Opinião e Análise

Daniela Olímpio de Oliveira

O orçamento público, antes peça de ficção, hoje exsurge como peça primordial da engrenagem constitucional, sem o qual as normas fundamentais não se operacionalizam, fazendo-se sensível às questões de gênero, classe e raça.
A Lei de Diretrizes Orçamentárias (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ldo">LDO</a>) de 2021 do âmbito federal, <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.116-de-31-de-dezembro-de-2020-297470533">Lei 14.116/2020</a><a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a> dispôs que o Executivo deverá elaborar Relatório de Execução Orçamentária do assim chamado “Orçamento Mulher 2021”. E deverá apresentar os seus gastos e avaliações. A inclusão desta exigência na LDO 2021 havia sido vetada pelo presidente da República, mas, por meio de articulações da bancada feminina da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/camara-dos-deputados">Câmara dos Deputados</a>, o veto foi derrubado. Em janeiro deste ano, o relatório foi publicado<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>. E é sobre ele a nossa reflexão.
Não obstante a conquista da derrubada do veto, o relatório acaba por refletir um cenário insólito de tratamento às questões de gênero. Dele se depreende uma ausência substancial de políticas específicas dirigidas às mulheres e suas interseccionalidades demográficas. O documento, ao contrário, alia ações que beneficiam a população brasileira em geral a uma política, “por tabela”, destinada às mulheres. Eis um falso silogismo: SE as mulheres são a maioria da população, E as ações orçamentárias são indistintas, LOGO as ações são sensíveis a gênero!
Há viés implícito e discriminatório de gênero nessa falsa premissa de um orçamento que se revela cada vez mais “insensível a gênero”. Isso porque falsas premissas como essas estão a considerar a ausência de desigualdade a ser corrigida. E quando a desigualdade é negada, ela torna-se acentuada pela manutenção do status quo e pela rolagem ostensiva de um sistema excludente.
Ainda que mulheres sejam a maioria da população brasileira, o mesmo não acontece na ocupação de espaços políticos, nem se verifica equidade de renda e trabalho. As condições são ainda mais difíceis quando se levamos em conta as interseccionalidades: a mulher trans, a mulher indígena e a mulher negra.
Por óbvio, pode-se considerar que há gastos públicos indistintos em termos de gênero, que acabam por contribuir positivamente com a dignidade da mulher, sem que daí possa se dizer em redução da desigualdade. Portanto, a abordagem deve ser ampliada para ser condizente com a sociedade complexa em que vivemos.
Eu diria que um orçamento-mulher deveria levar em conta o mapeamento qualitativo e quantitativo de políticas fiscais de gênero. Em termos qualitativos, entendo que uma análise em relatório deva considerar:
<ol>
<li>Políticas fiscais com distinção explícita de gênero, com vistas à inclusão e emancipação da mulher, como gastos diretos, como auxílio-emergencial diferenciado para as mulheres mães solos; gastos para combate à violência contra a mulher; incentivos fiscais para contratação de mulheres, com progressividade fiscal em suas interseccionalidades;</li>
<li>Gastos indistintos à condição de gênero, mas que ampliam possibilidade de autonomia e redução de desigualdade. Destaque para o Benefício de Prestação Continuada (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/bpc">BPC</a>), que representa, sem dúvidas, auxílio para a mulher que preencha as devidas condições, percebendo uma renda que minimize sua condição de miserabilidade que o alijamento do mercado de trabalho ocasiona;</li>
<li>Gastos indistintos à condição de gênero e que sinalizam para o aumento da desigualdade de gênero. Esse viés está no campo das revisões de políticas adotadas. A Câmara dos Deputados, ex vi, através de sua Secretaria da Mulher, emitiu uma nota técnica, dispondo que a aplicação de algumas rubricas, como as oriundas do fundo de terras, voltadas para o homem e para a mulher do campo, “pode estar gerando mais desigualdade se os valores e as ações forem disponibilizados mais para homens do que para as mulheres” <a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>.</li>
<li>O relatório, porém, fez opção explícita de apenas mencionar gastos que impactam positivamente a autonomia da mulher, mesmo que gerais e indistintos, e ainda que não se saiba exatamente se o objetivo foi alcançado, pois como se lê: “[…] a estrutura orçamentária da saúde não permite distinguir o quanto foi gasto com homens e o quanto foi gasto com mulheres”. Inclusive, quando foi justificada a opção metodológica para a elaboração do relatório, lê-se que “a exclusão das despesas de pessoal e previdenciárias do presente documento alinha-se à estratégia de não abarcar ações orçamentárias que se chocam com os interesses das mulheres” <a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>. </li>
