionados, o programa de transação representa uma expansão da cartela de pagadores de tributos, incluindo justamente aquele público do qual já não mais se esperava obter arrecadação. Por outro lado, ao contrário do que se verificava no período dos parcelamentos incentivados, não ficam prejudicados os recolhimentos oriundos dos devedores com capacidade econômica, os quais continuam responsivos às vias ordinárias de pagamento. 
O balanço positivo ratifica que, afastadas as impressões iniciais induzidas pelo senso comum, a opção legislativa adotada pela União não estabelece injustiças tributárias nem desestimula o cooperativismo fiscal, mas representa um novo paradigma para o incremento da arrecadação.
<hr />
[1] BARBOSA, Lívia. Igualdade e meritocracia: a ética do desempenho nas sociedades modernas, 4 Ed. Rio de. Janeiro: Editora FGV, 2003. P. 22 
[2] BECHO, Renato Lopes; FEDERIGHI, André Catta Preta. Análise econômica da transação tributária: fundamentos de justificação e elementos de crítica. In: Comentários sobre transação tributária à luz da lei n. 13.988/20 e outras alternativas de extinção do passivo tributário. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. 
[3] FEITOSA, Gustavo Raposo Pereira; CRUZ, Antonia Camily Gomes. Nudges fiscais: a economia comportamental e o aprimoramento da cobrança da dívida ativa. Pensar-Revista de Ciências Jurídicas, v. 24, n. 4, 2019. Disponível em: <a href="https://periodicos.unifor.br/">https://periodicos.unifor.br/</a>rpen/article/view/10258. Acesso em: 08 mai 2023.

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JOTA

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