</ol>
Ademais, há no documento o viés da economia do cuidado como inerente à mulher para a concepção de políticas públicas orçamentárias. Por exemplo, com o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para as escolas públicas, o governo considera que esta rubrica desonera as famílias da aquisição de parte das refeições diárias das crianças e, sabendo ser as mulheres na sua maioria responsáveis pela alimentação de toda a família no espaço doméstico, o programa atuaria positivamente na questão de gênero. Essa condição merece ser reconhecida, muito embora, como ocorre em grande parte nas questões estruturais de gênero, ela mesma seja denunciadora e mantenedora da divisão desigual do trabalho de cuidado.
Já no que diz respeito ao aspecto quantitativo do orçamento, é preciso considerar o numerário e o histórico de gastos, dentro do que propõe o projeto constitucional para aquelas ações. Houve gastos exclusivos para atenção às mulheres, é verdade, como a implementação da Casa da Mulher Brasileira e os centros de atendimento; além de políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres; mas, sensivelmente aquém do quantitativo orçamentário e da correspondência com orçamentos e programas anteriores.
O relatório também não reservou uma fala sobre ações voltadas especificamente para a mulher vulnerável, o que acaba por apagar mais ainda essa mulher em meio ao mar populacional e às ações genéricas de proteção social básica e especial, sem qualquer visibilidade para essa minoria inviabilizada na sua maioria numérica.
Portanto, é de se reforçar que o orçamento público merece cuidado com a vedação do retrocesso em relação à condição já alçada historicamente por programas públicos de proteção aos vulneráveis, fortalecendo, assim, a igualdade material. A adoção de uma perspectiva de orçamento impositivo pode enfrentar o corte de gastos, contingenciamento e ausência de rubricas específicas destinadas a políticas voltadas para as mulheres, que marcam o tom da sociedade atual, pós-pandemia.
Desafios enormes emergem nesse contexto, como a eliminação das falsas premissas sustentadas em políticas e relatórios como o aqui visitado, seja como a correlação natural que se estabelece entre gênero e família, seja a falsa e falaciosa relação da maioria (populacional) pela minoria (de acesso a recursos, equipamentos e direitos).
O que acompanhamos é o distanciamento da transparência substancial da gestão orçamentária, inviabilizando a compreensão da qualidade do gasto público e, por conseguinte, a compreensão e a realização de um possível estado constitucional de equidade. Que os orçamentos se tornem sensíveis, em última análise, à Constituição do Brasil.
<hr />
<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> BRASIL, CONGRESSO NACIONAL Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021 - LDO 2021. Lei nº 14.116, de 31 de dezembro de 2020.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> BRASIL, Ministério da Economia. A mulher no Orçamento 2021 - Relatório de Execução Orçamentária do Orçamento Mulher 2021. Disponível em: &lt; <a href="https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/planejamento-e-orcamento/orcamento/publicaoes-sobre-orcamento/orcamento-mulher">https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/planejamento-e-orcamento/orcamento/publicaoes-sobre-orcamento/orcamento-mulher</a>&gt;.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3] </a>BRASIL, Câmara dos Deputados. Secretaria da Mulher. Nota Técnica sobre Relatório ‘A Mulher no Orçamento 2021’. In: <a href="https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/secretarias/secretaria-da-mulher/arquivo-1/nota-tecnica/">https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/secretarias/secretaria-da-mulher/arquivo-1/nota-tecnica/</a>.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> BRASIL, Ministério da Economia. A mulher no Orçamento 2021 - Relatório de Execução Orçamentária do Orçamento Mulher 2021. Disponível em: &lt; <a href="https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/planejamento-e-orcamento/orcamento/publicaoes-sobre-orcamento/orcamento-mulher">https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/planejamento-e-orcamento/orcamento/publicaoes-sobre-orcamento/orcamento-mulher</a>&gt;.

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JOTA

Uma análise do Relatório de Execução Orçamentária do 'Orçamento Mulher 2021'

Orçamentos (in)sensíveis a gênero no Brasil

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